O relógio digital da suíte marcava 7h15 da manhã quando Isadora despertou. Do lado de fora, o céu da Serra da Mantiqueira ainda estava envolto por uma névoa fina, e os primeiros raios de sol filtravam-se pelas cortinas de linho branco. O quarto, amplo e sofisticado, parecia frio e impessoal — apesar da vista encantadora para o vale, havia um silêncio sufocante no ar.
Ela estendeu a mão lentamente até o outro lado da cama king size, mas encontrou apenas o vazio. O lençol ainda gelado. A mesma cena há meses. ‘Mais uma manhã sem ele...’ — pensou, os dedos deslizando no espaço onde Rodrigo deveria estar. Suspirou. Pegou o celular. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação perdida. Nem mesmo um bom dia. E muito menos, uma lembrança da data: dois anos de casamento. ‘Ele esqueceu. De novo.’ — engoliu seco, sentindo a dor raspar a garganta. Levantou-se com certa lentidão, caminhando até o espelho da penteadeira da suíte. Seus olhos estavam inchados, as olheiras mais profundas do que gostaria de admitir, e o brilho que costumava ter parecia apagado. ‘Quando foi que me perdi tanto assim?’ — questionou-se em silêncio. — ‘Parei de me cuidar, de me amar… tudo por alguém que já nem me nota.’ Engolindo o choro, respirou fundo. Era difícil se olhar e aceitar o que via. Mas naquele dia, naquele cenário bucólico e silencioso, algo diferente surgiu dentro dela: uma força tímida, mas decidida. ‘Hoje... vai ser diferente. Nem que seja pela última vez, eu vou tentar. Vou lembrar a ele quem eu sou. Quem nós fomos.’ Determinada, foi até o chuveiro. A água quente escorreu pelo seu corpo, levando consigo um pouco da frustração que a consumia. Vestiu um roupão de algodão branco e caminhou até o closet da suíte, onde escolhera uma roupa especial para aquele dia: uma blusa de seda azul clara, calça de alfaiataria e um par de saltos nude. Discreta, elegante. Desceu para o café da manhã sozinha, como nos dias anteriores. O salão do resort era todo envidraçado, revelando as montanhas verdes e o lago sereno logo adiante. Após comer pouco — quase nada —, passou as horas seguintes no spa do hotel, rendendo-se a massagens com óleos essenciais, banhos de imersão com lavanda e um ritual facial relaxante. Tudo aquilo que deveria revigorar seu corpo, mas que ainda não alcançava a alma. No início da tarde, agendou um horário no salão do próprio resort. Cabelos escovados com ondas suaves, maquiagem leve, batom cor vinho. E, por fim, o vestido que havia comprado semanas antes, esperando usar em um jantar especial com Rodrigo: um modelo vermelho de alfaiataria, justo, de decote discreto e costas nuas. Ao se olhar no espelho, por um breve momento, viu a mulher que costumava ser. Forte. Confiante. Amável. ‘Se isso não chamar a atenção dele... nada mais vai.’ Era fim de tarde quando decidiu voltar para casa. Rodrigo não apareceu no resort, nem enviou mensagem. Nada. Nenhuma justificativa. Com o coração apertado e um vazio difícil de explicar, ela entrou no carro e pegou a estrada de volta a São Paulo. Chovia leve. A neblina começava a se deitar sobre as curvas da serra. As mãos de Isadora apertavam o volante com força. A música baixa no rádio não ajudava. As lembranças, sim — essas gritavam. A ligação, inesperada, chegou quase ao entardecer. Era Bruna, a secretária de Rodrigo. A voz dela parecia tensa. — Senhora Isadora... me desculpe ligar, mas achei que devia saber. O doutor Rodrigo está no escritório hoje... desde cedo. — E por que está me ligando? — Isadora perguntou, confusa. Houve um silêncio incômodo antes de Bruna continuar: — É que... ele não está sozinho. Está com uma mulher. Estão no escritório há horas. A porta... fechada. Achei que... bom... me desculpe se me intrometo. Isadora desligou sem responder. O mundo, que já estava