Imaginarium
Imaginarium
Por: Suehtam Guimarães
O Fantasma do Espelho

“Esse conto foi inspirado em uma história real. Alguns eventos e personagens foram inventados ou modificados para efeitos dramáticos. ”

May era uma garota muito branca e magra. Desde nova, sofria humilhações por partes de suas colegas de classe. Chegava em casa com vários machucados, pois alguns sempre utilizava pequenos truques para feri-la.

Seus pais eram pessoas boas, porém, mantinha um amor maior pela sua irmã mais nova. A sempre e perfeita, Loren. Todas as vezes, no jantar, quando todos se reuniam na mesa para comer, o assunto era sempre o quão bom a Loren vai na escola, quando ela consegue boas notas ou quando ela faz algum serviço dentro de casa. A chuva de elogios era sempre constante. Porém, ninguém notava o olho roxo de May. Ninguém perguntava como ela se sentia ou como ela estava na escola.

Nas tardes da noite, a única coisa que alivia um pouco a dor que May sentia era sentar em sua escrivaninha e escrever: pequenos poemas, contos e, às vezes, ela desabafava sobre o que estava se sentindo. Foi em uma dessas noites que ela olhou para o canto esquecido e escuro de seu quarto. Lá, havia um espelho coberto com um lençol branco. Por um instante, a garota achou que o espelho se moveu.

Em questão de alguns instantes, um vento forte acertou a janela aberta com tanta força, que retirou o lençol que envolvia o espelho. May levantou de sua cadeira e se aproximou do objeto, a fim de pegar o pano e cobri-lo de novo. Ela se entristecia quando via seu reflexo no espelho. Magra e quase sem seios. Suas roupas eram grandes e cafonas. Para cobrir as “imperfeições” de seu corpo, ela dormia com um enorme conjunto de moletom que ganhara da sua avó antes dela falecer.

Quando May se aproximou do espelho, ela viu seu reflexo. Não sentia muita dor no coração, pois o moletom cobria boa parte daquilo que ela mais detestava nela. Porém, havia uma parte importante que ela não conseguiu esconder naquele momento: seu próprio rosto. Ela viu o reflexo do seu rosto. Nítido e claro como a agua. Ela olhava para si mesma. O brilho de seus olhos verdes refletia no vidro sujo. Com o lençol, ela limpada o espelho e claro, seu reflexo a seguida por todo o percurso de sua mão pelo espelho. Até que em algum momento, ela sentiu o que o espelho não a imitou.

May olhou bem para o espelho e reparou que ele não refletia a mancha roxa da ferida em seus olhos. Ela era perfeita. Como poderia refletir algo diferente, pensou a garota. Ela se levantou aos poucos, com a imagem levantando junto com ela. Ela olhou fixamente para o reflexo, que abriu um sorriso sem ela sorrir. May deu um salto e um grito, colocando a mão na boca logo em seguida, pois todos estavam dormindo. Aquele canto isolado com o espelho agora estava sendo iluminado pela lua.

— É tão ruim se sentir assim, não é mesmo? — pergunta o reflexo do espelho — Sentir que ninguém te ama, que ninguém gosta de você... basicamente você está sozinha, se sentindo vazia, com a mente maquinando como dar um fim a este problema. Pobre May.

O medo tomava conta da garota. Mesmo com as mãos tremulas, ela tocou com seu dedo indicador o meio do espelho, acreditando que poderia atravessar de alguma forma. O reflexo não a seguiu, mas olhou para todo o percurso do dedo. A risada da imagem veio logo em seguida.

— O que está acontecendo aí? — pergunta o pai da garota bem nervoso atrás da porta fechada de seu quarto — Já é tarde e a senhorita deveria estar dormindo.

May cobriu o espelho com o lençol, correu para sua cama e se acomodou no travesseiro. A noite inteira ela tentava fechar seus olhos, mas a caba momento, era um pesadelo diferente. A mente sempre em alerta, pois sabia que amanhã teria aula e passaria por tudo aquilo de novo. Ela lembrava do reflexo do espelho, acreditando que era apenas um sonho.

