Risco o chão da minha jaula sem ânimo para continuar vivendo. Já cansei de gritar, ninguém me ouve. Já tentei conjurar feitiços, mas estou fraca demais para isso.
Ele me trancou aqui dentro e fez questão de me isolar de qualquer fonte de poder. Admito que ele foi especialmente sagaz, dos três tipos principais de poder, o meu tipo é o mais difícil de ser conseguir anular.
Uma maldita bruxa escarlate que não consegue usar o próprio sangue para fugir de uma jaula, essa deve ser a pior e mais cruel das ironias do destino.
O meu algoz surge passando pela grande porta de madeira e ferro. As paredes de pedras repletas de runas e feitiços mais antigos do que a cultura dessa terra.
Essa é a linhagem da minha família, essa fortaleza é minha por herança. Mas ele a tomou de mim.
— Trouxe um pouco de pão e sopa para você — ele fala ao se aproximar das grades da jaula. — Antes que pense em jogar em mim, foi Talia que fez para você.
Não chego a olhar para ele, continuo desenhando os mesmos traços no chão. Se Talia concordou em obedecer a algum pedido dele, então é porque é uma traidora tanto quanto todas as outras.
— Mande ela enfiar essa sopa e esse pão onde a luz não toca — respondo, reforço um traço do desenho, isso está ficando bom, muito bom, na verdade, eu tenho um certo talento para isso.
— Verônica, pare com essa animosidade com quem está tentando proteger você. Não percebe como isso se parece? Ela é sua covalente, se não puder confiar nela, vai confiar em quem então? — ele volta a falar se afastando das grades e rondando a jaula para se aproximar de onde estou.
Ele tem razão, se não posso confiar na minha covalente, não posso confiar em mais ninguém. Todas e todos nessa fortaleza não passam de traidores vendidos.
Bastou o maldito alfa se oferecer como doador de sangue para que todas as seguidoras mais leais da minha avó se bandeassem para o lado dele.
Sangue de alfa é valioso, mas a lealdade deveria valer mais do que isso. Existem certos limites que não devem ser ultrapassados. Pelo visto eu sou a única a pensar assim, mesmo a lealdade de Talia tem um preço pelo que posso perceber.
Nem uma delas veio me ver, nem uma delas veio tentar me soltar. Eu sou a herdeira por direito dessa fortaleza, não esse assassino.
— Cuidado, alfa supremo — falo com o máximo de desdém e deboche que minha fraca voz consegue reproduzir. — A lealdade que é vendida pelo poder pode ser facilmente substituída caso apareça alguém mais forte.
— Eu não sou o seu inimigo, Verônica, de todas as pessoas daqui, você é a quem devo a minha vida e gratidão — ele diz me cercando do lado de fora.
É muito fácil me rondar estando protegido por uma jaula de isolante mágico.
Me levanto e me aproximo dele para esconder os desenhos no chão. Ele não pode ver, ainda não para não estragar a doce surpresa que estou preparando desde que me trancaram aqui.
— Se me deve a sua vida, então por que não me deixou tirar ela? Me dê ela agora, eu faço questão de cobrar — me aproximo da jaula, seguro nas barras grossa com o rosto apoiado nelas.
Lucian se afasta sem perder o contato visual comigo. Ele é esperto, sabe que estou planejando algo.
— Eu não sou seu inimigo, Verônica — ele se repete.
— Está bem, me prove. Me solta e vamos conversar cara a cara — falo e ele sorri sem humor.
— Eu quero confiar em você, quero que você volte para a frente da fortaleza, mas você está fora de si, foi envenenada, enganada-
Antes que ele continue com o discursinho dramático e tocante, o corto: — Você matou a minha avó e eu nunca vou te perdoar por isso seu traidor imundo!
Ele passa a mão no cabelo com desgosto, sabe bem que não tem como lutar contra isso. Eu vi acontecer, vi quando ele avançou sobre ela em sua forma de lobo. As garras cercando a única pessoa restante da minha família.
