Mundo de ficçãoIniciar sessãoFelipe
A quem eu queria enganar?
Aquela mulher era linda. O jeito que tocava, a forma como respondia, como sorria… tudo nela parecia perfeitamente alinhado. Fiquei observando-a durante toda a apresentação e, sinceramente, aquela já tinha se tornado uma das cenas mais bonitas que eu já presenciei.Quando ela aceitou almoçar conosco, por uma hora eu vi uma Lorena diferente. Não havia perfeição, e sim naturalidade. Um sorriso mais solto, um tom de voz leve, menos controlado — e aquilo me despertou uma curiosidade que eu não soube explicar.
Ela era simpática, comia com gosto, experimentava os doces como uma criança. E não tinha cena mais linda do que vê-la conversando e tocando para minha avó. Depois de presenciar tudo aquilo, algo dentro de mim se moveu — uma sensação estranha, nova. Eu só tinha vontade de fazer uma coisa: beijá-la.
E foi o que fiz.
De forma totalmente inapropriada, mas fiz.Quando nos afastamos, ela me olhava assustada, como se nunca tivesse vivido algo assim antes. E começou a se desculpar — como se fôssemos dois adolescentes atrapalhados e não dois adultos. Depois, saiu do carro, e eu fiquei ali, observando-a caminhar até o portão, com a certeza de que queria vê-la de novo.
E se ela quisesse, eu repetiria aquele beijo. Mas sem desculpas.
Um mês se passou. Nenhum sinal dela. Não a encontrei em lugar algum.
E eu já começava a rir de mim mesmo — o que estava acontecendo comigo? Eu não era assim. Mas ela… ela me deixava curioso.Eu precisava conhecê-la melhor.
A oportunidade veio de onde eu menos esperava.
— Filho, sua avó não para de perguntar pela moça pianista. Será que ela não teria um horário em algum fim de semana? Podíamos fazer um almoço novamente e convidá-la — sugeriu minha mãe.
— Eu vou verificar a agenda dela, mãe. Assim que ela tiver livre, marcamos algo — respondi, tentando disfarçar o sorriso.
Era a desculpa perfeita. Um almoço em família, ela tocando… e eu a levando em casa novamente. Ou melhor, dessa vez, eu iria buscá-la também.
Peguei o celular e mandei a mensagem:
“Bom dia, Lorena. Aqui é o Felipe Andrade. Todos adoraram você naquele almoço e quero contratar seus serviços novamente. Será um almoço também, como da última vez. Aguardo sua resposta.”
Enviei e fiquei esperando. Ela conseguia me deixar ansioso de um jeito inexplicável. Eu olhava o celular a cada cinco minutos, esperando uma notificação que nunca chegava.
O dia acabou, e nada. Pensei em ligar, mas achei que seria invasivo.
Dois dias depois, finalmente a resposta veio:
“Bom dia, Felipe. Desculpe a demora. Tenho esses dois finais de semana livres. Será um prazer tocar para a sua família novamente.”
Dois finais de semana.
Perfeito.Contratá-la para os dois era a desculpa ideal para observá-la mais de perto.Respondi, combinei tudo, e a semana passou arrastada. Quando eu não estava no escritório, só conseguia pensar no sábado.
“Às onze horas passo para te buscar.”
Mandei a mensagem na sexta.
No sábado, cheguei ao endereço dela dez minutos antes do combinado. Às onze em ponto, ela saiu do prédio. Cabelos soltos, óculos escuros, e, apesar do calor, uma blusa de manga comprida.
Diferente. Séria demais.Nada da leveza que eu lembrava.Saí do carro e abri a porta para ela.
— Bom dia — disse, num tom neutro.
— Bom dia — respondi, fechando a porta e dando a volta até o meu lado.
O caminho até a casa dos meus pais foi silencioso. Desconfortável, até. Ela estava distante, e eu não sabia se era por causa do beijo.
— Lorena — comecei, mantendo o olhar na estrada —, sobre o outro dia… eu quero me desculpar por ter te beijado daquele jeito.
— Somos adultos, Felipe. Eu também quero me desculpar por ter reagido daquela forma. Foi… inesperado — respondeu ela, a voz baixa, quase fria.
Estacionei em frente à casa dos meus pais, saí do carro e fui abrir a porta para ela. Ao segurá-la pelo braço para ajudá-la a descer, ouvi um gemido baixo.
— Te machuquei? Me desculpa.
— Não, tá tudo bem. Apenas bati o braço essa semana — respondeu, forçando um sorriso.
Assim que entramos, minha avó veio abraçá-la, e, mais uma vez, eu percebi aquele semblante de desconforto. Não era só timidez — era dor.
Minha mãe também se aproximou, a cumprimentou com gentileza, e logo fomos para a área externa, onde o piano já a esperava.