Antes do sol nascer, May levantou da cama e retirou o lençol do espelho, a fim de que aquilo tudo não era coisa da sua imaginação. Porém, o reflexo seguiu com ela em todos os movimentos. Aquele momento de euforia da garota se esvaiu e ela cobriu o espelho novamente. O canto ficou escuro e ela deitou novamente.

Na escola, May recebeu um bilhete na sala de aula, dizendo que Brad, o rapaz que ela tanto gostava queria lhe beijar. A inocência tomou conta da garota. Ela acreditara no bilhete, que dizia que no final da aula, ele e alguns amigos brincariam de verdade ou desafio, um jogo onde as pessoas deverão escolher Verdade, respondendo alguma pergunta de forma sincera ou Desafio, fazendo alguma proposta que lhe for mandado.

No final da aula, Brad e dois amigos se reuniam, sentados no chão, começando a formar um pequeno círculo. Duas colegas de sala de May, sentou terminando a formação, deixando o espaço de May, que com toda alegria, sentou cruzando suas pernas.

— A brincadeira vai funcionar da seguinte forma. — disse uma das meninas — Quem escolher desafio, beijara a pessoa que a garrafa parar. Ok?

Todos concordaram e May apenas balançou a cabeça que sim, tentando conter a alegria de ter a chance de beijar o garoto que ela tanto gosta. Ela desenhava nas pontas das folhas do caderno corações com suas iniciais, ou escrevia pequenos versos na parte de trás, falando o quanto ele é lindo ou o quanto ela fazia seu coração bater mais forte.

Um dos garotos girou a garrafa de refrigerante vazia, que parou em frente a garota que ditou as regras. Logo, ela escolheu desafio. Olhando disfarçadamente para May, ela o beija, colocando sua língua quase na garganta do rapaz. Todos bateram palma.

Depois de algumas rodadas, foi a vez de May, que fechou os olhos ao tocar a garrafa e gira-la no chão. A garrafa girava e o coração da garota acelerava. Quando a garrafa finalmente parou, ela abriu os olhos e havia parado em Brad.

— Verdade ou desafio? — pergunta um dos rapazes.

Quando May fez menção para responder, Brad começou a aproximar seu rosto próximo ao dela, com a menção de beija-la. May nunca havia beijado um garoto antes, então, como nos filmes de romance, ela fechou os olhos e fez um bico com a boca. Assim que Brad se aproximou bem, ele passou fezes de cachorro no rosto e na boca da garota, que abriu os olhos desesperada. Tanto os alunos do círculo quanto aqueles que assistiam envolta deles, começou a rir. Quanto mais May tentava limpar seu rosto, mas ela se sujava. A garota, com lagrimas, correu para sua casa.

Chegando lá, ninguém havia perguntado nada.

— Que cheiro de merda. — disse Loren tampando o nariz.

May subiu as escadas correndo, lavou seu rosto com sabonete, escovou seus dentes e deitou em sua cama, com a cabeça enfiada no travesseiro. As lagrimas escorriam de seu rosto do momento que ela saiu do colégio até encharcar o lençol.

A noite caiu e a garota foi até sua mochila, retirou o caderno que ela enfeitava com o admirador ela e começou a rasgar cada página. A raiva misturava com a dor e ela não conseguia conter os gritos. Quando não sobrou página alguma, May lançou a capa dura do caderno vazio em direção ao canto escuro do seu quarto. A capa bateu no lençol que cobria o espelho e o retirou.

— O que houve agora, minha doce e frágil May? — perguntou o reflexo do espelho — Por que esse desespero todo?

Era algo inimaginável. Ninguém foi ver May enquanto ela gritava de raiva, rasgando as folhas do caderno e o único a se preocupar com ela era seu próprio reflexo? May contou para o espelho tudo o que havia acontecido no colégio.

— E você vai deixar barato? — disse o reflexo com os olhos vermelhos — Eu acho que, amanhã no intervalo, você deveria dar uma surra nessa garota.

