Na penumbra que precedia a sangrenta batalha, a aldeia oculta pulsava em silenciosa atividade. Conforme alguns guerreiros afiavam suas armas com óleo de jarina, outros se entregavam a últimos instantes de afeto — mãos entrelaçadas sob mantos de fibra, promessas sussurradas contra peles pintadas de urucum, cada instante de doçura um tesouro roubado aos deuses da guerra.Sob as estrelas que insistiam em brilhar apesar da ameaça de tempestade, os guerreiros mais experientes executaram o Ritual da Fumaça Silenciosa. Um fogo sagrado crepitou no círculo de pedras, suas chamas consumindo ervas que transformavam o odor humano em névoa da floresta. Um por um, os homens atravessaram a cortina fumegante — seus corpos emergindo do outro lado como sombras vivas, indistinguíveis da mata.Eles sabiam. Nas entranhas da terra, nos sussurros das folhas, a mensagem ecoara clara: ao primeiro clarão do dia, os melhores de Donaldo avançariam. Não os bêbados e tolos envenenados pelas travessuras do Saci, nã
Mapache escolhera o refúgio com a destreza de quem joga xadrez contra o próprio destino.O vale entre os montes escuros... um lugar quase esquecido — perto o suficiente da fronteira do Vale Negro para ser conveniente, longe o suficiente da Floresta das Sombras para não atrair olhares indesejados. Quase um não-lugar. Quase uma brecha na realidade.A assassina agora habitava aquela dobra de terra, onde as rochas tinham veios de prata morta e o vento assobiava entre fendas como espectros com segredos.Tupã conhecia aquele tipo de lógica.Mapache não a escondera por bondade.Nem por estratégia comum.Aquele vale era um convite disfarçado.Algo entre uma armadilha e um altar.E Tupã se perguntava, conforme observava os montes ao longe, se a assassina sabia que seu refúgio tinha o hábito de... mudar de forma nas noites de lua cheia.Havia nevado tanto naquela noite.A neve caía em mantos espessos, envolvendo o mundo num silêncio mortal. Tupã estacou diante de Mapache e da deslumbrante jovem
Havia algo errado além do óbvio — os agentes não estavam apenas caçando. Estavam assustados. E não era a prisioneira fugitiva que os perturbava, mas sim a assombração de um nome: Mapache.Quando a escuridão finalmente a envolveu como um segundo manto, Kaoru permitiu-se respirar. O Eclipse teria respostas. Sempre tinha.Mas uma certeza a perseguia — algo além de Naaldlooyee e sua sombria força nesta guerra. Algo antigo e esquecido despertara nas entranhas da noite.“Nem toda sombra é escuridão. Às vezes, ela é a única estrada que resta.”— Provérbio dos Filhos do EclipseA noite viva estava.Não com o barulho do mundo — mas com sua ausência. O tipo de silêncio que só se ouve no alto das árvores, entre os ramos mais antigos da floresta, onde a lua se esconde como uma confidente culpada. O tipo de silêncio que fala com aqueles que sabem ouvir.Kaoru deslizava de galho em galho como um suspiro esquecido, suas vestes de tecido escuro sussurrando contra o vento, os olhos agudos como os de
Kahrienna cerrou os dedos — até as unhas cavarem sulcos em suas próprias palmas, até as articulações ficarem pálidas. — Aceitei a missão de matar Donaldo pela Ordem do Eclipse — disse, a voz um fio cortante, mais fria do que as pedras sob seus pés. — Mas foi por Sairihna. Minha amiga... O nome da amiga saiu como um corte aberto. Ela engoliu o nó de dor que subia pela garganta, então respirou fundo. Lembrou-se dos gritos abafados que ouvira naquela noite, das mãos da amiga arranhando a terra conforme era arrastada para a poça abissal. Lembrou-se, também, do próprio corpo após ser maculada por Donaldo — dos ferimentos que não cicatrizavam direito, da dor que ia além da carne, algo pior que as dilacerações na virilha e na vulva e... as lesões no útero. Sairihna, na flor da puberdade e com seus olhos ainda cheios de luz... arrastada para as profundezas pela sombra de Donaldo. Os Filhos do Eclipse tentaram salvá-la. Fracassaram. Kahrienna tocou involuntariamente o baixo