Assisti sem poder fazer nada enquanto ele abria a mandíbula e cravava os dentes na minha avó.
Ela nem teve chance de lutar, foi uma morte covarde.
— Maldito o dia em que eu te resgatei da sarjeta, eu devia saber que você foi deixado lá por uma boa razão — digo despejando todo o meu desprezo, ele tem a indecência de parecer sentir dor com as minhas palavras. — Como você pode trair aquela que te acolheu? Como? Você é um maldito, e eu juro que quando sair daqui vou amaldiçoar o dia em que você nasceu, vou amaldiçoar o seu nome, e vou deixar você vivo para que veja a sua linhagem sofrer as consequências dessa maldição. Eu vou me vingar pela minha avó.
— Você entendeu errado, Verônica. Como herdeira dela você deveria saber que Mirela Ravary não se deixaria ser morta daquele jeito tão facilmente, se ela estava ali foi porque quis estar ali — ele ainda tem coragem de dizer essas palavras para mim.
— Eu não sei o que você e essa corja de traidoras fizeram para deixar a minha avó naquele estado, mas sei que fizeram algo e eu não vou descansar até vingar a morte dela — falo e ele se afasta mais.
Percebo tarde demais que não está se afastando por conta das palavras que digo. O alfa está tentando ver atrás de mim o desenho que fiz no chão durante os últimos dias.
Corro para a comida que ele me trouxe, apesar de cansada e fraca consigo chegar antes dele para pegar a louça. Quebro ela no chão. Um prato a mais ou a menos depois de tantos que quebrei não faz diferença para quem tentar limpar.
Todas as vezes que traziam comida e eu quebrava as louças não era para demonstrar o meu desagrado. Era para conseguir um objeto cortante.
A porcelana é fácil de se desgastar no chão, mas consegui aranhar até completar o desenho. Consegui deixar os traços com profundidade o suficiente para receber o ingrediente crucial do feitiço.
— Obrigada pela porcelana, Lucian, dê os meus agradecimentos especiais para Talia.
O último fragmento da louça vai servir para colorir o desenho. Ele já estava pronto, só precisando de uns retoques e agora o sangue da herdeira por direito.
— Você não pode fazer isso, Verônica, vai deixar todos nós em perigo. Pense nos inocentes que você vai deixar desprotegidos se concluir esse ritual. — a voz dele é desesperada. O lampejo do verde-esmeralda em seus olhos oscila para se transformar em lobo.
Tarde demais para tentar me impedir.
— Eu preferia fazer isso sozinha, mas acho que com você aqui talvez seja ainda melhor — digo e passo a louça quebrada da palma da mão para o braço.
O sangue vai caindo no desenho e escorrendo por onde marquei os traços mais fundo no chão, vou recitando o feitiço para que ele siga pelo caminho sem desvios.
É difícil conseguir deter uma bruxa cujo o poder vem da magia de sangue. Eles conseguiram colocar uma magia de cura instantânea em mim, custou bastante do sangue de alfa supremo de Lucian e bastante das minhas irmãs bruxas traidoras.
Eu não conseguiria fugir dessa jaula sozinha, não com a minha quantidade limitada de poder e falta de habilidades.
Apesar das minhas limitações, eu ainda sou uma bruxa escarlate.
Lucian começa a se transformar em lobo enquanto termino o meu ritual. É difícil e dolorido fazer mais e mais cortes em minha pele enquanto ela cicatriza antes que sangue o suficiente para completar o feitiço consiga escorrer.
Lucian em forma de grande lobo alfa uiva alto, tarde demais para conseguir me impedir.
O sangue se encontra nas últimas arestas do desenho, o feitiço está completo. Eu acabei de quebrar a proteção centenária desta fortaleza. Criaturas mágicas podem entrar sem convite estrito.
Ouço outro uivo soando ao longe. O meu verdadeiro alfa veio me salvar daqui.