O que eu fiz?

Os dias passaram e tive alta do hospital. Estava na hora de voltar para minha casa, mesmo que eu não me recordasse nem do meu endereço.

Ao deixar o hospital, o mundo exterior se estende diante de mim como um livro em branco, aguardando ser preenchido com as páginas da minha vida que ainda precisam ser reescritas. Mesmo sem as recordações do meu mundo, o apoio de Sebastian torna-se meu guia constante.

Ele me ajuda a explorar a cidade que deveria ser familiar. Cada esquina, cada rua, se torna uma busca por pistas que possam desencadear memórias esquecidas. A casa, agora apenas um local no mapa, aguarda silenciosa como um enigma a ser desvendado.

Sebastian, com paciência e carinho, torna-se minha bússola para todos os lados, guiando-me por ruas talvez conhecidas, mas em sua maioria desconhecidas. A cada passo, a esperança de encontrar fragmentos do passado se entrelaça com a ansiedade do desconhecido.

À medida que chegamos à porta de uma casa, meu coração pulsa mais rápido. Será esta a morada que um dia chamei de lar? O toque da chave na fechadura ecoa como um sinal de reinício, enquanto adentramos o local e estou pronta para desvendar os mistérios que aquelas paredes guardam.

Ao cruzar o limiar familiar, um ambiente que deveria ser reconhecido parece estranhamente distante. Cada canto da casa conta histórias silenciosas que minha mente não pode decifrar. É como se as paredes guardassem segredos que insistem em permanecer velados.

Sebastian, permanece sempre ao meu lado, torna-se meu cúmplice no caminho de redescoberta. Ele aponta para fotografias nas paredes, ditando momentos que deveriam ecoar em minha memória, mas que permanecem como imagens soltas em um quebra-cabeça incompleto.

Em um momento de luz, ele se lembra de algo que pode me ajudar e corre até o sótão para pegar uma caixa empoeirada. Ao abri-la, objetos ganham vida diante dos meus olhos, mas suas histórias permanecem seladas. Cartas antigas feitas de origami que ao abrir me mostra os desenhos que fiz dele em algum momento o qual pareceu importante retratar, lembranças de viagens havia sido guardadas ali também e souvenires que clamam por uma conexão que minha mente ainda não pode estabelecer.

Sebastian, com gentileza, tenta contar as histórias que esses objetos evocam, criando pontes entre o passado e o presente. Cada relato é uma tentativa de reconstruir aquilo que se perdeu nas sombras do esquecimento.

Após passar pela caixa passamos a examinar os recantos da casa, percebo que o verdadeiro lar não reside apenas nas paredes físicas, mas na reconexão que eu tive com Sebastian. Tudo diz que éramos extremamente felizes e isso me deixa dívida entre me sentir amada e péssima por ter apagado tudo aquilo.

— Esse era o nosso quarto, você pode continuar dormindo aqui — diz Sebastian com a voz tranquila ao pararmos na grande porta no topo das escadas. — Eu vou ficar no quarto de hóspedes no final do corredor.

— Não irá dormir na sua cama? — pergunto e ele abre um sorriso singelo.

— Embora eu queira muito deitar ao seu lado novamente, não vou forcá-la a isso. Você ainda não se lembra de nós e a circunstância te faria dormir com um estranho. Não acha?

A sensatez nas palavras de Sebastian permeia o quarto, posso sentir uma compreensão e carinho vindas do seu interior. Observo-o com gratidão, reconhecendo a gentileza em seu gesto. O quarto, antes um enigma, agora se revela como um santuário de possibilidades.

— Tem razão. Parece que estou conhecendo um amigo e não que sou casada com você — admito, sentindo-me vulnerável diante da verdade que paira sobre nós.

Sebastian coloca uma mão reconfortante sobre meu ombro, dissipando as sombras momentaneamente. Sua compaixão é uma âncora, ancorando-me no presente enquanto navegamos nas águas incertas do passado.

— Se um dia sentir vontade, estarei aqui, pronto para compartilhar esse espaço contigo, quando suas memórias voltarem.

Com um aceno suave, ele se retira, deixando-me sozinha no quarto que um dia foi nosso. As paredes sussurram histórias não contadas, enquanto a cama acolhe a incerteza como uma promessa de amanhãs reescritos. Envolta na calma da noite, agradeço pelo conforto do presente e aguardo, pacientemente, as lembranças que dançam além do alcance da memória.