Antes de partir, Kaoru olhou para o alto. A lua estava cheia, mas coberta por névoa.— Selo... Se eu não voltar em três noites...— ...direi à Sombra-Mestre.— E diga também... que o jogo mudou.O velho assentiu, derretendo-se de volta nas árvores.Kaoru desapareceu na escuridão como uma nota aguda num fúnebre cântico.Mas em sua mente, um nome ainda ecoava.“Mapache.”E nas profundezas da floresta, uma sombra sem rosto... sorriu.Kaoru cortava o ar entre as árvores como uma flecha, seu corpo um vórtice de movimentos espectrais. O cheiro que perseguia era... tênue — um traço de magia que praticamente não se dissipava como fumaça, mas dançava no ar, como se Mapache e os duendes das sombras tivessem deixado para trás não um rastro, mas uma assinatura. Algo entre o perfume de ervas queimadas e o frio metálico da neblina noturna.Ela poderia invocar os Ecos Rastrais, é claro. Rasgar um pedaço de sua própria energia vital para iluminar pegadas espectrais no ar. Mas talvez não estivesse pro
Tupã não confiava em Mapache.O sujeito era um quebra-cabeça envolto em névoa — parte xamã ancestral, parte engenharia moderna, cujos olhos pareciam enxergar através do tempo e espaço. Ele o ajudara? Sim. Consertara seu corpo biônico na Colônia das Sombras? Também. Usara-o para arrancar Kahrienna da cela de Donaldo? Sem dúvida.Mas tudo tinha o sabor de um jogo de xadrez.Conveniência estratégica...E Tupã?Apenas mais um peão.Agora, Mapache partira, deixando Kahrienna sob seu cuidado com a desculpa de "negociar" com Kaoru — aquela jovem raposa dos olhos afiados. Enquanto isso, o tempo escorria entre seus dedos como areia negra.O Vale Negro o chamava.O altar precisava ser destruído.Yara precisava ser salva.Mas as palavras do Anarok ecoavam em seu crânio como um lento veneno:"Ela está sob os cuidados do mestre Naaldlooyee. Recebendo um tratamento... especial, a safada.""Nosso mestre já sondou cada centímetro do corpo dela."Tupã cerrou os punhos, as juntas metálicas rangendo.Er
A chuva martelava o telhado como dedos ossudos, seu ritmo quebrado apenas pelo ocasional pio de um mocho nas trevas. O aposento, envolto na penumbra dançante das lamparinas, exalava o peso de séculos — suas paredes de madeira enegrecida consumidas pelo tempo, mas ainda de pé.Como silenciosas testemunhas.O trono de ébano dominava o espaço, suas ancestrais inscrições sussurrando segredos em línguas mortas para quem soubesse ouvir. Nele, Arikhan, o Espectro do Eclipse, permanecia imóvel, tão estático quanto as sombras que o rodeavam. Os únicos outros presentes eram vultos — estrategistas encapuzados, cujas faces permaneciam ocultas, mas cuja atenção era tangível.Então, como uma fenda abrindo-se no véu da realidade, os olhos de Arikhan despertaram.Dois rasgos gélidos sob o capuz, pairando sobre a adaga que repousava em sua mão. A lâmina de prata escura devolvia um brilho pálido, seu fio perfeito como o silêncio que precede o golpe mortal.— Magia — sua voz ecoou — é uma corrente.Os e
Conforme a curandeira aplicava o cataplasma de amargas ervas em seus ferimentos, Bat fechou os olhos — e foi arrastado de volta àquela momento. A tenda de Donaldo. O ar pesado com o cheiro de incenso e sexo e suor. As concubinas nuas, seus corpos dourados pela luz das lamparinas, inconscientes do assassino que se movia entre as sombras como um peixe em águas escuras. Bat atravessara as pregas do tecido como se fossem névoa, sua lâmina faminta pelo coração do explorador das sombras. O golpe foi perfeito — silencioso e preciso e mortal. Mas atingiu apenas a vaziez. O cobertor esfarrapado cedeu sem resistência. Bat recuou, seus sentidos em máximo alerta. "Como? Como?..." — Acha que pode me matar em meu próprio território? A voz... veio de todos os lados e de lugar nenhum. Nisso, uma faca cortou o ar. Bat desviou por um triz, mas não o suficiente — a lâmina lhe abriu a bochecha como um perverso beijo. Sangue quente escorreu por seu queixo. Ele contra-atacou, emergindo das sombras