O cheiro do café recém-passado se espalhava pela casa, misturado ao som distante da televisão ligada na sala. O relógio da cozinha marcava 7h32 quando Clara desceu as escadas, ainda vestindo seu roupão branco de algodão, os cabelos castanhos presos em um coque frouxo e os olhos inchados de sono. A casa onde vivia com os pais e os dois irmãos mais novos era espaçosa, mas os sinais de desgaste nas paredes e nos móveis já denunciavam os tempos difíceis que vinham enfrentando.
Clara havia completado 22 anos no mês passado. Cursava Letras na faculdade pública da cidade, mas há quase um semestre havia trancado a matrícula para ajudar nas contas de casa. Trabalhava meio período em uma livraria no centro, e passava o resto do dia entre panelas, roupas para lavar e a tentativa de manter alguma ordem na rotina dos irmãos adolescentes, Lucas e Henrique.
A voz de sua mãe, Irene, veio da cozinha, como um sussurro carregado de cansaço:
— Bom dia, filha. Dormiu bem?
— Mais ou menos — respondeu Clara, abrindo a geladeira e pegando o leite.
Os olhos da mãe estavam fundos. Ultimamente, mal dormia. As preocupações com o pai, o sumiço do dinheiro da conta, os telefonemas estranhos durante a madrugada... Tudo parecia escorrer por entre os dedos da família como areia seca.
Clara percebeu a ausência do pai. João Carlos não estava sentado à mesa como de costume. Ele era um homem imponente, de voz grave e gestos firmes, dono de uma pequena empresa de importação que herdara do próprio pai. Pelo menos, até poucos meses atrás. Desde que os negócios começaram a afundar, ele se tornara um estranho em casa: calado, amargo e ausente.
— Ele saiu cedo de novo? — Clara perguntou, tomando um gole de café.
Irene apenas assentiu com a cabeça, como se evitasse dizer em voz alta algo que já pesava sobre todos. Clara sabia que o pai estava envolvido com jogos de azar. Tinha descoberto por acaso, ao ver mensagens no celular dele enquanto o carregava na sala. Dívidas. Apostas. Um vício que começara com inocência e terminara em promessas quebradas e olhares evitados.
— A gente vai conseguir sair dessa — disse Clara, mais para si mesma do que para a mãe.
Mas Irene apenas suspirou. Era difícil acreditar quando os cobradores já haviam batido à porta duas vezes naquela semana. O último empréstimo que o pai fizera colocava a casa como garantia, e agora estavam todos à beira do colapso.
O dia seguiu arrastado. Clara saiu para o trabalho às 9h e retornou por volta das 15h, caminhando sob o sol quente com passos lentos. Ao chegar em casa, encontrou o pai sentado na sala, com o paletó sobre o encosto da cadeira e o olhar vidrado para a televisão desligada.
— Oi, pai — disse, tentando parecer natural.
Ele levantou os olhos para ela, mas não respondeu. Apenas acenou de leve com a cabeça. Clara estranhou a quietude. Havia algo diferente em sua expressão. Menos tensão, talvez. Ou alívio. E foi então que ele se levantou e falou, pela primeira vez naquele dia:
— Clara, preciso conversar com você.
Ela gelou por dentro. O tom de voz era sério, mas não agressivo. Ainda assim, algo naquela frase a fez sentir que o mundo ao seu redor estava prestes a ruir.
— Claro, pode falar.
Ele caminhou até o sofá e fez sinal para que ela sentasse ao lado dele. Quando Clara se acomodou, ele começou:
— Eu... Eu cometi muitos erros. Erros graves. Estou afundado em dívidas que não consigo mais pagar. Já tentei de tudo. Vendi carros, tirei dinheiro de onde não devia, fiz promessas... Mas agora chegou num ponto em que não há mais saída.
Clara ficou em silêncio. A garganta apertada.
— Hoje de manhã — continuou — encontrei um antigo conhecido dos negócios. Um empresário... um homem muito poderoso. Um CEO de uma das maiores holdings do setor financeiro do país. Ele me ofereceu ajuda. Disse que pode pagar todas as minhas dívidas, salvar nossa casa e nossa empresa. Mas em troca...
João hesitou.
— Em troca de quê? — Clara perguntou, com o coração disparado.
— Ele quer se casar com você.
Clara riu, achando que era uma piada de mau gosto. Mas quando olhou para o pai, viu nos olhos dele a verdade amarga.
— Isso é loucura! — ela exclamou. — Eu nem o conheço!
