Capítulo 6 — O recado veio antes da notícia
[Narrado por Muralha] O dia amanheceu suado. E o céu não tava limpo como ontem. Tava pesado. Cinza de guerra. No morro da Conquista, isso é sinal. Sinal de que alguma coisa tá se mexendo onde não devia. Eu já tava de pé antes do despertador natural do morro cantar — os três tiros pro alto que o vapô dispara avisando troca de plantão. Nem precisei. Acordei com um zumbido estranho. Pressão baixa no ar. Silêncio demais nas vielas. Respeito ou medo? Tanto faz. Os dois avisam. — “Chefe,” — Diguinho apareceu na porta, camisa suada, cara fechada — “tem uma fita que cê precisa ver.” — “Fala.” — “Pegamos um rádio ligado na frequência da Rachadura. Tavam se comunicando com uma patrulha.” — “Polícia?” — “É. Mas escuta isso... não era da nossa área. A viatura entrou no beco da favela deles... e não era operação conjunta. Era uma só.” Eu parei. O coração bateu diferente. E o nome dela atravessou minha cabeça sem nem pedir licença. — “Mulher?” — “Sim. Farda. Força Tática. Rádio mudo desde que entrou. E o detalhe: tava na frente da Rua Alta quando os olheiros perderam o sinal.” Rua Alta. Território sujo da Rachadura. Quem pisa ali sem permissão… ou é suicida, ou tá perdido. Ou... é a porra da Alana. — “Tem certeza que era uma mulher?” — “Certeza. E... tem mais. Um dos nossos, o Galo Cego, pegou um pedaço de transmissão. Voz feminina gritando: ‘Tô sendo atacada!’” A bala não disparou, mas meu sangue sim. Me levantei devagar. Firme. Pesado. Com o mundo me grudando na sola da bota. — “Quem mais sabe disso?” — “Só eu e o Galo. Mais ninguém.” — “Vai continuar assim. Tu vai ficar na base. E se alguém perguntar, diz que eu saí pra resolver o preço do carregamento novo.” — “E tu vai pra onde?” — “Pra porra da Rachadura. Buscar o que é meu antes que enterrem sem nome. Se for ela... ninguém toca.” Diguinho hesitou. Mas já aprendeu a não duvidar. Peguei a Desert, a AK, dois pentes extras e o colete leve. Subi na moto. Motor já quente. O asfalto esperando. Antes de descer, olhei pra laje. Pra minha favela. Pro meu reino. E pensei: “Se Alana tiver sido encostada lá… não vai sobrar poste pra pendurar aviso. Vai ser corpo mesmo. Porque mexeram com quem ainda sangra no meu nome. E agora vão engolir o preço.” O morro da Conquista me viu partir. Mas a guerra… a guerra começou quando o nome dela entrou no rádio. (...) Quando eu cheguei, o inferno já tava aceso. O cheiro de pólvora, de sangue fresco, de farda podre no chão. Ela tava lá. No meio da emboscada. Sozinha. Ferida. Mas em pé. Não precisei perguntar. Não precisei confirmar. Era ela. Alana. A mesma que me queimou e depois fugiu da fumaça. O primeiro tiro foi meu. Nas costas do fardado que tentou estrangular o que o morro forjou. Caiu duro, traidor. No chão que não era dele. Porque naquele momento… a quebrada era minha. — “Tá viva?” — perguntei. Ela mal respirava. Mas tava firme. Raiva no olhar, sangue na boca. Me encarou como se eu fosse parte da bala. — “De novo... tu de novo...” Nem discuti. Levantei ela. Igual no passado. No tombo da laje, no escuro da viela, no silêncio da fome. A guerra não esperou conversa. As motos voltaram. Quatro. Cinco. Vindo pelo beco com vontade de matar. A gente lutou junto. Sem ensaio. Sem erro. Ela na minha esquerda, eu limpando a direita. Tiro certo. Respiração cadenciada. Dois fantasmas do mesmo lugar. Quando o último corpo caiu, ela ainda tava de pé. E eu também. Mas por dentro, os dois tavam caindo. Num passado que nunca foi enterrado. Só ficou esperando munição. Subi na moto. Ela ficou ali, com a arma na mão, o orgulho na cara e a dúvida no peito. — “Quando quiser me prender…” — falei sem olhar pra trás — “…sabe onde me achar.” Dei partida. Mas antes do motor engolir o silêncio, virei o rosto por cima do ombro. — “Fagulha.” Porque só eu sei o nome