O Tombo de Teresa

Conto III

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A inauguração da avenida 6 estava muito movimentada naquela manhã carioca. As pessoas ficaram curiosas para olhar a nova rua que tanto falavam na cidade. Tereza Donabella observava cada detalhe atentamente.

A rua era espaçosa, com quatro vias para ir e vir o quanto quisesse. No meio de cada uma delas, haviam imensos coqueiros que pareciam tocar o céu. Canteiros de gramas estavam aos pés deles. Nas margens da avenida, comércios e casas estilo portuguesas numa mistura de cores vibrantes que só o Rio de Janeiro tinha. A maioria das janelas que se abriam para os observadores, eram brancas e de madeira. Quase ninguém estava nelas a olhar o movimento. Que grande desperdício de invenção. Assim pensou Teresa. Para ela, janelas foram feitas para emoldurar a realidade assistível.

As pessoas que passavam pela nova avenida vestiam roupas mais europeias, afinal, todo mundo buscava agradar a Família Real. Com a chegada deles, as pessoas mudaram. Teresa observou algo que antes ela não vira de perto em seus vinte e tantos anos: sistema de esgoto. Aquele trabalho que antes era feito pelos tigres¹ agora não dependia mais de ninguém para isso. Uma invenção esplêndida! Teresa era amante da Revolução Industrial. Em sua casa, uma pilha de livros a cerca disso estava em cima da sua escrivaninha. Graças aos céus seu pai nunca foi do tipo patriarca absolutista que impedia as filhas de se educarem. Teresa tinha quatro irmãs e um irmão.

A jovem observadora da avenida pulou uma poça de lama segurando sua saia demasiadamente grande e cheia de babados e pensou que sua mãe era sim uma matriarca absoluta que levava muito a sério a moda da época, afinal, obrigava as filhas a usarem os vestidos mais balados em cada temporada. Ela soltou um leve risinho ao ver que os pensamentos sobre a sra. Donabella coincidiram com o exato momento que ela passou em frente ao teatro do vereador Rubens. O velhote rico gastou uma fortuna em favor da cultura. Que nada! Ele só quer agradar ao Rei. Apesar disso, as apresentações eram maravilhosas. Tanto Teresa quanto sua mãe amavam ópera e vinham todas os sábados assistir ao cantor Garganta de Galo.

Alguns poucos carros pretos com capota passavam por entre toda aquela gente nas ruas calçadas de paralelepípedo. Teresa olhou para aqueles automóveis e viu que não eram nada confortáveis, além de quê, os donos deles passavam todo o trajeto num tremelique sem fim por causa do calçamento. Ela bem sabia que se sentiria enjoada com todo esse balança-balança. Teresa pegou-se agradecendo por não ter um carro.

Um cachorro correu por Tereza e sua irmã mais nova, quase levando-as junto. As duas alinharam suas longas saias com panos que dariam para vestir todo o litoral. O Rio é muito quente, mas as mulheres insistiam em sair com roupas pesadas e cheias, ao passo que os homens, vestiam ternos e casacas. Que povo doido.

– Quando vais parar de olhar enternecida para essa rua e começar a caminhar mais rápido? – A caçula dos Donabella deu um peteleco na cabeça de Teresa. Logo após, apoiou as mãos na cintura e fez menção de reprovação.

– Por que a pressa, Catarina? – A voz de Teresa era tão suave que qualquer pessoa se ludibriaria ao ouvi-la pela primeira vez.

– A loja de tecido fechará dentro em breve.

Teresa não entendeu porque era algo de tamanha urgência. Ora, se a loja fechasse hoje, poderiam voltar amanhã. Ela não se importava de caminhar todo o caminho de novo, pelo contrário, amava passear a pé pelo Rio.

A irmã olhou para Teresa com cara de tédio e continuou o caminho. Ela sempre fora muito, muito agoniada. Faltou tinta no tinteiro quando foram escrever as qualidades da pequena, no ato de criação dela, e a palavra "paciência" ficou de fora. Catarina era somente cinco anos mais nova que Teresa, mas parecia que sua idade mental tinha parado de evoluir na idade tenra.

– Espere, Catarina, suas pernas são longas, mas as minhas não.

