Mundo de ficçãoIniciar sessãoLorena
Me senti envergonhada por sair do carro de Felipe daquele jeito, apressada, sem olhar para trás. Parecia que estava fugindo — e, no fundo, eu estava.
O beijo tinha sido inesperado. Bom, doce, intenso, mas inesperado. Eu não estava preparada para aquilo. Não era o tipo de pessoa que se envolvia com facilidade, e, embora já tivesse ficado com algumas pessoas antes, com ele era diferente. Havia algo em Felipe que me deixava vulnerável, como se ele enxergasse partes de mim que eu preferia esconder.Assim que entrei em casa, meu pai já estava à minha espera, com aquele olhar avaliador que eu conhecia bem.
As perguntas vieram como de costume — se ele havia me elogiado, se parecia interessado, se tinha dito algo sobre me ver de novo.Na cabeça dele, Felipe era um alvo. Um homem que poderia mudar nossas vidas, e eu era apenas o meio para isso.— E então? — ele perguntou, com um sorriso impaciente. — Você fez o que devia? Ele está encantado por você, não é?
Tentei me esquivar, mas, ao perceber meu silêncio, o sorriso dele sumiu.
— Você é uma inútil mesmo, Lorena.Não respondi. Não adiantava. A realidade é que Felipe era, sim, um homem interessante — talvez o mais interessante que eu já conheci —, mas não pelos motivos que meu pai imaginava. Ele era gentil, atento, fazia perguntas que mostravam real interesse. Ele me olhava de um jeito que ninguém mais olhava: como se eu fosse alguém, e não uma ferramenta.
Os dias foram passando e eu não tive mais notícias dele.
Parte de mim desejava que ele entrasse em contato, mas outra parte — a mais assustada — pedia que não.Meu pai, porém, não tinha a mesma paciência.— Já passou um mês, Lorena! — ele gritou uma manhã. — Você teve a chance perfeita e deixou escapar!
O resto veio rápido demais: o puxão violento no cabelo, o tapa ardido no rosto, o empurrão que me fez cair contra a mesa.
Senti a dor nas costas, nos braços, e uma vontade absurda de desaparecer.Passei dois dias de cama, tentando não pensar, tentando apenas respirar.Às vezes, eu me perguntava se ainda queria viver.
Foi então que, uma manhã, o celular vibrou.
Felipe Andrade."Bom dia, Lorena. Todos adoraram você naquele almoço e eu quero contratá-la novamente."
Demorei para responder. Não porque não quisesse vê-lo, mas porque precisava me recompor. Precisava estar “apresentável”, como meu pai dizia.
No fim, aceitei, porque não havia escolha — e, no fundo, porque eu queria.Se meu pai soubesse que recusei algo vindo de Felipe, o castigo seria bem pior.No dia do almoço, estava um calor insuportável, mas escolhi uma blusa de manga comprida.
Eu não podia correr o risco de alguém ver as marcas.Meu corpo ainda doía. Cada movimento era um lembrete.Mas, quando cheguei à casa da família dele, algo em mim relaxou. Eles eram gentis, educados, acolhedores. Ninguém ali gritava. Ninguém me olhava com raiva.
Toquei o piano, conversei com a avó dele — uma senhora doce e encantadora — e, por algumas horas, esqueci de tudo.Ainda assim, cada vez que eu me movia, a dor voltava, e eu tentava disfarçar. Eu sorria, falava baixo, me controlava para que ninguém percebesse.
Quando a tarde terminou, Felipe me levou de volta para casa.
No carro, o silêncio não era desconfortável — era... cheio.Chegando perto do prédio, ele estacionou, olhou para mim e perguntou:— Posso te beijar?
Meu coração acelerou. Por um instante, pensei em dizer não — talvez devesse —, mas não consegui.
Porque eu queria. Eu queria muito.Quando ele me beijou, o mundo pareceu parar.
Era suave, cheio de cuidado, e por um segundo me senti viva de verdade.Até que ele me puxou pela cintura.
A dor veio como uma lâmina, cortante, insuportável.— Ai... — escapou dos meus lábios antes que eu conseguisse controlar.
Ele se afastou na hora, preocupado. — Te machuquei?
Mentir era o único caminho seguro.
— Não, está tudo bem. Eu caí no banheiro esses dias, ainda estou um pouco dolorida.Senti os olhos dele me estudando, como se tentasse decifrar o que eu escondia.
Desviei o olhar, peguei a bolsa e abri a porta.— Obrigada pelo trabalho e pela carona.
Sai apressada, como da última vez, com o coração acelerado e a alma dividida entre o medo e o desejo.
