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CAPÍTULO 01 Harumi

Dias atuais…

O incenso queimava lentamente, exalando um aroma cítrico de laranja e bergamota que se entranhava na pele como um sussurro ácido, insistente.

A cada inalação, minha mente flutuava por um breve instante antes de ser brutalmente arrastada de volta para minha realidade.

Tudo ao meu redor parece antigo, impregnado de lembranças que não deveriam me pertencer. Cortinas pesadas, móveis escuros, o silêncio denso... Tudo colaborava para fazer o ambiente encolher ao meu redor.

Eu sou uma boneca num relicário decadente, observada, manipulada.

Respirar torna-se difícil. Não por falta de ar, mas pela presença dele. O líder.

O aroma doce do incenso, antes reconfortante, tornava-se opressor demais para suportar.

As correntes que me mantém aqui não são visíveis, mas eu as sinto: apertadas, constantes, cada elo forjado em promessas distorcidas, dívidas de sangue e obrigações que não escolhi.

Eu era dele.

Não por amor. Por posse.

O líder me mantinha por perto como uma peça de xadrez valiosa, ele mesmo dizia, que eu sou "a mais bela do tabuleiro".

Uma honra, uns diziam. Entretando para mim era mais uma mentira envernizada.

A ideia de fugir roçava meus pensamentos todas as noites como um veneno lento.

Mas, eu sabia que se saísse não teria para onde ir.

O líder dizia que eu devia ser grata por ter sido escolhida por ele.

Mas eu não sou.

Não quando cada passo que dou ecoa como uma sentença.

Não quando até meus suspiros têm dono.

Não quando sou forçada a estar com quem não quero.

Não quando a cada encontro minha alma é marcada.

Não quando sei que lá fora, algo melhor né espera.

O incenso queimava.

O aroma cítrico agora parecia ácido em minha garganta.

Fechei os olhos, tentando afastar os pensamentos que insistiam em me assombrar, mas minha mente era uma prisão com espelhos, tudo refletia dor.

Então, um som. Pequeno, mas cortante.

A porta se abriu com um rangido sutil. As luzes se acenderam, banhando o quarto em uma claridade tímida.

Mika.

Seus passos eram leves, mas em minha percepção, soavam como metal contra pedra. Sempre servil, sempre cuidadosa para não ultrapassar limites invisíveis. Seus olhos, como de costume, quase sempre evitavam os meus. Era uma jovem bonita feita de silêncio e conveniência, assim como as outras.

Carregava roupas limpas. O perfume de lavanda que a acompanhava era o único traço de ternura naquele ambiente.

— Senhorita Harumi — disse com um tom reverente, quase religioso. — No escuro novamente?

Ela me olhou, com um sorriso sutil, porém falso. Reconheço a máscara de quem aprendeu a sobreviver entre lobos.

Sem esperar permissão, foi ao banheiro e começou a preparar meu banho, com gestos precisos e frios.

Da onde eu estava percebi o vapor começar a se espalhar, se fundindo ao incenso. Um pequeno teatro de conforto, nada mais que isso.

— Alguma novidade no ritual de hoje? — perguntei. Minha voz saiu mais cortante do que eu pretendia.

Ela hesitou. Por um instante, seus dedos traíram sua compostura, apertando o frasco de vidro com leve tensão.

— Temos um novo prisioneiro — disse, após uma pausa. — Um norte-americano.

As palavras ficaram suspensas no ar, atiçando minha curiosidade. Era raro alguém de fora nas demonstrações de tortura do clã.

Me endireitei. Meu coração bateu mais rápido, não por esperança, mas por instinto.

— Norte-americano? — repeti.

Mika hesitou. Seus olhos me encontraram, e neles vi algo... medo, talvez, ou dúvida.

Afinal, eu também era uma.

— Sim — disse ela. — De uma hierarquia inimiga.

Me levantei devagar, tirando o vestido com gestos teatrais. Fingir indiferença era minha maior arma. Mas por dentro, a inquietação me corroía. Será que Long sabe disso?