que ainda queima nela. Porque só ela sabe o incêndio que nunca me apagou. A moto rugiu. E eu fui. Mas deixei parte de mim ali. Entre o sangue que ela cuspiu e o nome que ainda respira entre os dentes. Voltei pro morro da Conquista com o sangue dela na manga e o nome dela ainda vivo na minha boca. Mas por dentro… era eu que sangrava. Desci da moto, frio. Com a cara de sempre, mas o peito... cheio de guerra que não fiz. Diguinho tava na entrada da laje. Olho atento, mas com aquela maldita curiosidade na cara. — “Deu ruim, chefe?” — “Deu certo. Pra mim.” — “E ela?” — “Ela é ruína que anda, Diguinho. Mas ainda não caiu.” Ele entendeu. Porque quem já teve o coração esmurrado por alguém, não pergunta muito. Só respeita o silêncio. Subi. Fui pro meu canto. Aquele ponto alto onde vejo a cidade de joelhos e o mundo de longe. Acendi o cigarro. Traguei com o gosto dela preso no céu da boca. Fagulha. O nome queimava mais agora que eu tinha dito. Porque tem nome que a gente cospe pra não sentir. Mas o dela não. O dela fica. Fica entre o dente e a saudade. Entre o orgulho e o que restou de mim. Ela tava diferente. Mais dura. Mais seca. Mas o olhar… o olhar era o mesmo. Aquele de quando ela jurava que ia fugir e voltar por cima. E voltou. Armada. Fardada. Sozinha. Mas viva. E eu? Eu fui o que sobrou do passado dela. O que a rua moldou. O que o Estado quer derrubar, mas não consegue nem encostar. E mesmo assim... eu fui o único que segurou ela em pé. Dois lados. Mesma origem. Mesmo inferno. Mesmo fogo. Mas se ela me olhar de novo daquele jeito… se ela mirar em mim com os olhos e não com a arma… eu vou esquecer que ela é farda. E lembrar que ela foi lar. Só que até lá, eu fico aqui. No trono de concreto. Com a cidade calada lá embaixo, e o nome dela gritando aqui dentro. Fagulha. Se tu voltar... volta pra matar. Ou pra morrer junto. Porque da próxima vez que a gente se cruzar... ou tu me algema ou tu me beija. E eu tô pronto pros dois. Fechei os olhos. E lá estava ela… Não de farda. Não com a arma na mão. Mas do jeito que só eu vi. Descalça, rindo de um nada qualquer, com o cabelo bagunçado pelo vento do alto da laje. A Alana antes da farda. Antes do mundo dividir a gente. Antes do sangue virar rotina. A lembrança veio como tapa: viva, quente, inteira. ** Tinha chovido o dia todo. O chão ainda tava molhado. A gente se escondia da polícia e da vida embaixo do toldo furado da birosca da Dona Cida. Ela me olhou daquele jeito. A testa franzida, o olho apertado, como se ler meu pensamento fosse mais fácil que encarar o próprio. — “Tu vai fugir mesmo, Caio?” — “Se eu ficar, morro.” — “E se eu pedir pra tu morrer aqui comigo?” — “Aí eu fico.” Silêncio. Mas era o tipo de silêncio que grita mais que briga. Ela mordeu o canto da boca. Eu fiz força pra não olhar. Mas perdi. Ela chegou perto. Tão perto que eu quase recuei. Mas não recuei. — “Tu tem medo de mim?” — ela perguntou. — “Tenho medo de querer.” — “Então sente.” E foi. Sem aviso. Sem ensaio. Ela me puxou pela camisa e colou a boca na minha. Foi beijo sujo. Molhado de chuva. De raiva. De desejo. De tudo que a gente não entendia, mas sentia. A mão dela no meu pescoço. A minha na cintura dela, puxando, querendo, queimando. A gente se beijou como quem se jura. Como quem se marca. Como quem sabe que vai doer depois. E doeu. Até hoje dói. ** Abri os olhos. O cigarro tinha queimado até o filtro, esquecido nos meus dedos. Soltei um palavrão baixo, sacudi a brasa, respirei fundo. Aquela porra de beijo ainda mora na minha boca. E o pior? Nem os tiros que a vida deu conseguiram apagar. Porque foda-se o tempo. Foda-se o lado que ela escolheu. Aquele beijo… ainda é meu. E se ela me olhar daquele jeito de novo… Foda-se o mundo. Foda-se o código penal. Foda-se a farda. Eu vou beijar de novo. Nem que seja a última coisa antes do inferno.