Trem das onze

Mesmo com falhas em minhas memórias, os pesadelos frequentes me tomam e essas noites tumultuadas se tornam um eco doloroso das escolhas equivocadas que agora assombram meus sonhos. Em meio a esse labirinto de remorso, busco compreender as razões que me levaram a trair a confiança de Sebastian, tento confrontar a sombra de uma versão anterior de mim que, embora esquecida, ressurgia nos pesadelos como um lembrete implacável do impacto das minhas escolhas. No silêncio das noites inquietas, confrontei meu passado para forjar um uma desculpa que fosse mesmo que não tivessem motivos plausíveis para isso.

Eu me vejo envolta apenas em culpa, mesmo que esse mal pertença a uma eu que ficou perdida em algum lugar. A consciência de ter traído Sebastian me causa essa grande angústia.

Cada pensamento, mascarado pela amnésia, ainda carrega o peso da sensação horrível de ver os olhos de Sebastian lutarem entre o amor e a decepção. A sensação de pesar persiste, deixando meu entendimento borrado, enquanto eu não consigo compreender as ramificações de minhas ações em meio às sombras do esquecimento.

Esforço-me para entender o tipo de pessoa que eu era antes do acidente, tentando reconstruir fragmentos de uma identidade que permanece elusiva em meio à névoa da memória perdida.

Minhas lembranças se limitam à minha vida até os 22 anos; depois disso, tudo se reduz a um vazio, como se um botão tivesse sido pressionado em meu cérebro, apagando os sete anos seguintes da minha existência.

A frustração cresce dentro de mim, alimentada pela incapacidade de recuperar as recordações perdidas e entender os sete anos em branco que me escapam.

Cada esforço para desvendar os eventos omitidos parece esbarrar em um muro impenetrável de esquecimento, intensificando a minha frustração ao confrontar a lacuna que separa meu passado conhecido dos anos ausentes, envoltos em mistério.

Diante desse enigma, decido visitar minha família na esperança de encontrar pistas ou conexões que podem lançar luz sobre os anos esquecidos, buscando respostas entre aqueles que me conheciam antes do intervalo obscuro.

Guiada pelas palavras de Sebastian, traço meu caminho até a rua de trás, no número 512, onde a expectativa de reunir-me com minha mãe alimenta a esperança de desvendar os enigmas que cercam minha memória perdida.

Ao chegar à casa indicada por Sebastian, percebo que ela é diferente daquela onde cresci. A arquitetura desconhecida coloca mistério à minha busca, ampliando a incerteza sobre os eventos que ocorreram durante os sete anos em que minha memória está eclipsada.

Ao apertar a campainha, a ansiedade se mistura com a surpresa de constatar que a residência não correspondia à casa familiar que eu conhecia. Enquanto espero uma resposta, questionamentos sobre a discrepância entre a realidade presente e minhas lembranças do passado começam a povoar minha mente.

Minha mãe se aproxima do portão, e só agora percebo as rugas em seu rosto, detalhes ausentes em minhas lembranças recentes. Essas marcas adicionais reforçam a assertiva de que o tempo passou, deixando-me intrigado sobre as mudanças que ocorreram durante o período em que minha memória permanece obscurecida.

Observo, surpresa, que agora ela tem um jardim no quintal, algo que sempre foi o seu sonho. Essa adição verdejante ao ambiente familiar faz-me questionar não apenas o que perdi durante esses anos, mas também como a vida tomou rumos inesperados, moldando a realidade presente.

— Como você está hoje, minha querida? — pergunta ela enquanto abre o portão. Eu ainda admiro sua grama bem aparado e as lindas flores cuidadas com muito carinho.

— Como você está hoje, minha querida? — pergunta ela, abrindo o portão. Enquanto admiro sua grama bem aparada e as lindas flores cuidadas com muito carinho, percebo a ternura em sua voz, uma melodia que me é familiar, apesar das lacunas na minha memória.

— Acho que bem. Embora esteja decepcionada comigo mesma. — respondo, deixando escapar uma sinceridade carregada de peso, consciente das escolhas que levaram a essa autocrítica e à decepção que carrego. — Espero que não se importe, eu precisava falar com alguém.

Reconheço a necessidade de abrir meu coração diante dela, enquanto a sinceridade entre nós se torna um fio delicado, ligando passado e presente.

Minha mãe, com olhos afetuosos, acolhe minhas palavras com compreensão. Enquanto caminhamos pelo jardim que agora é seu refúgio, desvendo as palavras guardadas, percebo que este momento é mais do que uma busca pelo passado; é uma oportunidade de me redimir, de compartilhar fardos e de reconstruir conexões há muito tempo adormecidas.

Ela me conduz a um canto encantador do seu jardim, onde uma linda mesa de madeira convida ao repouso. Sentamo-nos, envolvidas pela serenidade da natureza, enquanto as cores vibrantes das flores e o suave murmúrio da vida proporcionam um toque acolhedor para nossas conversas.

— Fique à vontade, querida. Vou trazer um café com aquele meu pão de queijo que você ama. Sei que deve estar morrendo de saudades deles. — Ela sorri afetuosamente, e agora posso sentir o conforto familiar que essas coisas trazem, isso cria um vínculo bom entre o presente e as memórias de um tempo que busco no meu interior.

Minha mãe adentra a casa por um momentos, deixando-me sozinha no tranquilo recanto do jardim. Enquanto aguardo, absorvo a atmosfera serena, contemplando as flores que dançam suavemente sob a brisa, e observar isso me leva a pensar sobre os ocorridos ao meu redor.