— Ele... ele conhece você. Disse que já te viu uma vez, em um evento. Ficou impressionado. E agora quer unir as famílias, segundo ele. Um acordo. Um contrato.
— E você aceitou?
João não respondeu. Mas o silêncio falou por ele.
Clara se levantou, revoltada, lágrimas nos olhos.
— Você quer me vender como moeda de troca?
— Não é isso! — ele se ergueu também, tentando alcançá-la. — Eu não tenho escolha, Clara. Se não aceitarmos, vamos perder tudo. Literalmente tudo.
Ela saiu correndo para o quarto, batendo a porta com força. Encostou-se à madeira fria e desabou em lágrimas.
O silêncio voltou a dominar a casa. Mas agora, era o tipo de silêncio que precede uma tempestade.
A noite caiu pesada sobre a cidade, como se soubesse que algo havia mudado irremediavelmente na vida de Clara. Ela não jantou, não respondeu às mensagens dos irmãos batendo à porta, nem saiu do quarto. O celular permaneceu jogado sobre a escrivaninha, desligado. As horas passaram em silêncio, exceto pelos ruídos abafados da televisão na sala. Quando o relógio marcou três da manhã, Clara ainda estava acordada, os olhos fixos no teto, o peito queimando em um misto de raiva, medo e impotência. Na manhã seguinte, ela despertou com a luz invadindo o quarto pelas frestas da cortina. O rosto inchado, a garganta seca. Levantou-se como quem carrega o peso do mundo nos ombros. Ao sair do quarto, encontrou a casa vazia. Um bilhete preso com ímã à geladeira indicava que a mãe havia levado os irmãos à escola e o pai tinha uma reunião importante. A caligrafia era apressada, quase ilegível. Clara não se deu ao trabalho de respondê-los. Serviu-se de café, o mesmo de ontem, requentado, e tentou acal
Clara passou o restante do dia como se estivesse vivendo um sonho lúgubre. Após a conversa com Enrico, voltou para casa com o mesmo motorista, mas não conseguiu sequer apreciar o trajeto. A cidade parecia mais distante, mais cinza. Sua casa, antes pequena e acolhedora, agora lhe dava a sensação de confinamento. Assim que entrou, encontrou a mãe preparando o almoço, os irmãos rindo no sofá da sala, e o pai... ausente. De novo. Aquilo parecia se tornar padrão. — Clara? — perguntou a mãe, sorrindo, com o rosto cansado e olhos sublinhados por olheiras. — Onde esteve, querida? — Eu... fui resolver umas coisas — respondeu, hesitante. — Com o papai. A mãe não questionou. Talvez já estivesse acostumada com os segredos que circulavam por aquela casa como fantasmas. Clara subiu para o quarto, sentindo-se mais só do que nunca. Naquela noite, não dormiu. E no dia seguinte, como prometido, o contrato chegou. Foi entregue por um mensageiro formal, dentro de uma pasta de couro preta, com uma c
A manhã do casamento chegou com uma suavidade desconcertante, como se o mundo quisesse ignorar o peso do que estava prestes a acontecer. O céu estava limpo, sem uma nuvem à vista, e o ar fresco da primavera invadia a casa com uma suavidade que parecia irônica diante da tensão que Clara sentia. O dia deveria ser especial, mas, para ela, parecia apenas um rito de passagem forçado. Clara se olhou no espelho do quarto que agora dividia com Enrico, o rosto pálido, com a maquiagem impecável que Daniela, assistente de Enrico, fizera questão de aplicar. O vestido de noiva, que ela escolheu sem muita emoção, parecia mais uma armadura do que um traje de celebração. O tecido branco e a renda delicada contrastavam com a frieza de seus pensamentos. O espelho refletia a imagem de uma mulher que estava prestes a dar um passo irreversível em sua vida, mas que não sabia se ainda conseguia se reconhecer no reflexo. A casa estava calma. Sua mãe havia ficado na cozinha, preparando um café que ninguém b
A primeira noite no grande casarão foi silenciosa, tão silenciosa que Clara sentiu como se estivesse em um outro mundo, isolada de tudo o que um dia conheceu. O lugar, imenso e imponente, estava longe de ser acolhedor. Ela se mexia na cama, tentando se ajustar ao novo ambiente, mas a cama enorme parecia fria e distante, e a quietude da casa fazia com que ela sentisse um peso no coração. Nada sobre aquele lugar parecia familiar. Quando Clara olhou ao redor, a decoração luxuosa e impessoal não fazia sentido para ela. Cada objeto, cada móvel, parecia ter sido colocado ali com o único propósito de impressionar, e não de trazer aconchego. A grande janela do quarto, que dava para o jardim, permitia que ela visse as luzes da cidade distante, mas não oferecia a sensação de conforto que ela desejava. Ela fechou os olhos, tentando bloquear os pensamentos que invadiam sua mente, mas não conseguia. As imagens do casamento, a assinatura do contrato, a promessa de Enrico de cuidar dela... Tudo par