May concordou com a cabeça e deitou em sua cama, pensando em como vai cumprir o plano do espelho. A mente trabalhava freneticamente a ponto de a jovem não conseguir dormir. Essa noite, os pesadelos não tomavam conta de sua mente, e sim, a vingança.

Na manhã seguinte, a jovem desceu as escadas, deu bom dia para todos e saiu sem tomar seu café. Ela não pensava em outra coisa a não ser em revidar a humilhação que ela passou. Ela não poderia bater em Brad, pois além de ele ser um menino, era muito mais forte que ela, mas tinha certeza que não foi ele que planejou essa trama.

Durante a aula, May encarava sua rival como se fosse devora-la. Seus olhos se fixaram na aula, mas sim nos ponteiros do relógio, que movia vagarosamente.

O momento certo chegou e May estava pronta para confrontar a garota. Antes de sair da sala, ela tocou no ombro da sua rival e lançou seu punho fechado, acertando em cheio, o nariz da garota, que sangrou muito.

— Sua idiota! — gritou a garota segurando o nariz enquanto escorria muito sangue. — Você quebrou o meu nariz! Eu vou te matar!

May era magrinha e não sabia muito bem como lutar. Sua rival era mais robusta, porém, sem qualquer conhecimento de combate. Assim, a garota com o nariz quebrado foi covarde, pedindo para outras duas garotas segurarem May enquanto a golpeava.

Socos no estomago, soco no rosto, pontapés, chutes. May estava prestes a desmaiar quando a diretora chegou e separou a briga. O rosto de May estava completamente inchado e mal dava para reconhece-la. Todas as quatro garotas foram encaminhadas para diretoria e seus pais foram chamados.

Foram horas de conversa dentro de uma sala fechada. May, seus pais e a diretora tiveram uma conversa longa. Antes da reunião, a jovem teve cuidados médicos na enfermaria. Todas receberam uma suspensão e foram enviadas para casa.

Ao chegarem em sua residência, Loren estava deitada no sofá, vendo Televisão. Os pais de May estavam explodindo de raiva.

— Por que você não é como a sua irmã? — disse sua mãe — Por que não pode ser uma jovem normal como todas as outras.

— Você precisa nos tirar do trabalho para resolver problemas na escola? — pergunta seu pai — Por que simplesmente não conversou com a professora sobre o que estava acontecendo?

— Esta de castigo, mocinha! — gritou a mãe — Vai logo para o seu quarto!

May mal conseguia enxergar, pois seus olhos estavam muito inchados. Não houve misericórdia para a garota. Loren deu um sorriso maligno e continuou a ver seu programa favorito.

Entrando no quarto, May tranca a porta e deita com seu rosto contra o travesseiro. O espelho estava coberto novamente com o lençol, mas foi retirado em seguida quando o vento forte bateu contra a janela aberta. A garota virou seu rosto e viu seu reflexo no espelho. Com muita raiva, ela pega seu tênis e lança contra o espelho que quebra em muitos pedaços. Os cacos de vidros espalharam por todo o canto escuro.

A raiva e a decepção tomaram conta da mente de May, que achou que dormir seria o melhor remédio.

Horas se passaram e a jovem acordou. Ela não quis comer, então preferiu nem descer as escadas e jantar com sua família. Seus pais haviam sido duros com ela e, em sua cabeça, era melhor não se unir a eles dessa vez.

Quando ela olhou para o canto escuro, observou que o lençol cobria o espelho. Ela esfregou seus olhos, agora um pouco desinchado e retirou o pano. O espelho estava intacto. Como era possível, pensava May. Seu reflexo estava perfeito, sem nenhum inchado ou cicatriz.

— Vejo que o seu plano falhou miseravelmente. — disse o espelho — A inocente e frágil May falhou na vida novamente.

As lágrimas escorriam de sua face. Ela simplesmente sentou e começou a ouvir o que o reflexo tinha a dizer.

— Acha mesmo que a sua vida vai mudar? — dizia o espelho caminhando sobre o cenário refletido — Acredita mesmo que você é forte o suficiente para se tornar uma pessoa melhor?

May simplesmente concordava com a cabeça. As palavras do fantasma entravam em sua mente como uma faca. Cada palavra penetrava por seus ouvidos e era processada com bastante atenção.