– Não invente de cair como sempre faz quando anda na rua! – Ela respondeu de volta, zangada – É inauguração da avenida, não me venha passar vexame na frente desse povo.

– Não sabia que eu era motivo de vergonhas para a nossa família, minha irmã. – Teresa esmoreceu-se.

– Como sempre, a dramática. Se eu soubesse que me atrasarias, teria trazido Juraci. – A irmã mais velha das duas.

As duas caminharam um pouco mais até ter que esperar no cruzamento os carros passarem. A loja de tecidos favorita de Catarina estava bem perto. Teresa a faria coser roupas novas só por causa desse desaforo. No entanto, parece que o tiro saiu pela culatra.

Teresa olhou de longe uma placa na porta da loja de tecidos que avisava uma liquidação de um dia. Compreendeu, assim, a pressa da irmã, mas foi só se distrair com esse pensamento, que tropeçou em um banquinho que o engraxate usava para limpar os sapatos do cliente. Teresa foi ao chão. A jovem sentiu que sua mão ralou no chão de pedras e uma dor forte nas nádegas lhe assolou. Mas não bastasse isso, ela continuou rolando até bater num poste a gás. Feriu a cabeça e um filete de sangue manchou a pele alva de Teresa. Sua irmã não tratou de acudi-la, antes, gargalhou alto segurando a barriga de tanto rir, como se estivesse se desfazendo de uma desconhecida. E a acidentada ficou lá, desnorteada, mal sustentando os olhos abertos.

Foi então que as duas jovens ouviram três vozes em uníssimo gritarem desesperadas o nome de Teresa. Catarina olhou de longe três senhores correrem para junto delas. Os três, de chapéu na mão, estenderam juntos as mãos para a moça caída e perguntaram se ela necessitava de ajuda. O primeira era pai das duas, senhor Carlos Donabella, o segundo, o uníssimo irmão mais velho, Eustáquio. O terceiro, era desconhecido por Catarina e talvez por Teresa. No entanto, foi para este que ela deu a mão.

O senhor desconhecido levantou com cuidado a pobre e machucada Teresa, como se ela fosse o ser mais frágil do mundo, ou ainda, como se a vida dele fosse exclusivamente dedicada a cuidar da moça. No primeiro momento, ela não olhou para aquele que a ergueu, estava mais preocupada em colocar a visão no lugar e expulsar a terrível sensação de tudo estar girando.

– Você está bem? – Teresa ouviu uma voz que não era de seu pai nem de seu irmão.

– Por que eu cai justo na inauguração da avenida? – Foi a resposta sussurrante que ela deu. Mesmo desnorteada, sentiu vergonha por tal episódio de desastre. Parece que praga de Catarina pegou mesmo.

Ele, que se chamava Patrício, sorriu debilmente ao notar a doçura daquela moça. Ajudou-a a se sentar no mesmo banquinho que outrora lhe derrubara. Disse ao engraxate que passaria a ser seu cliente para sempre se cedesse o acento para a dama ferida. Os dois firmaram o acordo em segundos. Logo após, o pai de Teresa puxou o lenço do bolso e limpou o sangue da testa da moça. Eustáquio tentava trazer de volta a lucidez da irmã com perguntas como "quem sou eu?" "aonde moras?". Ela respondia corretamente a todas.

– Nossa irmã está bem, papai. – Afirmou, assim Eustáquio – Foi só um tombo.

– Eu não acho. – O pai contrariou – Ela até sangrou!

– Ora, papai, foi só um cortezinho. – Desfez-se Catarina da dor de sua irmã.

– Receio que não, senhorita Donabella. – Patrício interveio – Sua irmã bateu a cabeça e deve descansar, pois pode ter sofrido uma concussão.

Patrício examinou a cabeça de Teresa, tocando sua pele pálida. Sentiu que seu estômago deu leves cambalhotas dentro de si e estranhou a sensação que nunca antes havia sentido e que não estava registrada nos livros que estudava.

– E quem é o senhor para diagnosticar isso e ainda por cima, tocar minha irmã? – Catarina cruzou os braços, como se o desafiasse a ser superior a ela.

– Ele é meu colega de faculdade e futuro médico. – Quem respondeu foi Eustáquio.

