MIA
O sol mal havia vencido o nevoeiro da manhã quando os passos dele rasgaram o jardim como uma tempestade súbita.
A brisa era fria, cheirava a sangue e rosas murchas.
— Mia! — A voz de Vittorio veio antes dele, grave, rouca, carregada de urgência e terror.
Ele surgiu no pátio como uma força da natureza, os olhos arregalados ao ver o corpo de Gisela desfalecido nos meus braços.
— Meu Deus... — sussurrou, como se a realidade estivesse despencando sob seus pés.
Aurora apareceu logo atrás, arrastando o roupão de seda pelo chão de pedras, o rosto pálido, o cabelo solto e desgrenhado, como se tivesse sido arrancada dos s
MIAO sol do fim da manhã atravessava as cortinas como um intruso impiedoso, tingindo o chão de mármore com tons dourados que não pertenciam àquela casa. A luz dançava sobre os veios frios da pedra, alheia à dor que ainda se agarrava às paredes, como se zombasse de um luto que não sabia ser visto, mas que impregnava cada respiração.A mansão estava muda. Não era o silêncio pacífico de um lar em descanso — era o silêncio após o impacto. Um silêncio espesso, sufocante, que se arrastava pelos corredores como um fantasma recém-desperto. Desci os degraus devagar, sentindo cada um como uma sentença. Meus pés pesavam como se tivessem raízes cravadas naquele chão, e a cada passo, algo dentro de mim se despedia — mesmo sem querer.Aurora me esperava no saguão. O robe escuro envolvia seu corpo como um véu de luto não declarado, o cabelo preso de f
MIAO ar da mansão era diferente. Denso. Quase palpável, como se cada parede tivesse olhos, e cada sombra, ouvidos.Eu dei os primeiros passos como quem atravessa um campo minado, consciente de que cada gesto seria observado. Analisado. Julgado.O silêncio era cortante, mas não tanto quanto o homem que me aguardava.Tomasio.Tomasio apenas sorriu — um sorriso que fez cada parte do meu corpo se arrepiar. Cruel. Gélido. Um sorriso digno do próprio demônio.Lindamente repulsivo.Seu rosto anguloso estava banhado pela luz que entrava pelas claraboias. Os olhos, de um cinza pálido e cortante como vidro, me atravessavam. Os fios grisalhos n
MIAA casa era silenciosa demais.Mesmo com os tapetes grossos abafando os passos, havia um som que persistia — um sussurro abafado, como se as paredes respirassem. Ou vigiassem.Sentei na beirada da cama. O colchão era macio demais para alguém que cresceu pisando em estilhaços. As cortinas pesadas, o armário de madeira escura e polida, o espelho grande demais, como se quisesse me engolir. E no ar... perfume. Amadeirado, envolvente, quase masculino. Alguém tinha estado ali. Alguém que queria que eu soubesse disso.Me levantei devagar, os pés afundando no tapete felpudo. Caminhei até a janela. Fechada. Trancada. O vidro, grosso e escurecido. A vista? Um jardim milimetricamente esculpido — bonito demais para ser verdadeiro. Bonito como um túmulo.En
VITTORIOA casa parecia menor agora. Ou talvez fosse só eu, encolhido por dentro.Estávamos de volta àquele lugar. As paredes ainda guardavam o cheiro da última vez que estive ali — cigarro, medo e o gosto metálico da perda.Giuseppe empurrou a porta com força, como se pudesse afastar os fantasmas na marra. Breno veio logo atrás, em silêncio, os olhos atentos, varrendo o ambiente como quem não sabia onde pisar. Eu entrei por último. Sem pressa. O que eu procurava ali não era algo que pudesse ser achado com os pés.Fazia menos de vinte e quatro horas desde que Mia partiu.Vinte e quatro horas que me cortaram por dentro como uma lâmina cega.Ela havia dito tudo com os olhos abertos. Com uma frieza cruel.
MIAA casa dos Sartori parecia prender a respiração à medida que a noite caía. Cada sombra que se alongava nos corredores era como um sussurro não dito. Um presságio. Não era o silêncio da paz — era o tipo de silêncio que precede uma tormenta. Ou um toque. Ou um crime.Cecília me avisou do jantar com olhos que não ousavam encontrar os meus. Deixou o vestido sobre a cama como quem deixa uma oferenda a uma criatura selvagem. Era preto. De cetim. Justo, decotado e indecentemente elegante. Aquilo não era um traje — era um aviso. Um convite. Um golpe.Ele escolhera.E eu sabia disso. Como também sabia que, naquela casa, nada escapava dos dedos frios e calculados de Tomasio Sartori.Vesti o vestido como quem veste um pecado. O tecido deslizava pela pele
VITTORIOO diário pesava mais do que parecia. Não em gramas — em memórias. Em tudo que prometia revelar.Fechei a porta do escritório e a tranquei. A lua já espiava pelas frestas da janela, mas eu não tinha tempo para sua beleza. Eu queria verdades. Apenas verdades.Coloquei o diário sobre a mesa e encarei a capa gasta, a lombada frágil. As bordas estavam puídas, algumas páginas coladas pelo tempo. O cheiro era de papel antigo... e de coisas que talvez eu não estivesse pronto para saber.Mas abri mesmo assim.Folheei com cuidado, buscando o ano de nascimento de Mia.A caligrafia era delicada, inclinada, feminina. O tipo de letra que se escreve com o coração escancarado — e as feridas expostas.
MIAEncontrei outra carta de Cecília no criado-mudo. O papel era fino, dobrado com cuidado quase cerimonial. A caligrafia firme, elegante, como se cada letra tivesse sido desenhada com um bisturi."Não lute com força bruta, Mia. Ele se alimenta disso. Use o que ele não espera: sua calma, sua inteligência. Deixe que pense que está vencendo. A fuga exige silêncio, não gritos. A chave já está a caminho. Prepare-se. Mantenha-se inteira."Fechei os olhos por um instante. Ainda tremia por dentro, ainda havia raiva e medo pulsando sob a pele, mas as palavras de Cecília eram uma lâmina fria atravessando a neblina. Eu precisava ser mais fria do que ele. Mais precisa. Fingir que cedi — só o suficiente.Desci até o escritório dele. Sozinha.Tomasio
VITTORIOComo capo da Cosa Nostra, minha tarefa era simples: cobrar dívidas de drogas, viciados em jogos e prostitutas. E hoje, eu estava no meu escritório, aguardando que meus homens trouxessem mais um desses fracassados: Charles Foster, o tipo de pessoa que me enojava. Viciado em jogos, sem um pingo de autocontrole. E, claro, devia uma boa quantia para a Cosa Nostra.Na Família, eu era conhecido como o Diabo. Minha regra era clara: ninguém deixava de pagar os italianos. E ninguém ousava desafiar essa regra.Eu não permitia que dívidas ficassem pendentes no meu território. Por isso, sempre fazia questão de resolver isso pessoalmente. Eu me encontrava com os devedores no meu escritório, um lugar aconchegante e bem iluminado, localizado no andar de cima de um prédio que abrigava nossos jogos ilegais. A polícia? Eles sabiam, mas fingiam que não viam. Ainda assim, eu sabia que havia muitos esperando minha queda. Um erro, um deslize, e minha cabeça estaria na mira.Verifiquei o relógio Bu