Mundo ficciónIniciar sesiónPOV. Clara Menezes
O gosto amargo subiu pela minha garganta, queimando como ácido. Soquei o balcão de mármore branca com tanta força que a palma da minha mão latejou instantaneamente.
— Mas que merda! — O grito saiu rasgado, atraindo olhares assustados na pequena sala de espera da secretaria. — Como assim "falta um documento"? Eu trouxe tudo! Eu revisei essa pasta mil vezes durante a viagem!
A secretária, uma mulher de meia-idade com óculos na ponta do nariz e um crachá que dizia "Bete", recuou um pouco, assustada com a minha fúria.
— Senhorita Menezes, eu entendo, mas... a certidão de óbito da sua mãe não está autenticada. Sem a autenticação do cartório original, o sistema da bolsa integral não aceita. É a burocracia, não sou eu.
Senti meu estômago revirar. Não era enjoo de fome, embora eu não comesse nada decente há dois dias. Era ódio. Puro e simples.
— A senhora tem noção de onde eu vim? — Minha voz tremia, oscilando entre o choro e o grito. — Eu vim do Pará. São três dias dentro de um ônibus fedendo a suor e mofo para chegar em Porto Alegre. Eu gastei cada centavo que eu juntei limpando chão para pagar essa passagem. Eu não tenho dinheiro para voltar e autenticar um papel!
Apoiei a testa no balcão, sentindo o mundo girar. A imagem do meu pai veio à mente. O sorriso torto, o cheiro de cachaça e a mão pesada. "Vai lá, Clara. Vai quebrar a cara e voltar com o rabo entre as pernas para cuidar do velho aqui."
Eu preferia morrer de fome na rua a voltar para aquela casa.
— Eu não posso voltar... — sussurrei com o gosto amargo do fracasso ainda na boca. — Eu não tenho para onde ir. Minha única amiga mora aqui. — meus olhos arderam, os esfreguei com força por causa do incômodo. — Merda!!!
Bete suspirou. O barulho das teclas do computador parou. Quando levantei os olhos, vi que a expressão dela tinha mudado. De medo para pena. Eu odiava pena, mas naquele momento, era tudo o que eu tinha.
— Olha... — Ela baixou o tom de voz, como se fosse contar um segredo. — O prazo para a bolsa de 100% encerrou no sistema agora, com essa recusa. Mas... ainda temos três vagas para a bolsa parcial de 50%.
Ri, um som seco e sem humor.
— Moça, 50% de uma faculdade particular em Porto Alegre 1.500.00 é mais dinheiro do que eu já vi na vida. Eu acabei de chegar, não tenho emprego, como vou pagar metade da mensalidade?
Bete olhou para os lados, certificando-se de que o supervisor não estava perto.
— Olha o que posso fazer, é o seguinte lançar a data de vencimento para daqui a dois meses, e diluir o valor dessas duas mensalidades para as mensalidades seguinte, e talvez você consiga um emprego, más e o máximo que posso fazer por você.
Não sabia se agradecia, mas juro que ao olhar para ela. Ela brilhou como um anjo. “Obrigada Deus”, mas ainda restava uma pergunta. “Que porra eu ia fazer?” minhas pernas tremiam, e o meu coração batia descompassado contra as minhas costelas. Levei as mãos a cabeça enquanto pensava.
— É, e eu não posso voltar para casa. E eu te agradeço demais por isso, eu preciso de um emprego. — olhei para ela tentando fazer uma carinha de cachorro que caiu da mudança— por um acaso a senhora não sabe de nenhum lugar que possa estar contratando?
Ela levou a mão ao queijo como se buscasse no fundo da memória...
— Eu limpo banheiro, sirvo mesa, qualquer coisa. — confirmei
—Bom, Minha prima... nome dela é Adelaide Ela é governanta em uma casa no bairro Moinhos de Vento. Família rica, daquelas que a gente vê na revista. — Ela anotou um endereço e um nome num pedaço de papel. — O patrão é um homem difícil, um tal de Cavallieri. Eles estão desesperados por uma babá. A última pediu demissão a dois dias aos prantos. O salário é bom, deve ser o bastante para cobrir o restante da mensalidade.
Peguei o papel como se fosse um bilhete premiado, mas então a realidade me atingiu.
— Babá? — Meu estômago gelou. — Cuidar de criança?
Eu não sabia nada sobre crianças. Minha própria infância tinha sido um borrão de medo, fugas, violências, portas trancadas e silêncio para não acordar o monstro no quarto ao lado. Eu não sabia brincar. Eu não sabia ser doce. Só sabia sobreviver
— Eu... eu não levo jeito com criança, Bete. Eu não tive... — Travei. — Eu não sou maternal.
— Você quer a vaga na faculdade ou não? Já cursou um ano, não pode desperdiçar— Ela foi direta, apontando para o relógio na parede. — A prova de vestibular para a bolsa de 50% começa em quarenta minutos. Se você passar, garante a vaga. O emprego... bem, você se vira. Se esse não der certo, procura outro. É pegar ou largar, menina. O ônibus para o Pará sai da rodoviária às oito da noite.
Olhei para o papel com o endereço da mansão. Depois para a porta da sala de provas. E por último, para a minha mala surrada no canto do corredor, que carregava minhas roupas e meus traumas.
— Me dá a caneta — falei, engolindo o medo junto com a bile. — Eu vou fazer essa prova.
Depois que terminei a prova, graças ao bom Deus e Clarice Lispector consegui a pontuação, já estava escrita começa na próxima semana. As mensalidades seriam 2.000.00 reais, mas os dois primeiros meses não precisaria pagar, então tinha um tempo para conseguir um emprego.
Estava cansada, exausta, fedendo meu vestido estava todo amarrotado e meus pés moídos dentro da bota. Saí do prédio da faculdade arrastando minha mala de rodinhas, que fazia um barulho irritante no calçamento molhado.
A chuva tinha dado uma trégua, mas o ar úmido fazia meu vestido de algodão barato colar no corpo de um jeito desconfortável. Eu me sentia suja. Três dias de estrada, o meu cabelo castanho oleoso... Eu devia estar fedendo a derrota e fritas.....