Minha mãe retorna cantarolando um samba cuja melodia não consigo recordar, mas que ressoa como uma lembrança dos tempos antigos. Sua expressão alegre traz uma familiaridade reconfortante, mesmo que minha memória ainda lute para reconectar esses fragmentos do passado.

— Só amanhã de manhã — ela canta a frase, e de repente, como se uma porta se abrisse em minha mente, o restante da música retorna à minha memória.

Lembro-me da rádio ligada na Transcontinental aos sábados, enquanto ela esfregava as roupas em seu pequeno quintal. As notas daquelas canções permeiam o ambiente, criando uma trilha sonora única para os momentos simples e preciosos que agora ressurgem da névoa do esquecimento.

O "Trem das onze" de Adoniran Barbosa tocava sempre na hora da sessão de nostalgia da rádio, e minha mãe cantava a plenos pulmões durante seu trabalho. Essas lembranças musicais ganham vida, trazendo-me as lembranças da minha infância, onde a música e o trabalho dela me acordavam às 10 da manhã.

Ao recordar algo que parecia tão distante, questionei-me sobre a incapacidade de lembrar dos anos mais próximos, períodos que deveriam estar vivos em mim ainda.

— E então, como você está se sentindo esses dias? — Dei um sorriso diante de sua pergunta, pois, mesmo que eu não fosse uma de suas pacientes, ela sempre se expressou dessa maneira desde antes de se formar em psicologia.

— Ainda me sinto perdida no meio de tanta informação. Estou casada com um estranho, e ele é a pessoa mais gentil e paciente que já vi, mas meu corpo parece se lembrar dele, pois sinto sua angústia, e agora sei por que ele me olha com tanta relutância. — Explico a ela, franzindo o cenho.

— Como assim? — pergunta ela, buscando compreender os detalhes intrincados das minhas palavras.

— Você conhece um Theo? — questiono por fim, recordando que esse era o nome salvo no celular que eu quebrei. Era o nome do meu amante, que enviava mensagens constantemente de maneira carinhosa.

— Theo? Seu amigo do curso de inglês? — Ela retribui a pergunta, e eu me questiono se sei falar inglês. — Se for esse, vocês se conheceram um pouco antes de você conhecer Sebastian. Não recorda dele?

— Não. — Revelo, perdendo-me em pensamento. Até onde eu realmente lembro do meu passado? Essa reflexão faz-me suspirar. — Acho que reconheço poucas coisas do ano em que atropelei Sebastian com a bicicleta.

— Mas se lembra de tê-lo atropelado?

— Sim — confesso. Embora só consiga lembrar-me dessa parte. Posteriormente, visualizo a imagem do carro se aproximando para conectar os eventos.

Minha mãe pensa cuidadosamente sobre as minhas palavras.

— Compreendo — diz ela, dando um gole no café recém-servido. — E qual é o papel de Theo nessa história?

— Descobri que traí Sebastian com Theo, e aparentemente isso acontece há um bom tempo — revelo, recordando cada mensagem da versão esquecida de mim que se encontra em minha memória.

Observando-a, percebo que sua expressão permanece imperturbável, sugerindo uma possível compreensão desse evento.

— Mãe? — chamo-a, buscando alguma reação, mas ela apenas resmunga, mantendo sua reserva diante da revelação.

Ao perceber a tensão no ambiente, ela solta um pigarro e suspira, anunciando seu reconhecimento sobre o peso da situação.

— Não posso dizer que estou surpresa, vocês eram estranhamente próximos — comenta, revelando uma perspicácia que ultrapassa a surpresa. — Mas esperava que você não fosse desse jeito.

— Quando descobri ontem, também não me reconheci, e Sebastian diz que compreende o ocorrido, pois estava distante com o trabalho, mas eu não consigo me entender. Saber disso abalou minha percepção de mim mesma, e mesmo com a compreensão de Sebastian, me sinto perdida na tentativa de entender minhas próprias ações que não fazem sentido.

— Vocês estão juntos há muito tempo, Verônica. Algo aconteceu durante esse período para mudar sua essência, mas veja por outro ângulo. — Ela segurou minha mão com ternura. — Parece que a vida decidiu dar uma nova chance a vocês. Podem terminar tudo agora, aproveitar que você apagou o passado e seguir em frente. Ou podem aproveitar para criar algo novo e melhorado. Um casamento feito de amor e carinho.

As palavras de minha mãe são como uma bússola sábia, apontando para direções importantes para o meu futuro. Ao refletir sobre elas, posso descobrir caminhos que me tornem alguém melhor e, eventualmente, encontrar a paz interior necessária para seguir em frente.

— Eu disse a ele que queria me lembrar de nós dois apenas.

Ao expressar isso, busco estabelecer limites para focar nas recordações que construímos juntos, na esperança de preservar a pureza dos momentos em nossa história e minha mãe sorri satisfeita com essa escolha, mas posso ver uma pequena sombra em seu olhar.

— É realmente isso que você deseja? — questiona ela e afirmo, com o olhar repleto de convicção. Essa convicção reflete meu desejo genuíno de simplificar e preservar nossa vida. — Fico feliz que queira isso. Eu adoro aquele rapaz. Sua aprovação calorosa revela um apoio incondicional, proporcionando um alívio reconfortante diante das escolhas que visam proteger e celebrar minha nova essência.

Ela retoma a canção do "Trem das Onze", e eu não consigo conter o sorriso, revelando a alegria contagiante que a música desperta em mim.

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