Capítulo 05

Madson Granger

Nelson, CA

O cheiro de hospital sempre foi algo que me deixou em alerta. Era um cheiro limpo demais, estéril demais, como se tentasse esconder algo. Algo que não tinha coragem de dizer em voz alta. Caminhava ao lado da tia Agnes pelos corredores claros, enquanto o som dos nossos passos ecoava de forma quase agressiva contra o chão brilhante. As luzes brancas pareciam fortes demais para os meus olhos já cansados.

Era o dia da cirurgia.

Chegamos cedo, ainda antes do sol vencer completamente a linha das montanhas. Sabrina dirigira até o hospital conosco, insistindo em ficar. Achei que ela iria embora depois de deixar a tia na recepção, mas ela cruzou os braços e disse, firme:

— Eu vou ficar com você.

Essa simples frase fez algo em mim amolecer.

Agnes segurava minha mão com força. Não de medo — ela nunca foi do tipo que demonstra medo. Parecia mais uma tentativa de parecer ainda mais presente, ainda mais real. Seu sorriso era calmo, mas seus olhos carregavam aquele brilho típico de quem estava prestes a cruzar uma linha invisível.

— Não faz essa cara, menina — ela sussurrou, enquanto me olhava por cima do ombro. — Eu vou sair dessa melhor do que entrei.

Tentei sorrir.

Não consegui.

Quando os médicos chegaram e a cercaram, explicando procedimentos com palavras que mais pareciam um idioma próprio, senti meu estômago se contorcer. Beijei sua testa e sussurrei um “eu te amo” perto demais de uma despedida. Eu odeio despedidas.

Acompanhei com os olhos o momento em que a maca sumiu pelo corredor, até restar apenas o silêncio. E foi nesse silêncio que algo dentro de mim se partiu.

Uma angústia antiga, amarga e familiar voltou a se espalhar pelo meu peito.

O medo.

Não o medo raso, comum.

Mas aquele pavor que nasce quando o mundo já te ensinou que tudo o que você ama pode desaparecer.

Sede, enjoo, frio na nuca.

E então eu não estava mais em Nelson.

Eu estava em Boston.

Dois anos atrás.

Eu estava saindo de uma aula de gastronomia. Ainda conseguia lembrar do cheiro de massa fresca impregnado nas minhas mãos, do cheiro de cebola caramelizada na bancada, do vapor que embaçava as janelas pequenas da sala. Eu estava começando a achar que talvez cozinhar fosse algo que eu pudesse fazer bem. Algo que me puxasse de volta para a vida.

Foi quando meu celular tocou.

Número desconhecido.

Não sei explicar, mas assim que vi aquele número estranho na tela, meu corpo inteiro reagiu. A espinha gelou. Meu estômago virou. Algo dentro de mim sussurrou que aquilo era o fim de alguma coisa.

Eu atendi.

— Alô?

Silêncio.

E então uma voz educada demais.

— Senhorita Granger?

— Sou eu — respondi, com a voz já trêmula.

— Aqui é do Massachusetts General Hospital. A senhorita poderia vir até aqui com urgência?

O mundo começou a girar.

Me apoiei na parede do corredor, enquanto o som das conversas dos alunos virava um ruído distante.

— O que aconteceu?

Houve uma pausa do outro lado da linha. Curta demais. Longa demais.

— Seus pais sofreram um acidente de carro. Precisamos que a senhorita venha até aqui para mais informações.

Eu não escutei o resto.

Meu corpo deslizou até o chão frio.

Não chorei naquele momento. Não gritei. Não reagi.

Eu apenas soube.

Eu sabia que tinha perdido tudo.

— Mads?

A voz de Sabrina me puxou de volta para o presente. Pisquei algumas vezes, sentindo o peso do hospital de Nelson voltar a se formar ao meu redor. As cadeiras cinzas. O cheiro forte de desinfetante. O tilintar distante de carrinhos metálicos.

Ela estava me observando com cuidado demais.

— Você foi embora por alguns minutos — ela disse, em voz baixa. — Consigo sentir o cheiro da sua angústia daqui.

Isso me fez soltar um pequeno riso sem humor.

— Engraçado — murmurei. — Você fala como se fosse uma espécie de animal.

Sabrina continuou em silêncio, seu olhar me encorajando a falar. Olhei para as próprias mãos. Estavam geladas. Levemente trêmulas.

— Eu estava no dia em que perdi meus pais — confessei. — De novo.

Ela assentiu devagar, sua mão veio até meu ombro, com carinho.

— Está com medo?

A pergunta não teve pena, nem dó. Só verdade. E eu agradeci por isso. Eu odiava olhares de pena. Eles sempre me fizeram sentir pequena.

Respirei fundo, sentindo o ar gelado entrar pelos meus pulmões.

— Estou — admiti. — Mas não do jeito que costumava estar.