turvo pela chuva, pareceu borrar ainda mais. Mudou o rumo e seguiu direto para o prédio da R.B. Advocacia, no centro de São Paulo. O trânsito lento ajudava a conter a explosão que rugia dentro do peito. Ao chegar, subiu ao 23º andar. A secretária não estava na recepção. O corredor, silencioso. A porta do escritório, entreaberta. Ela empurrou devagar. E viu. Rodrigo. De costas. Sem camisa. Abraçado a uma mulher de cabelos ruivos, sentada sobre a mesa onde ele costumava assinar os contratos mais importantes da empresa. A mulher inclinando a cabeça para trás, olhou em sua direção e um sorriso vitorioso se espalhou pelos lábios dela. O coração de Isadora implodiu. Ela recuou sem fazer barulho. O grito preso na garganta queimava. Ela esbarrou no vaso de planta na entrada da sala, o barulho do gemido dela fez Rodrigo olhar. — Isadora!... Ela saiu. Correu até o carro, ligou o motor e saiu dirigindo pelas ruas molhadas. O choro era incontrolável. As lágrimas embaralhavam a visão. As mãos tremiam. A chuva engrossava, e o céu da cidade parecia tão cinza quanto sua alma. Num trecho mais escuro da estrada de volta, em uma rua sinuosa e quase deserta, ela viu — tarde demais — a silhueta que se projetava sobre o asfalto molhado. Um baque. Pânico. — Meu Deus! — gritou, freando bruscamente e saindo do carro com o coração disparado. O homem estava caído à beira da pista, com a roupa ensopada, tremendo de frio. Pálido, expressão exausta. — Moço! Você tá bem? Me perdoa! Eu não te vi! Eu... eu vou chamar uma ambulância — disse, ajoelhando-se ao lado dele. — Não... só escorreguei. Eu tô bem... — murmurou ele com voz rouca. Tentou se levantar, mas caiu de novo. — Você não está bem — afirmou ela. — Eu vou te ajudar. — Por quê? — ele perguntou, encarando-a com olhos escuros e fundos. — Você nem me conhece. — E mesmo assim, não consigo te deixar aqui. Houve um instante de silêncio. Um silêncio diferente. Como se algo os conectasse sem explicação. Ela o ajudou a entrar no carro, cobriu-o com uma manta do banco de trás e dirigiu até uma pousada rústica próxima dali, que já havia avistado dias antes, em um passeio no resort. Pediu um quarto, chamou serviço de quarto, ligou o aquecedor. O homem foi tomar banho, e ela se sentou na beirada da cama. O rosto ainda molhado de chuva e de dor. ‘O que eu estou fazendo?’ — pensou. — ‘Trouxe um estranho para um quarto de hotel... que tipo de mulher eu me tornei?’ A porta do banheiro se abriu. Ele surgiu com uma toalha enrolada na cintura, cabelos molhados caindo sobre a testa. O corpo magro, mas definido. E os olhos... tristes como os dela. — Você tá bem? — perguntou ele, com suavidade. Ela assentiu. Os olhos marejados. Ele se aproximou, abriu o frigobar e serviu duas taças de vinho. — Um brinde... à gentileza inesperada — disse, oferecendo uma taça. O silêncio que se seguiu era quase sagrado. Quando ela começou a falar, a voz falhava. Contou tudo. Rodrigo. A traição. A humilhação. A solidão. Ele ouviu em silêncio. Sem interromper. Quando uma lágrima escorreu por sua bochecha, ele a enxugou com a ponta dos dedos. Ela não recuou. Ao contrário, se aproximou mais. O beijo veio. Natural. Urgente. E depois, o toque. A entrega. O calor. Ele sussurrou entre gemidos "Parece que meu corpo esperava o seu" e assim se perderam no prazer e desejos. Quando, enfim, os corpos adormeceram entrelaçados, Isadora sentiu algo que não soube nomear. E, ao acordar no meio da noite, cobriu o próprio corpo com o lençol e olhou para o homem ao lado. O medo veio. A culpa. A realidade. Levantou-se devagar, pegou a bolsa e saiu do quarto como um fantasma. Mas sabia, lá no fundo, que aquela noite jamais a deixaria. E que aquele homem — por mais estranho que fosse — havia marcado o início do fim. Ou, talvez... o começo de tudo.