Mundo ficciónIniciar sesiónContinuação Cap Entre Sangue e Cinzas Parte 2-
Ao pousar no chão, o menino cambaleou em meio à fumaça e destruição. As ruas, antes cheias de vida, estavam cobertas por cinzas e sangue. Reconhecia rostos: Dona Angelina da feira, Mussum do boteco... todos mortos. Escondeu-se entre cadáveres quando passos inimigos ecoaram. O sangue ainda morno de uma velha escorreu sobre seu rosto. O menino chorou em silêncio, lembrando a voz da mãe, o riso da irmã, a firmeza do pai. — Merda... sou só uma criança! — sussurrou, soluçando. Rumo à floresta, Darius ouviu um relincho aflito. Seguiu o som e, logo adiante, viu o caos suspenso no tempo: uma menina ruiva, não muito mais nova que ele, talvez da idade de sua irmã, agarrada ao pescoço de um cavalo ferido. Um soldado vinha na direção dela, espada erguida. O coração de Darius disparou. Ele não pensou — apenas correu, tropeçando nos próprios pés. No chão, uma lâmina caída brilhou à luz do fogo; ele a agarrou com as duas mãos, pesando mais do que podia suportar. Num gesto desajeitado e desesperado, balançou a espada. O choque foi mais sorte do que força: o soldado não esperava e caiu, atingido. Darius ficou ofegante, o corpo tremendo tanto que quase deixou a lâmina escapar. O corpo do homem tombou com estrondo, e o menino sentiu as pernas bambas. A garota, porém, nem olhou para o soldado. Chorava, ainda agarrada ao cavalo. — Faísca, não morre... não morre... Darius engoliu em seco. O cheiro de ferro, de suor, de medo — tudo o enjoava. — Você precisa sair daqui... é perigoso. Onde estão seus pais? — Mortos. — disse sem erguer os olhos. — Eu só quero que ele não morra. As palavras cortaram Darius como lâmina. Ele não sabia o que fazer. Uma parte dele queria chorar junto. — Eu... eu cuido dele, tá? — disse baixo, sem nem acreditar no que prometia. — E se ele não aguentar... eu juro que vou te dar outro cavalo. Quando eu reconstituir meu lar, vou te dar outro. Pode até chamá-lo de Faísca. Ela o encarou com os olhos marejados. — Promete? Ele respirou fundo, tentando parecer firme apesar do tremor nas mãos e sentir a calça grudada à pele por causa da urina. — Prometo. Sou príncipe... e príncipe nunca quebra promessa. Uma mulher surgiu da fumaça, com pressa, puxando a garota pelo braço. — Obrigada... obrigada por não deixar ela sozinha. — Olhou para Darius e acrescentou: — Você também, venha! Darius balançou a cabeça. — Não... eu ainda... preciso fazer uma coisa. A mulher não insistiu. Sumiu levando a menina. Sozinho, Darius ajoelhou-se ao lado do cavalo. O animal arfava, os olhos vidrados de dor. O menino engoliu o choro. Pegou a espada caída ao lado e, com o corpo tremendo inteiro, deu o golpe de misericórdia. O som seco do aço rasgando a vida ficou gravado nele para sempre. Cinzas e sangue. Era tudo o que restava de Nerevia. Darius caminhava cambaleante. Pulmões ardendo, coração descompassado. Cada cena partia seu coração, o desfazia um pouco mais. O castelo, antes símbolo de proteção e grandeza, desmoronava em chamas. Era como se a própria terra e o próprio céu o devorassem. Nem mesmo as águas podiam ser sentidas. O Yin daquele lugar parecia ter desaparecido com tanta brutalidade que sobraram apenas vestígios. O Yin — a força sutil que mantinha a harmonia entre a vida e a terra, entre o sopro e a matéria — havia se esvaído. Onde antes fluía equilíbrio, restavam apenas cinzas e silêncio. Os nomes dos culpados ecoaram através dos desastres: Vórtex. Ignel. Stoneval. Entrou na floresta e seu coração terminou de despedaçar ao ver um pequeno corpo entre troncos caídos: Anya. Sua irmãzinha de seis anos. Os joelhos falharam. Uma onda de náusea o derrubou. Mas os soldados se aproximavam, obrigando-o a lutar contra o desespero. À beira da floresta, a visão final extinguiu o resto de sua humanidade. Uma árvore solitária ergueu-se contra o céu crepuscular. Os galhos fortes e a copa verdejante ainda guardavam uma beleza intocada, quase sagrada. Mas a vida que ela simbolizava foi violada. No tronco, pendia a cabeça do rei Robert Gray Draven, aquele que era conhecido como seu pai. Encostada à raiz, estava sua mãe. O vestido encontrava-se rasgado e coberto de sangue seco. O peito aberto denunciava a brutalidade: o coração fora arrancado, deixando apenas um vazio grotesco onde antes pulsava amor. Sobre o pescoço, entretanto, ainda pendia o colar de conchas que ele e Anya haviam feito para ela no último verão. Um presente infantil, torto, mas que ela usava com orgulho. A lembrança daquele riso suave, tão vivo em sua memória, colidiu com a cena diante de seus olhos. Era como se o contraste entre a ternura do passado e a barbárie do presente dilacerasse sua alma em pedaços. O nascer do sol cruel iluminou a cena, não como esperança, mas como denúncia. Como se o próprio mundo quisesse expor a crueldade. Darius tombou de joelhos. Vomitou. Gritou. Rasgou a própria garganta em agonia. Já não importava quem o ouvisse. A dor era maior que o medo. E, antes de apagar, sua mente registrou um último pensamento: “Se eu sobreviver... não serei mais o Jovem príncipe. Serei apenas um fantasma de Nerevia, o que restou de todo este sangue e cinzas.”