Endireitei os ombros, ajeitei o cabelo atrás da orelha.

— Eu sei que ela vai ficar bem.

Eu realmente queria acreditar nisso.

As horas se arrastaram de um jeito quase cruel. O relógio na parede parecia zombar de mim. Eu levantava, sentava. Caminhava até a janela. Observava os carros no estacionamento. Voltava e sentava de novo.

Sabrina não saiu do meu lado.

Falamos coisas aleatórias. Filmes ruins. Música. Conversas sem importância real, mas que serviam para manter meu coração longe do desespero por alguns segundos.

Até que passos se aproximaram. Sapatos mais firmes. Ritmo calmo. Levantei o olhar e uma enfermeira parou diante de nós.

Me levantei tão rápido que a cadeira quase caiu.

— Como está minha tia?

Minha voz saiu num fio.

A mulher sorriu, um sorriso verdadeiro, daqueles que não nascem apenas da obrigação.

— Ela está bem — explicou. — A cirurgia foi um sucesso. Já está sendo encaminhada para o quarto.

O ar voltou aos meus pulmões de uma vez só.

Senti como se um peso colossal fosse arrancado de cima do meu peito. Minhas pernas quase desistiram de sustentar meu corpo. Fechei os olhos por um breve instante.

Obrigada.

Não sei para quem eu agradei. Talvez para alguma força que ainda se importasse comigo.

Talvez para a lua que eu conseguia ver fraquinha pela janela do corredor.

Quando olhei para Sabrina, ela estava sorrindo.

E foi ali que eu percebi, que talvez — só talvez — eu não estivesse totalmente sozinha neste mundo.

— Posso vê-la? — minha voz saiu mais fraca do que eu queria, quebrada pela ansiedade que já estava dominando meu peito.

A enfermeira me observou por alguns segundos, como se estivesse pesando o que dizer.

— Ainda está sob efeito da anestesia — explicou com suavidade. — Mas posso levá-la até o quarto, se desejar.

Meu coração deu um salto.

— Quero, sim — respondi rápido demais, com medo de que ela mudasse de ideia.

Ela assentiu e fez um gesto gentil com a mão, pedindo que a acompanhássemos. Eu e Sabrina seguimos pelo corredor em silêncio. As paredes claras pareciam mais longas do que antes, como se o hospital estivesse se esticando, tentando me testar. Cada passo meu parecia carregar o peso de anos de medo, perdas e despedidas não ditas.

Paramos em frente a um dos quartos. A enfermeira abriu a porta devagar e deu espaço para entrarmos.

Entrei primeiro.

E tudo desacelerou.

O cheiro ali dentro era diferente — menos agressivo, mais próximo de algo humano. Lembro de ter reparado nas cortinas levemente abertas, deixado a luz do por do sol entrar em tons suaves. A máquina ao lado da cama emitia bipes constantes, um som que, estranhamente, me trouxe calma.

Minha tia estava deitada.

Parecia menor do que eu lembrava. Mais frágil. Mais real.

Seus cabelos curtos estavam levemente bagunçados sobre o travesseiro branco, algumas mechas fora do lugar. Sua pele tinha aquele tom pálido de quem acabou de atravessar algo grande — e ainda assim, ela parecia… serena.

Aproximei-me devagar, como se temesse quebrar o momento.

Minha mão tocou seus cabelos quase sem que eu percebesse. Afastei suavemente os fios rebeldes da testa dela, com o mesmo carinho que ela usava quando fazia isso comigo quando eu era criança e tinha pesadelos.

Foi então que senti o nó se formar na minha garganta.

O medo que eu carregava desde a recepção, desde o corredor, desde a sala de espera… começou a se desfazer. Lentamente. Como gelo derretendo depois de uma tempestade.

Ela estava ali. Viva. Respirando.

Eu sorri.

Um sorriso pequeno, trêmulo, cheio de cicatrizes.

Inclinei-me e depositei um beijo delicado em sua testa. Quente. Familiar.

— Obrigada… — sussurrei, minha voz quase sem som. — Obrigada por aquela ligação.

O quarto parecia respirar comigo.

Minhas mãos tremiam agora.

— Eu tenho certeza… — continuei, aproximando minha testa da dela — …que eu não teria sobrevivido àquela noite.

O peso das palavras me atingiu assim que as soltei. Mas eram verdades que viviam presas dentro de mim há tempo demais.

Eu precisava dizê-las. Nem que fosse só para o silêncio daquele quarto.

— Você me salvou — murmurei. — Mesmo sem saber.

Sabia que ela não podia ouvir. Sabia que estava anestesiada, imersa naquele sono profundo induzido.

Mas eu precisava agradecer.

Porque, pela primeira vez em anos… alguém ainda estava ali para me amar.

E isso, sozinho, já era mais do que eu jamais achei que mereceria.

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