Na penumbra do quarto, mergulho em pensamentos que flutuam entre o conhecido e o desconhecido. A cama parece um refúgio onde sonhos e realidade se entrelaçam, aguardando o momento em que as peças perdidas do que éramos se encaixem novamente.

O silêncio é quebrado pelo sussurro da brisa noturna, como se o próprio ar carregasse histórias que aguardam serem contadas. Observo a janela, buscando respostas nos raios de lua que penetram no quarto, iluminando o caminho para memórias que ainda se escondem nas sombras.

Deito na cama, envolvida pela familiaridade do tecido que conta segredos de noites passadas. Sob as cobertas, aconchego-me na esperança de sonhos que possam tecer fragmentos do que já existiu.

Enquanto os minutos se tornam horas, percebo que o sono é uma ponte para um reino onde o passado e o presente se entrelaçam sem amarras. Ao fechar os olhos, permito-me flutuar entre lembranças e possibilidades, na esperança de que o amanhecer traga consigo revelações que iluminem os cantos escuros da minha mente.

E assim, entregue ao abraço reconfortante da noite, deixo-me levar pela promessa de que, mesmo nas páginas em branco da minha memória, há uma história pronta para ser escrita.

No dia seguinte, desperto sob a luz suave que invade o quarto, a curiosidade me motiva a sair da casa e quero que o cenário ao meu redor se torne familiar, mas as lembranças ainda resistem, agarrando-se às bordas da consciência como neblina matinal. Isso me motiva a explorar mais da vida naquela casa.

Ao descer as escadas, encontro Sebastian na cozinha, preparando o café da manhã. Seus olhos encontram os meus com um sorriso caloroso, e por um instante, sinto a certeza de que este é um novo começo.

— Bom dia. Como dormiu? — ele pergunta, enquanto o aroma do café preenche o ar.

— Bem, considerando as circunstâncias — respondo, tentando decifrar as entrelinhas da minha própria expressão.

Sentamo-nos à mesa e o silêncio confortável se espalha entre garfadas e goles de café. Cada sabor é uma tentativa de despertar memórias adormecidas, mas o passado permanece elusivo. Tento observá-lo ao máximo para gravar todas as suas marcas.

— Tem algum plano para hoje? — pergunto, buscando orientação em meio ao desconhecido.

— Preciso trabalhar, mas você pode fazer o que quiser. Seus pais moram na rua de trás, número 512.

Gravo aquela informação com carinho, pois posso precisar do colo do meu pai em algum momento. Dou um sorriso ao homem que bebe seu último gole de café e se despede de uma maneira desajeitada. Ele iria me dar um beijo na testa, mas se detém e suspira.

Enquanto Sebastian se entrega às obrigações diárias, a casa assume um novo papel, se tornando um labirinto de histórias e vejo algumas pessoas trabalhando pelo local.

Continuo meu percurso pelos corredores, curiosa e ansiosa para ter uma ponta de familiaridade nem que seja com os rostos que têm testemunhado a história que minha mente teima em esconder.

— Bom dia, senhora Cabral. Precisa de algo? — diz a mulher de aparência formal, com um uniforme que sugere ser uma empregada ou funcionária da casa. Seu rosto é uma máscara de profissionalismo, mas seus olhos refletem um toque de curiosidade.

— Bom dia. Não, obrigada. Apenas estava explorando um pouco a casa. — respondo, tentando me ajustar à formalidade que parece permear o ambiente.

Ela assente com um leve sorriso, mantendo a postura profissional.

— Se precisar de alguma coisa, estarei à disposição. Meu nome é Maria. Ah! O senhor Cabral deve chegar por volta das 17hrs.

Enquanto ela se afasta para cumprir suas tarefas, sinto-me como uma intrusa na minha própria casa. A formalidade do ambiente e a presença de uma equipe de funcionários adicionam uma camada de complexidade à minha tentativa de reconstruir uma conexão com o que deveria ser familiar.

E assim, enquanto o dia avança e as sombras dançam nos corredores, percebo que a casa não é apenas um espaço físico, mas um eco vivo do passado. Cada canto é feito de histórias que agora, através dos meus olhos, começam a ganhar vida novamente.

Diante das fotos que adornam as paredes, um tumulto de emoções se agita dentro de mim. Cada imagem captura um fragmento de uma história que deveria ser minha, mas permanece enigmática, esquiva.