Felipe era o tipo de homem que eu poderia amar.Mas eu não podia me permitir isso. Ainda não.Ele havia me contratado para dois finais de semana — e ali estava eu novamente, sentada no banco do passageiro, observando as ruas passarem pela janela sem saber exatamente o que pensar. O silêncio dentro do carro era confortável, mas ao mesmo tempo me deixava inquieta. Eu tentava não pensar no beijo, nem na forma como o coração disparou quando o vi novamente naquela manhã.
— Esqueci de te avisar pra trazer um biquíni, — disse Felipe, quebrando o silêncio com um sorriso leve. — Está muito calor hoje. Se quiser, pode usar a piscina.
Olhei para ele rapidamente e voltei a encarar a rua.
— Eu agradeço, mas estou a trabalho. E eu… não uso biquíni, — respondi, tentando manter a voz firme.Não queria parecer mal-educada, mas era a verdade. Eu não podia. Ainda haviam marcas no meu corpo — algumas visíveis, outras nem tanto —, e a ideia de alguém vê-las me dava calafrios.
Quando chegamos à casa dos pais dele, o clima era o mesmo de sempre: agradável, acolhedor, leve. Aquela família me fazia sentir… normal. As pessoas me tratavam com gentileza, sem cobranças, sem segundas intenções. Eu podia apenas ser Lorena, a pianista.
A avó dele me recebeu com um abraço carinhoso e pediu que eu tocasse “aquela música bonita da última vez”. Sorri.Toquei, conversei, almocei com eles — e, por algumas horas, me esqueci de tudo o que havia do lado de fora daquela casa.
Felipe, por sua vez, mal disfarçava os olhares, eu sentia. Toda vez que erguia os olhos do piano, ele estava ali, me observando com aquele jeito tranquilo e, ao mesmo tempo, intenso. E por mais que eu tentasse ignorar, era impossível.Aquela atração me assustava. Eu não podia sentir aquilo, não era seguro, mas cada vez que ele sorria, algo dentro de mim se desarmava um pouco.
Quando o almoço terminou, fiquei um pouco mais tocando para a avó dele, até que Felipe disse que me levaria de volta.
O caminho de volta, porém, foi diferente. Ele não puxou assunto, não comentou nada sobre o dia, nem sobre o trabalho.Quando o carro parou em frente ao meu prédio, ele apenas se virou e disse:— Obrigada por mais uma vez, Lorena. Foi ótimo ter você lá.
— Obrigada pelo convite… e pela carona, — respondi, tentando disfarçar a pontada de decepção na voz.
Ele assentiu, com aquele olhar calmo de sempre, e então desviou o olhar para a frente.
— Boa noite.— Boa noite.
E foi só isso. Nenhum beijo, nenhum toque. Apenas silêncio e distância.
Saí do carro e fiquei parada na calçada por um instante, observando o carro se afastar.
Uma parte de mim se sentia aliviada — era melhor assim.Mas outra parte… outra parte se sentia triste, quase vazia.Talvez ele não tivesse gostado do beijo. Ou talvez tivesse percebido o quanto eu era problemática, cheia de segredos, cheia de feridas que eu não podia mostrar.Suspirei e subi até o apartamento.
Assim que abri a porta, ouvi a voz do meu pai vindo da sala.
— Como foi hoje? — perguntou, sem sequer desviar os olhos do copo de uísque.— Foi bom, — respondi, tentando soar natural. — Acho que eles realmente gostaram do meu trabalho. Talvez me contratem mais vezes.
Ele riu, mas não parecia satisfeito.
— Lorena, você precisa conquistar o Felipe.Revirei os olhos, cansada. — Pai, eu fui lá pra tocar, não para conquistar ninguém.
— Você ainda não entendeu, né? — disse ele, se levantando. — Precisamos de uma parceria com a empresa dele. E um homem apaixonado faz qualquer coisa, até fechar contratos sem obstáculos.
— E não tem como começar uma parceria sem me colocar no meio disso? — perguntei, a voz falhando no fim.
Ele se aproximou devagar, com aquele olhar frio que eu conhecia bem.
— Não seja idiota, Lorena.Virei as costas e fui para o meu quarto antes que ele pudesse dizer mais.
Fechei a porta e respirei fundo, tentando conter as lágrimas.Deitei na cama e fiquei encarando o teto.
Por que ele queria tanto aquilo? A empresa era grande, tinha recursos, contatos… não precisava de mim.Mas então me lembrei.Das vezes em que ele me apresentou a empresários, das conversas insinuantes, dos olhares nojentos que eu precisava suportar para não apanhar depois.E o estômago se revirou.
Fechei os olhos, tentando afastar as lembranças.
Mas uma imagem insistia em voltar: o olhar de Felipe, calmo, sincero, diferente de todos os outros.E uma pergunta se formou na minha cabeça — perigosa, tola, mas inevitável:O que aconteceria se ele descobrisse quem eu realmente era… e o que eu vivia dentro daquela casa?