Claro que sabe, nada escapa de seus olhos. Meu amigo é um pouco paranóico quando o assunto é tudo o que acontece aqui dentro.

Mika recolheu minhas roupas com a mesma calma de sempre. Enquanto isso, eu me afundava na banheira, mergulhando sobre ela.

— De todas as mulheres que servem ao jovem mestre, a senhorita é a mais linda — disse, com um toque de bajulação quase automático. — Talvez por isso o senhor a estime tanto.

Estima?

Como se eu fosse algo mais do que um objeto precioso trancado numa vitrine luxuosa.

Ignorei suas palavras.

Minhas ideias voltaram para o prisioneiro. Quem ele era? O que fizera para ser trazido para cá? E, acima de tudo... por que Long não me contou?

— Irei rever sua maquiagem e revisar o manto. — Sua voz recuperou o tom neutro e profissional. — Acrescentei mais diamantes. O líder achou pouco no último ritual.

Típico.

Mesmo o luxo precisava sangrar.

Ouvi Mika no quarto, remexendo no guarda-roupa como fazia todas as noites de ritual. Ela sempre escolhia o que eu devia vestir, como se minha vontade fosse mais um acessório que podia ser guardado numa gaveta.

Logo, retornou segurando um tecido que reluzia sob a luz trêmula das velas.

Um manto longo, belíssimo, feito para transformar meu corpo em símbolo. Uma deusa artificial, construída para ser venerada... e usada.

— O jovem mestre estará presente esta noite? — A pergunta escapou antes que eu pudesse impedi-la.

Mika parou por um segundo antes de responder.

— Há boatos de que não. Ele está em viagem de negócios.

O alívio me atingiu como um sopro de ar fresco. Ele não estaria lá. Isso também significava...

O Sr. Miller não estaria.

Minha respiração desacelerou. Um sutil sorriso ameaçou se formar em meus lábios, mas o engoli antes que Mika percebesse.

— Então o prisioneiro não será morto esta noite? — arrisquei, mantendo o tom neutro.

Ela hesitou mais uma vez, brevemente.

— Não sei...

Terminei o banho em silêncio. Ao sair, envolvi-me com uma toalha e caminhei até a cama. O manto estava lá, esperando por mim. Toquei o tecido devagar. A seda escorreu entre meus dedos como água.

Assim como minha pele escorreria sob o toque deles.

Sentei-me diante do espelho enquanto Mika preparava os pincéis e pós.

Era como um ritual.

Ela pintava um rosto que não era realmente meu. Uma máscara feita de beleza, silêncio e obediência.

A imagem no espelho era perfeita demais. Pele pálida, traços delicados, olhos frios e calculados. Mas eu sabia onde estavam as rachaduras. Atrás do olhar vazio. Nas sombras sob os olhos. No aperto contido dos lábios. Pequenas falhas tentando escapar da perfeição forçada.

— Como é o mundo lá fora?

Quantas vezes já fizera essa pergunta? E, mais ainda, por que eu continuava fazendo? Talvez por teimosia. Ou talvez... para testar Mika. Para ver se, algum dia, ela responderia algo diferente. Algo que me fizesse acreditar que ela também queria sair.

— Perigoso, senhorita Harumi — respondeu com calma, sem levantar os olhos. — Ainda mais agora, com o jovem mestre está lidando com as guerras. Lá fora nada é seguro.

Nada é seguro.

Era o que todos aqui diziam. Mas como confiar em palavras ditas por quem ganha com minha prisão?

Eu conhecia o mundo exterior apenas pelas histórias de Long. Era ele quem me falava das cidades, das luzes, das vozes livres. Meu único amigo nesse lugar. E mesmo assim... não bastávamos. Eu e Log não conseguiríamos sozinhos.

Olhei para Mika.

Ela continuava seu trabalho com precisão. Indiferente. Dedicada.

Mas e se, por trás dessa fachada, houvesse algo mais? Um desejo sufocado? Um medo? Uma falha?

Ou será que ela só quer manter um dos seus bichinhos de estimação por perto?

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