Sempre me pego observando as fotos, que mesmo belas, são como peças de um quebra-cabeça desconexo. Olho para os sorrisos congelados no papel, os abraços que parecem pertencer a outra pessoa. A irritação se insinua, uma reação natural à frustração de estar tão perto do passado e, ao mesmo tempo, tão distante dele.

Tento agarrar as lembranças que pairam nas fotografias, mas elas escorrem pelos meus dedos como areia fina. Cada rosto na imagem é um estranho, cada lugar parece ser visitado pela primeira vez. A proximidade do que era suposto ser meu passado intensifica a sensação de vazio.

Com um suspiro, afasto-me das fotos, tentando controlar a frustração que ameaça transbordar. Sebastian, ao retornar do trabalho, encontra-me perdida em pensamentos.

— Alguma lembrança? — ele pergunta com cautela.

Abro a boca para responder, mas as palavras parecem perder-se na névoa da minha confusão. A irritação transforma-se em uma necessidade ardente de desvendar os mistérios que se escondem nas entrelinhas dessas imagens. O caminho para o meu passado parece estar bloqueado, mas a determinação de tê-lo novamente permanece, inabalável.

— Você disse que eu estava correndo quando fui atropelada — inicio e suspiro. — Sabe o motivo?

O silêncio que se instala na sala é denso, carregado com o peso da verdade não dita. Percebo a hesitação nos olhos de Sebastian, como se estivesse preso entre revelar um segredo doloroso ou proteger-me de uma realidade que poderia ser avassaladora.

— Você fugiu de mim — ele revela então, fazendo meu cenho se franzir. — Eu descobri algo. Eu vi, na verdade e você correu.

As palavras de Sebastian ecoam na sala, criando uma tensão palpável. Meu coração parece congelar por um instante diante da revelação surpreendente. Correr de alguém que amava? A confusão e a incredulidade se misturam em meu olhar franzido.

— Eu... fugia de você? — sussurro, tentando processar a magnitude da revelação. A imagem de mim mesma correndo, evitando algo que Sebastian havia descoberto, paira como uma sombra entre nós.

Sebastian, com um misto de dor e tristeza nos olhos, concorda lentamente.

— Desculpe por não ter te contado antes. Eu queria te proteger da verdade, mas talvez tenha sido um erro. Não sei por qual motivo fiz isso.

A atmosfera carregada de segredos se transforma em um campo minado de emoções não ditas. A verdade, por mais dolorosa que seja, agora se desdobra diante de nós, abrindo caminho para algo mais profundo que me trará uma breve resposta do passado.

E assim, entre olhares intensos e palavras suspensas no ar, começo a enfrentar não apenas a busca por lembranças perdidas, mas a desconcertante realidade de ter corrido não apenas de um evento, mas de alguém que um dia significou muito para mim.

— O que você viu?

Ele não diz nada, mas caminha até a mesa no canto da sala e pega o aparelho celular dali. Logo Sebastian retorna com o objeto e o coloca em cima da mesa que nos separa.

— Ele te ligou todos os dias e até tentou te visitar, mas não deixei.

Olho para o celular, agora depositado como um artefato carregado de revelações. A curiosidade se mistura com a perplexidade enquanto Sebastian dita a história que parece ter sido retida das sombras da minha mente.

— Quem era? — pergunto, as palavras escapando como um fio de ansiedade. O dispositivo é um portal para o passado que ainda não consigo recordar. Ele está em silêncio, mas sua presença é uma testemunha silenciosa de uma conexão interrompida.

Sebastian, com a expressão marcada pela mistura de suas emoções, hesita antes de responder.

— Acho que você se apaixonou por ele ou precisou disso.

— Eu trai você? — Pergunto enfim entendendo tudo.

A sala parece envolta em um silêncio pesado, interrompido apenas pelo toque sutil do celular enquanto Sebastian o desbloquea com facilidade. As mensagens revelam um capítulo do passado que minha mente ainda não havia desvendado completamente, uma chuva de sentimentos e escolhas que agora ecoam na sala. Leio as mensagens que confirmaram minha suposição e me sinto horrorizada comigo mesma.

— Eu... — a voz fica presa na minha garganta, as palavras recusando-se a sair. As mensagens diante dos meus olhos são como cicatrizes digitais de uma história que, até agora, permanecia nas sombras.

Sebastian, com uma compaixão silenciosa nos olhos, não tenta justificar ou apagar a verdade crua. As emoções dançam nos nossos olhares, uma dança de perplexidade e dor, enquanto confrontamos as escolhas feitas em um passado que ainda tento compreender.

