A Marca de Um Beijo

Conto II

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Não que eu seja ingrata. Claro que não! Quero dizer, as pessoas dizem que sou sortuda por ter uma família que me apoie, por sempre ser uma ótima aluna – logo concluí minha faculdade de medicina com louvor – ou por ser uma pessoa ao qual todos gostam. Dizem que tenho tudo que alguém poderia querer. Porém, sempre me faltou algo. De todos os amores que já tive, nenhum caiu-me bem. E é isso que eu mais desejo: um romance épico. Bom, não precisa ser épico, apenas vivível ao ponto de querer não viver mais para outra finalidade.

Em meados dos meus tempos juvenis eu achei ter conhecido alguém que me proporcionaria isso. Achei que finalmente eu estava completa. Ele era o combustível para fazer meu coração entrar em êxtase. Foi numa manhã de domingo que se despertou aquela paixão que, inicialmente miúda e quase desprezível, com o tempo tornou-se tão avassaladora ao ponto de consumir-me. Absurdamente encontrei-me afetada por seu sorriso e seu dom teatral, pois bem, realizava uma apresentação em praça pública naquele dia. Ele era "Jesus".

Inteirei-me do seu ciclo de amigos e tão logo percebi que não podia mais ficar um segundo longe dele. Para mim, tudo nele passou a ser mais atrativo. Entretanto, ele deixou mais que sentimentos em minha vida. Não era como se simplesmente não tivesse deixado nada quando se foi – porque ele se foi. Aquele garoto deixou marcas em mim.

A marca de um beijo.

Foi o único, porém a melhor coisa da minha vida. Não experimentei mais nenhum lábio depois daquele dia, mesmo passando-se seis anos desde a última vez que o tinha visto. Claramente supus que não haveria outro beijo melhor que o seu.

Até hoje guardo essas marcas. Há dias que sinto meus lábios formigarem e quando lhes toco sei a razão. Agora mesmo, enquanto espero uma ambulância qualquer trazer mais um paciente ferido ou jazido, essa sensação não me abandona. Queria eu saber o motivo.

- Para de esfregar os lábios e vamos logo! – Ordena meu colega de trabalho. – O paciente que acaba de chegar está gravemente ferido.

Empurro a maca rapidamente para a porta do pronto-socorro ao passo que a ambulância freia bruscamente em nossa frente. Os paramédicos escancaram as portas e eu sei que realmente foi algo grave.

- Rápido! Ele perdeu muito sangue! – Uma voz grita.

No interior do veículo, um deles aperta o abdômen do paciente possivelmente para estancar o sangue. Imediatamente tiramos o ferido de lado e transferimos para o outro leito. Então, eu entro em choque. É aquele mesmo cabelo. Aquele mesmo rosto angelical que por vezes acariciei. O mesmo homem pelo qual um dia apaixonei-me. O dono do meu primeiro e único beijo.

Ele está na minha frente prestes a morrer e limito-me a pensar em como ele ficou lindo com o passar dos anos. Perco todos os sentidos, embora seja ele o desacordado. Depois de tantas primaveras imaginando nosso reencontro, nunca me ocorreu que ele poderia estar ensanguentado.

- O que você está fazendo? – Meu colega de trabalho grita para mim – Suba agora mesmo nessa maca e pressione o ferimento.

Desperto instintivamente. Não posso perde-lo logo que apareceu. Como naqueles filmes sobre hospitais, eles carregam-me pelos corredores do prédio branco apressadamente em cima de um paciente. Sinto-me a própria Grey!

Depois de cada procedimento médico executado, ele reage bem e abre os olhos. Ainda são como eu lembro, divertidos e devastadores. Ousadamente, acaricio seus cabelos ainda molhados e sorrio afetuosamente.

- Quem é você? – Pergunta ele com sufrágio.

Solto uma risadinha por ouvir sua voz depois de longos anos e por saber que ele está bem. Desde quando o reconheci na ambulância, meu coração não se aliviava nem por um segundo. Só que agora, ele volta a palpitar, bem mais forte.

- Sou sua médica. – Respondo como uma mãe cuidando do filho.

- O que aconteceu comigo? Onde estou?

- Você sofreu um acidente de carro perto da feira de games. Trouxeram você para este hospital.

- Feira... De games?

O meu antigo amor se desesperou e quis levantar, mas logo recuou quando a dor aguda do abdômen abateu-lhe. Ajeitei seu travesseiro e o fiz se acomodar. Acalentei-o, embora a curiosidade para saber o motivo do seu alvoroço pela tal feira tenha me predominado.

Mais tarde, revelou que era designer de games. Lembro que esse era seu sonho de garoto. E mesmo que eu queira saber muito mais sobre o que aconteceu em sua vida após minha partida, meu coração dói por ele não se lembrar de mim. Sinto como se cada dia que pensei nele foi em vão. Tive esperanças à toa.

- Você não me reconhece?

Não suportei guardar esta pergunta para mim. Sufocava-me o ar e fazia eu querer correr dali. Seguro sua mão e não sei qual de nós dois está nervoso, pois sinto nossa conexão trêmula. O garoto, que agora já é um robusto e bonito homem, a minha frente devora minha alma com o olhar. Ele está com o seu sorrisinho de lado que costumava (e costuma) matar-me. Embora eu provavelmente demostre que necessito ouvir algo positivo em sua resposta, ele não exterioriza nada, o que me acarreta uma perda parcial de sanidade. Seria possível eu ainda estar apaixonada por ele?

- Você... – Segurou a palavra tempo o suficiente para fazer suspense, no seu velho hábito – Está mais linda do que eu imaginava, mas eu te reconheço sim.

Quero pular, abraça-lo ou fazer qualquer outra coisa eufórica. Nunca pensei que, mais uma vez, este homem pudesse fazer com que eu me sentisse assim. Meus lábios formigam novamente e não evito o sorriso.

- Achei que nunca mais ia te encontrar. Senti tantas saudades de você. – Ele dispara e de repente a extenuada sou eu.

- Você me procurou?

- Claro que sim! Você ainda me devia um beijo.

Recordo então do nosso penúltimo encontro. Prometi voltar para nossa terra natal com a condição que ele me receberia com um beijo. Eu nunca voltei. Não pude. No entanto, estamos aqui e nada mais me impedirá. Agarro a gola daquela camisola azulada de hospital, que a propósito caía-lhe bem, e beijei-o nervosamente. Se eu achava que nosso primeiro beijo teria sido a melhor coisa da minha vida, enganei-me. Isto sim o é, porquanto, trata-se de um beijo de desespero e necessidade. Algo pelo qual sonhei miseravelmente e aguardei melancolicamente.

Então percebo que, em nenhum momento fui apaixonada por ele. Eu, deleitadamente, sempre o amei. E o que me faltava, enfim, completei.

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