Capítulo 3 – As palavras que não são ditas

“Feche os olhos e ouça o mundo gritar e chorar ao seu redor.”

As luzes azuis e vermelhas piscam freneticamente. Ouço sons agudos e distantes ecoando ao meu redor. Será possível que tamanha cacofonia me impedirá de mergulhar mais fundo nessas memórias? Não, penso que não. Essas luzes me lembram…

O natal chegara depressa. Ao menos o primeiro de que Hélio se lembrava. Nenhum dos seus desejados presentes estava na sala quando despertou. A bicicleta vermelha, o tênis que pulava bem alto, a boneca Barbie, o boneco do Fofão e nem mesmo a marreta do Chapolin. Bastava um, mas nenhum estava lá. Ao invés desses havia um caminhão de madeira repleto de soldadinhos de plástico, um rádio à pilha e um revólver de espoleta. Fora o primeiro natal traumático daquela criança.

Hélio possuía uma simpatia muito grande pelas meninas da escola, alguns meninos também, mas eram em menor número — geralmente os feinhos que ninguém escolhia para brincar. — O porquê disso? Bem, certa vez um menino mordeu uma amiga dele. Ele insistiu para que Mateus — o mordedor — pedisse desculpas, e falhou. Maquiavelicamente Hélio chamou Mateus para brincar e o acertou com um pedaço de pau na boca, quebrando-lhe alguns dentes — por sorte, de leite — e disse que assim, o menino não morderia mais sua amiga. O incidente foi resolvido pelos adultos, e o trio se tornou amigo por um longo tempo.

Talvez não seja perceptível o quão grande era a simpatia e admiração que Hélio tinha pelo semblante feminino, partindo dessas memórias. Mas o que se pode ver, é que ele não permitia que a figura feminina fosse ferida, magoada, insultada ou de qualquer forma prejudicada. E quando isso ocorria, ele aplicava a punição que acreditava ser cabível. Não, Hélio não era um justiceiro ou um cavalheiro que amava as mulheres. Ele se empatizava de tal forma com as meninas, que tomava para si suas dores e movido pelo que havia dentro do seu invólucro biológico, revidava no lugar delas.

Hélio não se tornou um valentão. Suas ações passaram a ser mais calibradas com o tempo. Chegaremos lá. Hélinho como era chamado, cresceu rodeado de amizades femininas por conta de seu comportamento demasiadamente parecido com o delas. No entanto, um amigo conseguiu sua atenção por muito tempo, eram inseparáveis, com ele Hélio se sentia seguro e à vontade, eles possuíam ideias parecidas sobre robôs, alienígenas, desenhos animados e videogames.

            Mesmo ao lado do quase irmão, os olhares dele estavam em garotas diferentes em datas distintas.

Primeiro foi a Vanessa. Ela tinha um jeito mais firme, rígido, e sempre puxava assunto com ele. Graciele no ano seguinte. Era inteligente, graciosa e adorava brincar de amarelinha e pular cordas. Hélio foi convidado algumas vezes para almoçar na casa dela, aceitou em uma ou outra ocasião, a timidez era grande.

Depois vieram Carina e Jaqueline. Cada uma com seu jeito, e sempre encantavam o guri.

Talvez, dizendo assim, pode lhe parecer paixonites infantis. Não, era mais que isso. Era uma profunda admiração, tão intensa que mal cabia dentro do pequeno coração daquele pirralho. Sem saber lidar com esses sentimentos, ele colocava tudo para fora em forma de lágrimas durante a noite, ou a caminho de casa.

Vamos avançar para algo em torno dos dez anos…

Ele era estranho aos olhos dos demais garotos de sua idade. Enquanto eles queriam soltar pipa, jogar tacos, bolinha de gude e andar de bicicleta — não que ele não o fizesse também — ele preferia desenhar e brincar de casinha com sua irmã menor.

Na escola alguns garotos se mostravam verdadeiros valentões e acabavam intimidando Hélio. Esses garotos falavam de namorar, proferiam palavras estranhas aos ouvidos dele, a maioria se referiam ao corpo feminino. Hélio não entendia o significado e perguntava. Questionava-se o porquê o corpo feminino tem tantos nomes e dos homens apenas dois ou três. Mas essas coisas são passageiras e ele aprendeu a não ouvi-las mais.

Vozes… ouço-as. São tão confusas, não consigo entender o que dizem. Talvez porque a maioria dos humanos move os lábios, mas nada dizem. São quase tão confusas quanto os anos de primário do garoto Hélio.

Ele tinha uma amiga com quem voltava para casa todos os dias. Logo os meninos da escola começaram a perguntar se ele gostava dela. Ele dizia que sim, mas não era para namorar. Imediatamente os risos explodiam. Alguns garotos diziam que ele tinha que beijá-la logo e parar de frescura. Até que em um determinado dia prenderam os dois na sala e disseram que eles só sairiam quando se beijassem. Hélio sentiu-se como se sua alma tivesse sido invadida, violada e fragmentada. Estavam forçando-o a realizar algo que ele não queria e que jamais conjecturou fazer. O selinho aconteceu. A garota parecia não se importar. Naquele dia, depois da aula, Hélio chorou.

Chorou muito. Sua mãe perguntava qual era o problema e ele dizia que a perna estava doendo porque um garoto chutou sem querer na aula de educação física. A mãe dele conversou com a professora e ele foi afastado das atividades físicas. Era só mais uma coisa de que ele gostava e ficaria sem.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo