Início / Romance / Noiva por Conveniência / Capítulo 2: Memórias Queimadas
Capítulo 2: Memórias Queimadas

LANA MARTINS

Enquanto me maquio, minha imagem reflete no espelho da pequena penteadeira. Meus olhos, grandes e profundos, carregam uma expressão endurecida, como se já tivessem aprendido a suportar mais do que alguém de vinte anos deveria. Meus cabelos encaracolados, agora presos em tranças apertadas, caem ao redor do meu rosto, destacando as maçãs do rosto marcantes. Por mais que tente me concentrar, as lembranças do acidente me perseguem sem piedade nesta noite silenciosa. Sentada aqui, ancorada na minha realidade, me perco no passado, revivendo o momento que muda tudo.

~ Flash On ~

Apesar dos meus dezenove anos, todos me consideram responsável e comprometida, mas, acima de tudo, ansiosa para melhorar de vida e ajudar minha família. Minha rotina é simples, quase previsível, entre a casa e o trabalho. Desde os dezessete anos, trabalho como garçonete em um restaurante local, e meu maior desejo é construir um futuro tranquilo ao lado dos meus pais e de Ana, minha irmãzinha.

Ana, com apenas cinco anos, é cheia de energia, com olhos castanhos vivos e cachinhos que caem ao redor do rosto como pequenas molas. Sempre com um sorriso cativante e em busca de novas descobertas, seja um brinquedo simples ou a menor das aventuras. Eu a amo; sempre levo algo para ela no final do expediente, como um doce ou uma revistinha para pintar. Mesmo com a diferença de idade, sempre somos inseparáveis, e eu sinto um impulso imenso de protegê-la de tudo.

É uma segunda-feira qualquer. Acordo atrasada, visto meu uniforme às pressas, desço as escadas correndo e mal consigo me despedir dos meus pais.

— Tome seu café com calma, Lana — diz mamãe, beijando minha testa.

— Não dá tempo, senhora Marina — respondo, ofegante.

Pego uma maçã e saio correndo para não perder o ônibus.

O dia segue tranquilo, pelo menos até o final da tarde. Estou organizando pedidos e atendendo as mesas quando meu chefe me chama com a expressão carregada de seriedade.

— Lana, preciso que venha ao escritório. Tem alguém para falar com você.

Com meu coração acelerado, sigo para o escritório e, ao chegar, encontro dois policiais, sérios, com os olhos fixos em mim. O mundo parece diminuir sob meus pés enquanto eles falam. Cada palavra soa como uma pedra fria.

— Seus pais sofreram um acidente de carro... Tentaram desviar de outro veículo e perderam o controle... e infelizmente vieram a óbito. 

O ar some. Minha visão embaça, como se o mundo ficasse distante e abafado. Minha visão se turva e ouço um zumbido insistente nos ouvidos. Tento dizer algo, qualquer coisa, mas as palavras não saem.

Meus dedos tremem. Sinto a garganta fechar. A sala parece girar e, num segundo, tudo fica branco, depois escuro. Um pânico surdo me toma, crescendo dentro de mim como uma onda — e então desabo no chão, ofegando, com os olhos arregalados, o coração batendo tão rápido que parece explodir.

— Lana? Você está me ouvindo? — uma voz distante ecoa, mas não consigo responder.

As mãos de alguém tocam meu ombro e me fazem sentar. Ainda estou sem ar, o peito arfando em busca de controle. Alguém coloca um copo de água em minhas mãos, e o vidro gela meus dedos. Só então percebo que estou chorando compulsivamente, um soluço preso à garganta que finalmente encontra uma brecha para sair.

A notícia parecia irreal. Meus pais, a quem me despedi apressadamente pela manhã, estão mortos. 

Sem rumo, volto para casa. Preciso cuidar de Ana, que ainda não entende o que aconteceu. Na cabecinha infantil dela, nossos pais estão apenas "fora", em algum lugar de onde podem voltar. Tento conter o desespero, esconder o luto, oferecer a ela alguma estabilidade — por mais frágil que seja.

Naquela mesma noite, recebo um telefonema do assistente social. Ele explica os procedimentos legais e informa que posso me tornar a tutora de Ana, mas preciso provar estabilidade financeira e responsabilidade. Aquilo me apavora. Sou apenas uma garota que trabalha como garçonete — como posso cuidar de uma criança?

O peso da responsabilidade me esmagava. Sei que não posso pagar a educação de Ana com o salário que recebo, muito menos oferecer a vida que desejo para ela. Quando descubro o internato e o custo das mensalidades, meu coração quase para, mas é a melhor opção que tenho. Me comprometo a visitá-la o máximo possível e garantir que ela tenha o melhor que posso proporcionar. Mas até essa promessa parecia difícil de cumprir. Com o emprego modesto, as dívidas começam a crescer, e percebo que preciso encontrar algo que me permita ganhar mais.

~ Flash Off ~

A imagem no espelho me devolve ao presente. A maquiagem borrada denuncia o que os olhos tentaram esconder.

Respiro fundo, enxugo as lágrimas e me preparo para o próximo cliente. É um magnata do ramo imobiliário, um homem de meia-idade, elegante e sempre pontual. Ele vem todas as quartas, no mesmo horário, e já temos uma rotina que se repete sem falhas. Conversamos sobre amenidades; ele me pergunta um pouco sobre minha vida, mas nunca demais, como se houvesse um limite invisível que ele preferisse manter.

Ao entrar no salão, ele já está à minha espera. Ao me ver, sorri, e caminho até ele com a postura que ele espera.

— Boa noite, My Amore — diz ele, levantando-se e segurando minha mão para um beijo suave.

— Boa noite, senhor. Como foi sua semana? — pergunto, tentando manter a conversa leve, mesmo com a emoção presa na minha garganta.

Ele se recosta no sofá, observando-me com aquele olhar calculado.

— Movimentada, como sempre. O mercado imobiliário nunca dorme. E a sua semana? — Ele sorri de lado. — Espero que esteja cuidando de si.

Concordo, e trocamos algumas palavras sobre as novidades da cidade. A conversa flui enquanto bebemos, com a mesma familiaridade de sempre, até que, em seu estilo característico, ele toca levemente meu rosto e me guia pelas escadas em direção aos quartos.

Nossa rotina é sempre a mesma: conduzo-o ao quarto, onde uma música suave toca, criando um ambiente calmo, e inicio a massagem. Ele aprecia o toque leve das minhas mãos e, vez ou outra, trocamos beijos delicados, quase ensaiados. Estamos juntos ali, mas com limites cuidadosamente estabelecidos.

E, como de costume, ele murmura baixinho:

— Você sabe que não passo desse limite, não é?

Ele se afasta o suficiente para que eu veja o sorriso satisfeito, como se reafirmar aquilo fosse tanto uma promessa quanto uma garantia. Sorrio, um pouco resignada, aceitando o que ele sempre deixa claro.

— Eu sei, senhor. Você sempre deixa isso claro.

Ele inclina a cabeça, com aquele tom de brincadeira séria que lhe é tão característico.

— Porque sei que existe algo na sua vida que a faz olhar para o nada de vez em quando, como se estivesse em outro lugar. E eu... bem, eu respeito isso.

Surpresa com sua percepção, assinto, sentindo-me mais exposta do que jamais estive. Ele segura minha mão por um instante, um gesto simples, mas que parece quase protetor. Há uma gentileza ali — ou talvez apenas a habilidade de manter a ilusão viva. Mesmo assim, é mais do que muitos oferecem, e por isso, parte de mim começa a admirar esse limite confortável que ele impõe.

— Obrigada, Sr. Almeida, por compreender — sussurro, agradecida pelo entendimento silencioso entre nós.

Ele acena em resposta, e, ao sair, lança-me um último olhar, que parece dizer tudo e nada ao mesmo tempo.

A noite avança, repetitiva e silenciosa, como uma trilha que já conheço de cor. Cliente após cliente. Sorriso após sorriso. Até que o silêncio volte a me engolir.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App