— Olhe só para você. — continuava o espelho — Loren é a filha perfeita qualquer família deseja. É uma excelente aluna, competente, disciplinada, nunca deu problema para os pais. Diferente de você, que não faz nada direito e arruma confusão na escola.

A garota assentiu e fechou seus olhos, enxugando as lágrimas na manga de sua blusa.

— Seus pais nunca vão te amar como amam a Loren. Ela foi planejada, desejada, escolhida. Você foi apenas o erro que eles cometeram quando jovens.

O fundo do espelho foi ficando esfumaçado, como se uma neblina tomasse conta do quarto, mas apenas dentro do reflexo. As feições do fantasma começaram a ficar mais medonhas, enquanto as palavras eram lançadas.

— Achou mesmo que o Brad ia gostar de uma garota feia e burra como você? — a voz do espelho começou a ficar mais grossa, como de um monstro — Olhe só para esse corpo. Fraco, magro. Você nem ao menos tem seios, garota burra.

O choro de May começou a ficar mais forte. Seu corpo inteiro ficou paralisado, impedindo-a de sair do lugar e a obrigando a ouvir cada sentença.

— Você não tem amigos. Senta escondida atrás da lanchonete para comer, pois ninguém quer ficar perto de você. Quem sentirá sua falta?

Finalmente, May levanta do chão, enxuga as suas lágrimas e olha firme para o espelho, agora com o reflexo normal, com a voz de antes.

— O que você pensa em fazer a respeito, minha doce May? — pergunta o espelho

A garota foi até sua cama, puxou o lençol e começou a fazer um espiral com ele, como se fosse trançar uma corda. Pegando a cadeira da escrivaninha, ela amarra uma ponta do lençol na madeira mais grossa do teto, faz um laço com a outra e, em seguida, coloca-o em volta do pescoço. Ela sobre no encosto da cadeira e dali ela deu um pequeno salto.

Se a corda improvisada fosse um pouco mais curta, ocorreria a ruptura das vértebras cervicais e o rompimento da medula espinhal, causando uma morte rápida. Porém, May se debateu por um longo e doloroso período, devido a asfixia causada pelo laço, obstruindo as veias jugulares e as artérias carótidas.

Seus olhos se fecharam e ela veio a falecer. O reflexo do espelho apenas sorriu maliciosamente já prevendo a ação de May. A imagem saiu do espelho e segurou a mão da garota. Quando ele começou a puxar, a alma da jovem saiu do corpo e o acompanhou para dentro do espelho.

May decidiu tirar a própria vida, não pelo que o reflexo falou com ela. O fantasma nunca existiu. Nossa mente, às vezes, nos condiciona a ver o pior de todas as coisas. A depressão é algo misterioso. Podemos estar rodeado de pessoas e ainda sim nos sentimos sozinhos. Tudo pode estar caminhando positivamente, mas sempre a algo que enxergamos fora dos trilhos. Algo pequeno pode se tornar grande aos nossos olhos e nos fazem sentir mal.

Se May estivesse viva, poderia ver o quanto ela era importante. Não para as pessoas, mas para si mesma. Era uma excelente escritora e, aqueles que liam seus textos, se apaixonavam. Era uma aluna inteligente e dedicada. Fazia amizade com facilidade. Despertava o amor nas pessoas com seu jeito simples e carinhoso. Mesmo estando triste, era capaz de ajudar as pessoas, com um sorriso estampado no rosto. O que faltava em May era o amor em si mesma. Era acreditar que era forte para mudar tudo.

“Sempre penso que meus maiores companheiros são os sete espíritos que me acompanham nos momentos de tristeza: desespero, ansiedade, decepção, raiva, mágoa, inveja e solidão. Eu os sinto me abraçar todas as noites. Um toque frio em meu corpo. Me sentia, de certa forma protegida. Quando eu sentia falta de falar com alguém, eles me ouviam e tudo ficavam bem. E assim caminhei em direção a parte mais escura de minha mente. ”

                                                                                         Texto do diário de May Thompson

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