Perdendo o coração

— O que é isso? — Henrique sentiu a raiva subir assim que entrou em seu escritório.

A sorte era que aquele ambiente, a sala de controle e dois dos aposentos de descanso eram preparados para variações maiores de humor do Imperador ou, talvez, um acidente teria acontecido.

Lívia estava sentada em uma cadeira de frente para sua mesa, de frente para a vista da Terra, de costas para a porta, onde Henrique estava. Suas mãos estavam retorcidas em uma liga de metal utilizada para conter criminosos. Não era, exatamente, compatível com humanóides, se em contato com a pele humana por muito tempo, podia causar danos permanentes e infecção da corrente sanguínea. Nunca tinha sido testada, porém, em terrestres. E Henrique não concordava com testes, muito menos em Lívia.

— Esse material não é para humanóides e se vocês estão nessa nave, vocês sabem disso — Henrique ralhou. — Soltem-na e saiam. Ela não deve ser amarrada com nenhum material em nenhum momento. Repliquem a ordem.

Os dois guardas se entreolharam e Henrique sabia que eles estavam achando que ele era maluco. Lívia tinha tentado assassiná-lo no dia anterior e agora ele queria ficar sozinho com ela sem nenhuma contingência. Mesmo assim, os dois cumpriram a ordem e os deixaram sozinhos.

Henrique olhou para Terra, estavam sobrevoando o oceano. Ele nunca tinha visto o oceano até retornar ao planeta como Imperador. Era lindo. Gostaria de ter tempo para passear por ele algum dia.

Caminhou até a cadeira e sentou-se de frente para Lívia, encarando-a. Ela sustenta o olhar por poucos segundos e desvia, parecendo incomodada. Seu cordão está em seu pescoço, o pingente escondido por dentro da blusa em seu decote.

Ela já sabia que ele era o Imperador e ainda não o tirara. Para ele, havia esperança de fazê-la compreender.

— Você me beijou ontem — ele disse. — E aí tentou me matar.

A acusação pairou no ar, sem ameaças. O tom era leve, de suas antigas implicâncias e brincadeiras, mas Lívia não pareceu ter percebido. Henrique engoliu a seco vendo-a apertar as mãos no braço da cadeira que ocupava.

Passou-se um longo minuto sem que ela respondesse.

— Você não quer falar comigo, é? — Perguntou. — Tudo bem. Eu passei cinco anos fora, compreendo que mereço seu silêncio — brincou. — Mas, em minha defesa, gostaria de relatar que fui fiel.

Lívia, imediatamente, encarou-o, o olhar assustado. Henrique a conhecia bem o suficiente para saber que algo tinha acontecido. Fora um blefe e agora ele tinha certeza. Não era que a culpasse, ela não entendera o contexto da história que estava protagonizando; mas isso o deixava triste e preocupado.

Será que ela ainda era capaz de amá-lo como ele ainda a amava ou outra pessoa teria ocupado seu lugar?

Seria… Ele?

A expressão preocupada de Lívia se dissipou no ar e Henrique observou todas as suas nuances. Percebeu quando ela começou a acaliá-lo como se estivesse decidindo se ele mereceria suas palavras ou não.

— Onde está meu irmão? — Lívia perguntou, por fim. Sua preocupação era maior que seu orgulho. — E Jeff?

Jeff.

Henrique fechou a cara e suas brincadeiras estariam encerradas por enquanto. Engoliu o ciúme com todo o autocontrole que tinha.

— Denis está bem — garantiu.

Lívia mexeu a pálpebra inferior e havia um tom de ameaça dançando em seu olhar que fez Henrique piscar duas vezes para checar se não estava vendo uma miragem.

Ela era mais linda do que ele se lembrava, mas achava que parte tinha se dado pelo fim da puberdade e a maturação de suas feições. Tinha perdido o arredondado de suas bochechas e o ar juvenil. Tinha emagrecido, ganhado músculos e achava que seu cabelo escurecera e os olhos clarearam.

Mas não era aquela a sua Lívia. Era outra. Era voraz, forte, implacável. Ele conseguia ver suas nuances, todas elas, e como cada pedacinho de sua personalidade tinha se transformado.

Por algum motivo, ele parecia estar mais atraído por aquela Lívia mulher do que pela garota que ele tinha conhecido.

— Estão nessa… Nave? — Rosnou a palavra, quase como se estivesse com nojo de proferi-la.

Foi a vez de Henrique desviar o olhar.

— Ambos estão pagando pelas escolhas erradas que fizeram — resolver dizer antes de voltar a encará-la.

Os dois mediram-se no olhar por um longo momento que durou quase uma eternidade. Henrique cruzou os braços no peito, desconfortável, enquanto Lívia ainda apertava os braços da cadeira, procurando algo para se segurar. Ambos passaram cinco anos ansiando por aquele reencontro e não estava sendo agradável para nenhum dos dois.

Foi Lívia que decidiu que as palavras deveriam ser ditas.

— Não entendo como pode ser você — disse, balançando a cabeça. — Não entendo como isso — ela apontou para a nave com seu queixo, abrangendo toda a situação. — Pode vir da pessoa que eu amei.

Henrique prendeu a respiração ao ouvir o verbo ser conjugado no passado. Piscou mais algumas vezes, sentindo a garganta se fechar. Todo o trabalho que tivera, todo o sofrimento que passou e ele já tinha perdido Lívia…

— É isso, então? — Perguntou. — Você não me ama mais?

Foi a vez de Lívia sentir o baque. Ao contrário dele, o ar deixou seus pulmões enquanto ela se sentia sufocar em seu próprio pesadelo. Tivera tanto medo de alienígenas e do Imperador por ter sequestrado Henrique ele ele era o próprio imperador? Havia um nó em sua mente que ela não conseguia resolver.

— Você não é o meu Ric — decidiu. — É outra… Coisa. É diferente.

Henrique amenizou sua expressão, por fim. Podia entender a confusão da mulher, ele mesmo estava confuso com o tanto que ela havia mudado. Tudo o que ele podia fazer era esperar que ela considerasse amar o homem que ele havia se tornado no lugar do garoto.

— Você é diferente da garota que ficou aqui — ele murmurou, um sorriso brincando em seus lábios. — É diferente e eu ainda te amo.

A declaração foi natural para Henrique como todas as outras vezes que ele tinha confessado seu amor para ela quando eram jovens e inconsequentes. Lívia, porém, sufocou em desespero ao ouvi-lo dizer. A resposta saiu antes que ela pudesse se conter:

— Como eu poderia amar você agora? — Perguntou. — Você é um monstro! Olha o que você faz!

Henrique congelou em seu lugar.

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