– Aliás, o que vocês três fazem aqui? – Dessa vez, foi Teresa que reagiu.

Todos olharam para ela, que já se levantava do banquinho. Patrício imediatamente segurou seus braços para apoia-la e não a soltou. Ele temia que ela, tonta devido à queda, caísse de novo. O senhor Carlos logo fechou a expressão ao notar o toque displicente do amigo de seu filho e Eustáquio se apressou em tomar o lugar dele.

– Você o conhece? – Catarina apontou para Patrício.

– Claro, eu já existia quando você nasceu, sua pentelha. – Teresa, com a mão na cabeça, respondeu ironicamente.

– Éramos amigos de infância. – Justificou Patrício.

– Eram? – O pai, a filha mais nova e o filho mais velho perguntaram, assustados.

– Sim. – Respondeu o casal.

Eustáquio começou a reclamar a Patrício o porquê de ele nunca ter comentado nada, enquanto remexia a pobre ferida, sem perceber. Mais uma vez, o senhor que não era um Donabella teve de ampara-la. Tratou de conduzir toda a alvoroçada família para casa, enquanto os três senhores explicavam suas passagens na inauguração da Avenida.

– Eu vim comprar um sapato novo para o meu seminário da semana que vem.

– Patrício e eu viemos ver a nova avenida, oras.

Catarina, espantosamente, só observava a trama, mirabolando em sua cabeça uma forma de se vingar de Teresa por tê-la feito perder a liquidação de tecidos. Se sua mãe não fosse tão rígida, ela poderia ir à loja sozinha enquanto eles voltavam com a ferida para casa, mas ela nunca podia andar desacompanhada.

– Na verdade, eu vim por outro motivo. – Patrício comentou, tenso.

O pai e o filho olharam para ele. Catarina continuou nos pensamentos.

– Eu vim para pedir a mão de Teresa. – Prosseguiu em seu discurso o Patrício.

O senhor Carlos se engasgou com uma bebida inexistente em sua boca ao passo que Eustáquio arregalava os olhos, se sentindo traído. Ele pensou naquele momento que o amigo só tinha perdurado a amizade para pedir sua irmã em casamento. A atenção de Catarina foi fisgada.

– Ponha seus pés fora do Rio ainda hoje, ou eu acabo com essa sua medíocre vida! – Ameaçou o pai de Teresa.

– Mas senhor, eu a amo! - Patrício defendeu-se.

– E como arrumastes tempo para amar a minha filha? Anda se encontrando escondido com ele, Teresa?

Foi a vez da moça entrar na confusão. Ela ainda sentia dor de cabeça, mas teve de resolver esse problema primeiro.

– De modo algum, querido pai! Sou moça casta e de boa índole. Na verdade, estou tão surpresa quanto vocês em relação a proposta do senhor Patrício.

– Senhor, – o pretende de Teresa chamou, temeroso – eu nunca me encontrei com a senhorita Donabella depois de meus nove anos de idade. Na verdade, eu a reencontrei agora e quando vi tamanha graciosidade de sua filha, apaixonei. Quando a vi indefesa, no chão sujo da avenida, percebi que eu deveria protegê-la para sempre. Então percebi que eu a amo.

– Isso é uma tremenda idiotice! – Eustáquio reclamou.

– Eu aceito!

Todos olharam para Teresa que acabara de dar sua mão ao seu amigo de infância. Poderiam chamá-la de louca, mas os singelos gestos de cuidado que Patrício demostrou nesse pequeno espaço de tempo, revelou a face de um bom marido em potencial. Teresa passara dos vinte e dois anos, já merecia se amarrar a alguém, que seja então com alguém que ela conheça e está prestes a se tornar médico.

– Dê-me minha irmã aqui. – Catarina tomou Teresa do apoio de Patrício, surpreendendo a todos – Corteje-a descentemente, meu rapaz, só então peça a sua mão em casamento. Se me derem licença, preciso cuidar do ferimento dela.

A Donabella mais nova levou a ferida para casa, deixando os três senhores para trás. Antes que Teresa pudesse questionar qualquer coisa, a pequena soltou um "isso é papo de cavalheiros" e ambas sorriram. Elas sabiam que não era essa a verdadeira razão. Tereza só precisava de um curativo.

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