Capítulo 2

Eu estava ao telefone com Emma, prometendo que já estava a caminho de casa, quando o motorista faz uma curva tão brusca que o telefone escapa da minha mão e voa para o banco de trás.

– Mas o que...?!

– Senhor... ela se jogou na frente do carro. Parecia perdida. – Alfred fala, aflito, com as mãos ainda tremendo sobre o volante.

– Ela?! A gente atropelou alguém? – pergunto, com o coração acelerado.

A chuva despenca como uma maldição dos céus, batendo com força no para-brisa. Alfred j**a o carro para o acostamento e salta sem hesitar. Eu vou atrás, o peito apertado de pavor. Se atropelamos alguém, eu a levarei ao hospital. Não vou deixá-la ali.

A cena à frente me faz prender a respiração.

Alfred surge da penumbra, segurando uma mulher nos braços.

– Ela está viva, mas desmaiou. Deve ter sido o susto. Ou... a queda.

– Vamos. Rápido. Me dê ela aqui. – estendo os braços.

Tomo-a em meus braços com cuidado, como se fosse feita de vidro. Sinto seu corpo gelado, tremendo, frágil demais para essa tempestade. Acomodo-me no banco de trás com ela no colo, protegendo-a o máximo possível do frio.

Sua cabeça repousa contra meu peito. Seus lábios tremem. A pele está pálida como neve. Ela está... exausta. Como se o mundo tivesse acabado para ela.

Meus olhos percorrem seu rosto, e há uma dor ali que me atinge sem explicação. Um corte na testa. Alguns arranhões nos braços. Nada profundo. Nada grave.

Mas há algo mais. Algo que me faz olhar de novo.

Enquanto tento ajustar seu corpo melhor para aquecê-la, percebo uma marca no pescoço, parcialmente escondida pelo cabelo molhado. Levo os dedos até lá, afastando os fios encharcados.

Um sinal.

Um sinal de nascença. Em formato circular. Tão perfeitamente desenhado que me faz congelar.

Engulo em seco.

Aquela marca...

Aquele sinal...

Eu conheço esse sinal.

Fecho os olhos. A lembrança explode, nítida, como um raio rasgando a noite.

— Não mexam com ele!

Eu era apenas um menino, sozinho no pátio da escola, cercado por outros três garotos. Me chamavam de esquisito, de fraco, o garoto feio e gordo da escola. Empurravam meu lanche no chão.

Até que ela apareceu.

Pequena, determinada. Um furacão de cabelos negros e coragem.

— Se tocarem nele de novo, eu juro que arranco os dentes de vocês!

Ela chutou um dos meninos na canela, pegou meu braço e me puxou dali.

— Meu nome é Margarida. E a partir de hoje, eu sou sua melhor amiga. – disse, uma mão na frente do corpo, para me cumprimentar.

E foi.

Todos os dias. Ela me defendia. Me fazia rir. Dividia o lanche. Me fazia sentir que eu era alguém.

Lembro que uma vez perguntei sobre a marca no pescoço dela.

– O que é isso no seu pescoço? – indaguei, curioso.

— É meu sinal, já nasci com ele. – ela disse, tocando o círculo com orgulho. – Minha mãe disse que é como uma proteção que eu tenho.

E ela protegeu. Até o dia em que minha família se mudou e a deixei para trás.

Abro os olhos de novo. Olho para o rosto da mulher em meus braços.

Não pode ser.

– Margarida? – sussurro. Atônito.

Como se meu mundo não estivesse girando, ela pareceu ouvir meu chamado e abriu levemente os olhos, mas logo apagou de novo.

Mas é.

Aquele sinal...

Aquela boca...

Aquela aura de tristeza e força.

É ela.

É Margarida.

O mundo parece girar devagar. Meus braços a apertam com mais força, como se eu quisesse protegê-la agora como ela um dia me protegeu.

– Mais rápido, Alfred! – minha voz falha. – Depressa, pelo amor de Deus!

Não posso perdê-la de novo.

Não agora.

Não depois de tudo.

O carro praticamente invade a entrada do hospital, derrapando na curva da emergência. Mal o veículo para, eu salto para fora com Margarida ainda nos braços, a chuva batendo como agulhas geladas nas minhas costas.

– Socorro! – grito. – Ela precisa de ajuda!

Enfermeiros correm em nossa direção com uma maca, o som dos alarmes e passos apressados ecoando nos corredores. O cheiro de antisséptico, o frio cortante do saguão, tudo acontece em um turbilhão indistinto.

Entrego Margarida com cuidado, sentindo seu corpo frágil ser separado do meu. Uma parte de mim quer ir junto, segui-la até onde for, mas sou bloqueado por um dos profissionais.

– O senhor é parente da paciente? Marido? Familiar direto?

Eu paro. O mundo parece parar.

Não. Eu não sou.

Não sou nada. Nenhum título. Nenhuma ligação oficial. Apenas um rosto do passado… alguém que ela sequer reconheceu – porque nem acordada estava.

Engulo a dor que sobe seca pela garganta e balanço a cabeça em negação, os olhos presos na maca que já se afasta.

– Eu a encontrei caída na estrada... Mas eu a conheço. – minha voz falha, ainda assim firme.

– Então, por favor, preencha os dados que souber. – aponta para a recepção.

A caneta pesa na minha mão. Escrevo seu nome com letras tremidas: Margarida. Sobrenome? Não sei. Idade? Estimo. Informações de contato? Nenhuma. Me sinto patético diante do formulário quase em branco. Tão perto dela... e ao mesmo tempo, tão distante.

Me sento. O hospital está frio. Ou sou eu. O banco parece pedra. A realidade me afunda.

Ontem.

Ontem eu me lembrei dela.

Da menina que salvou minha infância.

Do sorriso que me acolhia.

Dos olhos que me protegiam.

Pensei nela com saudade. Com carinho. Com um arrependimento inexplicável por tê-la deixado no passado. E hoje... hoje ela caiu nos meus braços. Literalmente. Ferida. Perdida. Quebrada.

O telefone vibra no bolso.

Olho a tela: o rostinho de Emma sorri para mim, através da foto salva no contato da babá.

Atendo.

– Sim, querida.

– Papai, o senhor ainda não chegou. – a voz dela é baixinha, triste. Como se não quisesse me cobrar, mas também não conseguisse esconder a decepção.

Meu peito dói.

– Desculpe, anjo... o papai está com uma amiga. Ela se machucou e está no hospital.

– Ela está doentinha? – pergunta com ternura. – Que triste...

Fecho os olhos. Que triste... essa palavra soa pequena diante da dor que vi nos olhos de Margarida antes que desmaiasse. Uma dor que parecia vir de muitos lugares, não só do impacto no asfalto.

– Sim, meu amor. Ela está doentinha. Mas vai ficar bem. O papai vai cuidar disso, tá bom?

– Tá bom. Vai cuidar como cuida de mim?

– Como cuido de você. Sempre.

– Então boa noite, papai. Eu te amo. – diz, a voz já pesada de sono, e ainda assim carregada daquele amor puro que me salva todos os dias.

– Eu também te amo, meu anjo. Muito. – respondo, a garganta embargando.

Desligo.

E fico ali. Sozinho, entre o som dos passos apressados dos médicos e a lembrança de uma amizade de infância, tentando entender por que o destino jogou Margarida de volta na minha vida assim. Tão quebrada. Tão calada.

Mas viva.

E agora... sob minha responsabilidade.

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