— Não fique chateada por ter guardado isso. Na verdade, eu não sabia como contar — murmura ele, seus olhos encontrando os meus com uma ternura que me envolve como um manto.

O celular, uma testemunha muda de uma história complexa, permanece como um símbolo de um passado que agora se revela, mesmo que seja uma verdade difícil de aceitar.

A atmosfera na sala parece estar saturada com a realidade crua que as mensagens me trouxeram. Com o celular ainda em mãos, minha mente é uma tempestade de emoções conflitantes. As conversas são um eco digital de um tempo que minha memória teima em manter em segredo.

Sebastian, compreendendo a tormenta dentro de mim, permanece em silêncio, dando espaço para que eu processe as palavras não ditas nas mensagens. Cada palavra, cada emoji, é um fragmento que ainda tento entender.

— Eu... sinto muito — murmuro, mas as palavras parecem vazias diante do peso do que descobri.

Sebastian assente, sua compreensão é como uma bússola no caos emocional. A traição, mesmo que não física, é uma ferida emocional nele que agora precisa ser curada.

— Você não se lembra, não posso julgá-la agora — diz Sebastian, oferecendo uma mão estendida na minha direção.

E assim, enquanto a verdade digital ainda reverbera na sala, percebo que aquilo é uma oportunidade para algo novo, uma chance de talvez apagar, mesmo que as cicatrizes permaneçam como testemunhas silenciosas do que um dia foi.

— Acho melhor você conversar com ele também. Talvez se lembre de algo e isso te ajude a decidir sobre a relação de vocês.

— Por que está sendo compreensível dessa forma? Eu fiz uma monstruosidade com você. Deveria me odiar e aproveitar essa oportunidade para se livrar de mim — falo demonstrando a raiva que sinto de mim mesma.

— Eu amo você.

As palavras ecoam pelo local, criando uma pausa tensa. A confissão de Sebastian, dita com uma sinceridade que ultrapassou qualquer coisa ao meu redor, aquilo paira no ar como uma promessa que desafia a raiva que manifesto contra mim mesma.

— Como pode amar alguém que fez o que fiz? — questiono, a ira agora misturada com incredulidade diante da afirmação dele.

Sebastian se aproxima cauteloso, sua expressão é gentil, mas determinada.

— O amor é estranho, não é tão simples. Todos erram. Todos nós, mas isso não invalida quem você é. Eu escolhi amar cada parte sua, agora só consigo fazer isso.

A aceitação que emana dele é uma força que desarma a minha autocrítica. A raiva que sinto por mim mesma começa a ceder espaço a uma vulnerabilidade que até agora resistia.

Suas palavras entram em mim de uma forma deliciosamente tranquila e isso me leva a decisão.

— Não quero me lembrar disso então — jogo o telefone no chão e piso em sua tela para quebrá-la com toda minha força. O som de estilhaços preenche o espaço enquanto o telefone se despedaça sob o impacto do meu gesto impulsivo. Uma expressão de surpresa e tristeza cruza o rosto de Sebastian, mas ele permanece em silêncio, respeitando a explosão da minha raiva. — Não quero lembrar nem dele e nem do que tive com ele. Quero me lembrar do que tive com você.

— Tem certeza disso? — Sebastian pergunta suavemente, sua compreensão pairando como uma oferta de apoio.

A raiva queimando em mim parece perder intensidade à medida que as peças do telefone se espalham pelo chão. Olho para Sebastian, cujos olhos refletem uma mistura de compaixão e aceitação.

— Quero me concentrar no que temos agora, no presente e se eu me recordar disso vou apagá-la. — Falei com convicção. — Me desculpa, não importa a circunstância que aconteceu, não foi o certo a se fazer e se não for para ficarmos juntos, não ficaremos. Vamos sentar e conversar sobre para que não ocorram erros desse tipo novamente.

— Nós estávamos tendo bastante brigas. Você sentia minha falta, mas o trabalho…

— Não importa. Eu sinto muito. Você me perdoa?

Ele não responde, apenas avança para me envolver em um abraço reconfortante, um gesto que oferece solace no tumulto emocional que se desdobrou.

— Eu já fiz isso.

O chão quebrado do celular é um testemunho da minha escolha. Jamais me perdoarei por aquilo, mas farei o impossível para ser alguém melhor.

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