A vida na casa de Enrico começou a se moldar em uma rotina. Embora Clara ainda estivesse tentando se adaptar, o novo ambiente parecia ser mais uma prisão do que um lar. Todos os dias, ela acordava cedo, enfrentava o silêncio da casa e passava os momentos mais desconfortáveis tentando entender seu lugar ali. Enrico, por sua vez, se mostrava distante, imerso nos seus próprios pensamentos e tarefas, como se já tivesse se acostumado com a presença dela, mas sem nunca realmente estar presente. Clara sentia falta da liberdade que tinha antes. Mesmo com a obrigação do casamento, ela não podia negar a saudade que sentia de sua antiga vida, da simplicidade das manhãs na casa de seus pais. Mas, com o passar dos dias, as coisas começaram a mudar — para pior. A rotina de Clara era marcada por longos períodos de solidão. Enrico saia cedo para trabalhar e só voltava à noite, deixando-a sozinha com a casa, os empregados e a imensidão daquele lugar. Embora ela tivesse total acesso aos luxos do casa
Os dias começaram a se arrastar de maneira monótona, mas Clara não conseguia afastar da cabeça as palavras que ouvira naquela noite. Enrico estava escondendo algo, algo que poderia mudar tudo. Ela não sabia o que era, mas a sensação de desconforto só aumentava. Toda vez que ele a olhava com aqueles olhos frios, Clara sentia que ele sabia mais do que dizia. Algo no comportamento dele estava fora do lugar, mas o que exatamente? Era como se ela estivesse cercada por um jogo de sombras, onde as regras estavam sendo constantemente mudadas, e ela era a única que não sabia as respostas. Enrico, por sua vez, não parecia nem um pouco abalado. A cada dia, ele se tornava mais distante, mais centrado no trabalho. Suas interações com Clara estavam limitadas a momentos formais, como se ela fosse uma estranha, uma convidada em sua casa e não sua esposa. Embora fosse óbvio que ele tinha outros interesses além dela, Clara se sentia pressionada a manter as aparências, a continuar com o papel que lhe f
Clara acordou com uma sensação de desconforto. O vento frio que entrava pelas janelas abertas sussurrava uma música melancólica. A casa parecia imensa, mas ao mesmo tempo opressora, como se as paredes estivessem se fechando sobre ela a cada dia. Ela levantou da cama lentamente, os pensamentos turvos e entrelaçados, mas a imagem de Gabriel e a reação de Enrico ainda estavam frescas em sua mente. Ela tentou racionalizar tudo. Enrico sempre fora tão reservado, sempre tão controlador. Mas algo nela, talvez a intuição, lhe dizia que o marido estava escondendo algo muito maior. Clara não conseguia ignorar o fato de que, quando Gabriel apareceu, Enrico mudou completamente. O comportamento rígido e autoritário de Enrico não era apenas com ela, mas também com os outros ao seu redor. Gabriel, um homem aparentemente comum, parecia ter algum tipo de importância para Enrico. Isso, por si só, já era suficiente para que Clara se sentisse inquieta. Enquanto tomava seu café na grande cozinha da mans
A tensão no ar era palpável. Clara ficou ali, na biblioteca, encarando Enrico com uma mistura de confusão e raiva. Ele sabia que algo estava acontecendo, e ela também sabia que ele estava escondendo mais do que podia imaginar. Gabriel se afastou discretamente, permitindo que Clara tivesse a atenção total de Enrico. A sala parecia ainda maior agora, as sombras projetadas pelas luzes suaves do lustre criando uma atmosfera carregada de mistério. Enrico entrou na biblioteca, fechando a porta atrás de si com um estalo seco. Ele não disse nada por um longo momento, apenas observando Clara, como se estivesse esperando que ela falasse. Mas Clara não podia mais esperar. Ela precisava saber a verdade. — O que você está escondendo de mim, Enrico? — Clara perguntou, sua voz firme, apesar da apreensão que sentia. Ela não podia mais fingir que tudo estava bem. Enrico deu um passo à frente, seu olhar cortante como uma lâmina afiada. Ele parecia pesar suas palavras, mas, em vez de responder direta