— Fique à vontade, Lorena — disse minha mãe.
Fiquei observando de longe enquanto ela se sentava e ajeitava as partituras. Havia algo estranho. O mesmo olhar distante, o mesmo cuidado para esconder o braço. Mas, quando começou a tocar, tudo desapareceu. As mãos leves, a postura delicada… e aquela serenidade inexplicável que ela transmitia.
Minha avó sentou-se ao lado, sorrindo, completamente encantada.
Quando o almoço ficou pronto, meu pai anunciou:
— O almoço está servido!
Todos foram para a mesa, menos ela. Lorena continuou ali, tocando baixinho.
Aproximei-me.
— Vamos almoçar — disse.
— Estou bem — respondeu, sem parar de tocar.
— Você é minha convidada, e meus convidados almoçam com a minha família — insisti.
— Não sou sua convidada, estou trabalhando — retrucou, olhando rapidamente para mim.
Sorri. — Então, da próxima vez, eu te convido, não pago pelos seus serviços e aí você almoça conosco.
Pela primeira vez naquele dia, ela sorriu de verdade.
Ela se levantou devagar e caminhou até a mesa. O movimento era lento, contido — como quem tenta disfarçar a dor.
— Tem certeza de que está tudo bem? — perguntei baixinho.
— Sim, estou — respondeu, sem olhar pra mim.
Mas não estava.
Eu sabia que não estava.Observei Lorena durante o almoço com a sensação de que algo nela escapava. O sorriso era gentil, o olhar sereno, e a conversa fluía com naturalidade — ela falava com meus pais, ria das histórias da minha avó, elogiava a comida com sinceridade. Tudo nela parecia leve, mas, de tempos em tempos, uma sombra de dor passava por seu rosto. Era quase imperceptível, mas eu notava. Bastava ela se mover um pouco diferente, mudar de posição ou alcançar um prato para que o semblante se contraísse.
Tentei não parecer invasivo, mas não conseguia deixar de observar. A cada gesto dela, a dúvida crescia: aquilo não parecia apenas o incômodo de quem bateu o braço. Havia algo mais ali.
Mesmo assim, Lorena manteve-se impecável. Tocou mais tarde para minha avó e, como sempre, encantou a todos. As duas juntas eram uma cena bonita de ver — minha avó sorria como há tempos eu não via, e Lorena parecia mais solta, mais à vontade, como se o piano fosse um refúgio silencioso onde ela pudesse existir sem medo.
Ficamos ali a tarde toda, e eu só percebi o tempo passar quando vi o sol já baixo, desenhando tons dourados sobre o jardim.
Às quatro, ela se levantou, despediu-se de todos e agradeceu pelo almoço. Ofereci-me para levá-la de volta, e ela aceitou com aquele mesmo tom educado de sempre.
O caminho de volta foi silencioso. Lorena olhava pela janela, o vento bagunçando seus cabelos, e eu lutava contra a vontade de dizer qualquer coisa só para prolongar aquele momento. Quando estacionei em frente ao prédio dela, girei devagar a chave da ignição e me virei para encará-la.
— Posso te beijar? — perguntei, com receio da resposta.
Ela me olhou surpresa, séria, o olhar buscando o meu como se pesasse as palavras. Por um instante, achei que fosse recusar. Mas não o fez.
Quando nossos lábios se tocaram, o tempo pareceu parar. Era um beijo calmo, mas intenso. E era melhor do que eu imaginava — havia algo de doce, de contido, de vulnerável. Senti as mãos dela tocarem meu braço, hesitantes, e me deixei levar.
Instintivamente, puxei-a pela cintura, e foi então que ela gemeu baixo, de dor.
Afastei-me de imediato. — Desculpa, eu te machuquei?
Ela respirou fundo, visivelmente constrangida. — Não, está tudo bem. É que... eu caí no banheiro esses dias. Ainda está um pouco dolorido, mas já está melhorando.
Aquilo soou estranho. “Caiu no banheiro”? Talvez fosse verdade, mas a maneira como ela desviou o olhar, apressada em mudar de assunto, me deixou desconfiado.
— Tem certeza? — insisti, tentando não parecer invasivo.
— Tenho, de verdade — respondeu, abrindo a bolsa e sorrindo de leve. — Obrigada por me levar e pelo convite de hoje. Foi tudo muito agradável.
E antes que eu dissesse qualquer coisa, ela abriu a porta, agradeceu novamente e saiu.
Fiquei ali, com as mãos ainda no volante, observando-a entrar no prédio. Uma parte de mim queria acreditar que ela realmente havia caído. Mas outra, mais insistente, dizia que aquilo era apenas o que ela queria que eu acreditasse.
De qualquer forma, uma coisa era certa: eu não ia deixá-la desaparecer da minha vida outra vez.







