CAPÍTULO 1
LAVÍNIA NARRANDO Meu pai morreu. Simples assim. Um infarto dentro do escritório em Milão. Sem despedida, sem tempo pra entender. Um segundo ele era o mafioso mais temido da cidade, no outro, um corpo estendido entre papéis e pastas. Foi como se o chão tivesse se aberto. Eu não era filha de sangue, mas era tudo o que ele tinha — e ele, tudo o que eu conhecia. Fui adotada quando bebê, tirada de um orfanato qualquer por aquele homem cheio de sombras. Me criou como princesa: luxo, silêncio, poder. Mas nunca carinho. Dias depois, o testamento chegou. Eu herdei tudo. Casas, carros, contas, até os segredos. Mas tinha uma cláusula. > “A tutela e administração de bens ficará sob responsabilidade de Denner Romano até Lavínia completar 21 anos.” Eram 2 testamentos o segundo seria aberto no Brasil. Denner. O nome que meu pai nunca falava. O irmão renegado. E, agora, meu tutor. Foi assim que vim parar no Brasil. Sozinha. Sem tempo de chorar o luto, sem entender direito o que estava por vir. Tudo que me disseram era que Denner morava no Rio de Janeiro, num lugar chamado Turano, e que era conhecido como R.B. — chefe de morro, traficante, bandido temido. Quando pisei no Galeão, parecia que o mundo tinha virado do avesso. O calor grudava na pele, os sons eram mais altos, o cheiro mais forte. Um motorista me esperava. Silencioso. Blindado. Me levou direto pro alto do morro. Lá, entre armas nas esquinas, funk alto e gente de olho em mim como se eu fosse um ET, vi ele pela primeira vez. Denner. Alto, moreno, tatuado, com aquele olhar que atravessa a gente. Ele me olhou por inteiro, sem disfarçar. Não disse “oi”, nem perguntou como eu tava. — Lavínia? — Sim. Minha voz soou segura, mas por dentro eu tremia. Era ele. Meu tutor. Meu tio. O estranho que agora mandava na minha vida. Ele abriu o portão. Eu entrei. A casa era simples, mas tinha uma ordem estranha. Cheiro de cigarro e comida. Um cachorro latia no fundo. Um segurança me vigiava calado. Denner se jogou no sofá como se o mundo fosse dele. — Eu não sabia que o Miguel tinha adotado alguém. — Ele também nunca falou muito sobre você. — Normal. A gente se afastou faz tempo. Ficamos em silêncio. Tenso. — E agora? — perguntei. — Vai cuidar de mim? Ele me encarou. — Vou cuidar do que é seu. Do que era dele. Até você estar pronta. — Vou morar aqui? — Vai. A resposta dele foi seca. Definitiva. Ali mesmo, percebi: eu não tinha escolha. Não mais. Nos dias que vieram, entendi rápido que aquele mundo funcionava em outro ritmo. Gente demais, barulho demais, olhares demais. Eu era "a filha do patrão que veio da gringa", e isso já bastava pra causar alvoroço. As mulheres me olhavam com raiva. Os homens, com desejo. E eu… tentava não olhar demais pra ele. Denner. Era errado, eu sabia. Ele era velho demais, perigoso demais, mandava matar com um telefonema. Mas eu sentia. Cada vez que ele passava perto, cada vez que falava firme, cada vez que me olhava. À noite, eu escutava a voz dele dando ordens, às vezes gritando, às vezes rindo com alguma mulher no telefone. E mesmo assim, havia dor no fundo da voz. Ele não era bom. Mas também não era vazio. Tinha uma história ali. Tinha fogo. E eu? Eu carregava dentro de mim o desejo mais proibido da minha vida. Eu era vista como um alvo fácil. Nos becos, cochichavam. No mercado, seguiam meus passos. Uma ruiva de pele branca, cabelo alinhado, jeito europeu demais pra estar ali. As meninas do morro me olhavam como se eu tivesse roubado algo que era delas — talvez a atenção dele. Talvez o silêncio dele. Talvez o quarto vago da casa dele. No segundo dia, acordei com o som de tiros. Ninguém gritou. Ninguém correu. — isso aqui é o Turano. disse Denner, fumando um cigarro como se estivesse comentando o clima. Era estranho. Ele me tratava com indiferença. Mas também com um cuidado seco, prático, firme. Nada passava sem a aprovação dele. Me deu um quarto, mandou colocar ar-condicionado, pediu que comprassem alimentos.— e depois sumia. Só voltava à noite, cheirando a cigarro, pólvora e perfume barato. Eu fingia que dormia. Mas escutava tudo. Ele era o tipo de homem que não explica. Só manda. Que não pede, só toma. E quanto mais ele me ignorava… mais eu queria ser vista. — Vai sair assim? — perguntou um dia, me vendo de short jeans e top. — Tem algum problema? — Tem. Aqui não é passarela de riquinha. Virei as costas e fui assim mesmo. Queria testar os limites dele. Queria saber até onde ele se importava. Voltei pra casa no fim do dia e encontrei dois moleques com a cara inchada. Tinha dado ordem pra bater em quem olhasse demais pra mim. — Você enlouqueceu? gritei, entrando na sala. — Eu disse que ninguém toca em você. Ficamos nos encarando. A tensão entre a gente era um campo minado. Um passo emź falso, e tudo explodia. — Você não manda em mim. — Enquanto morar aqui, mando sim. Respirei fundo, tentando segurar o ódio. Ou o desejo. Já não sabia mais qual dos dois me consumia mais. Naquela noite, sonhei com ele. Com a boca dele. Com as mãos dele prendendo meu quadril. Acordei molhada, confusa, com vergonha de mim mesma. Mas não era só tesão. Era algo mais. Era como se o destino estivesse nos empurrando um pro outro, mesmo com todas as placas dizendo proibido. Ele era meu tio. Meu tutor. O homem que deveria me proteger. E eu… era a garota que ele precisava manter à distância. Mas o desejo tem um jeito estranho de corroer regras. Certa tarde, sentei na varanda da casa e vi ele treinando com um dos soldados. Sem camisa. Tatuagens expostas. Suor escorrendo pelas costas. Cada golpe que ele dava era firme, preciso, letal. Eu não conseguia parar de olhar. Ele percebeu. Me encarou. Não disse nada. Mas naquele olhar havia um aviso. E um convite. Me levantei e entrei, com as pernas fracas. Me tranquei no quarto como se aquilo fosse proteger algo que já tinha sido entregue. No fim da semana, uma reunião com os aliados foi marcada na casa. Gente de fora veio. Mulheres estranhas chegaram junto. Com vestidos Curtos demais. Risos demais. E ele? Recebeu todas com a frieza de sempre. Mas uma delas encostou demais. Riu demais. — Quem é ela? — ouvi uma cochichar, me apontando. — É a afilhada do R.B. — outra respondeu. — Mas dizem que vai virar mais que isso… Aquilo me engasgou. Levantei, fui pro meu quarto, bati a porta. Minutos depois, ouvi passos. E então, a batida seca. — Abre. — Tô ocupada. — Abre, Lavínia. Abri. Não sei por quê. Só sei que abri. — O que tá acontecendo com você? — Comigo? Eu que devia perguntar! Traz essas mulheres pra cá, fica aí se exibindo, e quer que eu fique como? Ele me olhou como se estivesse tentando entender o que nem eu conseguia dizer direito. — Você é minha responsabilidade. — Eu sou uma mulher. Não uma criança. Silêncio. Então ele se aproximou. Dois passos. Três. Ficamos perto demais. A respiração dele batendo no meu rosto. A minha tremendo. — Não testa meus limites, Lavínia. Eu não sou o tipo certo pra você. — Talvez eu nunca tenha gostado do certo. E ali, por um segundo, eu juro: ele ia me beijar. Mas recuou. Virou as costas. Me deixou ali, com o coração disparado e a pele implorando. Desde então, as coisas mudaram. Ele evitava me encarar. Me pedia tudo por terceiros. Mas eu via. Eu sentia. Ele estava tão perto de ceder quanto eu estava de implorar. E o pior? O destino parecia decidido. Não importa o quanto a gente fuja. Algumas histórias são escritas com pólvora. E só acabam quando alguém explode.