Ava

Ava Narrando

Meu nome é Ava. Tenho dezenove anos. E há tempos deixei de acreditar que “família” significa amor.

Depois que meus pais morreram, quando eu tinha apenas nove anos, virei um peso. Uma obrigação. Um problema a ser empurrado de um parente para outro, como se eu fosse uma caixa velha que ninguém quer, mas também ninguém tem coragem de jogar fora.

Acabei na casa da tia Mary quando tinha uns doze anos.

Depois de ser rejeitada por todos os outros tios, ela foi a última a “aceitar” me acolher. Digo “aceitar” entre aspas porque, desde o primeiro dia, ela fez questão de deixar claro que eu não era bem-vinda.

— Você vai ficar aqui, mas nada de se fazer de coitadinha. Aqui não tem moleza, entendeu?

Entendi. Entendi cedo demais.

Na casa dela, eu nunca ganhei nada novo.

Roupa? Só as sobras das minhas primas.

Sapato? Sempre os mais velhos, furados, deformados.

Brinquedo? Esquece. Quando eu era criança e queria brincar, o que me davam era uma vassoura e um pano de chão.

— Vai passar o tempo limpando o banheiro, que é mais útil — ela dizia.

Comida? Eu comia por último.

Depois que todos se serviam.

E se sobrasse alguma coisa.

Muitas vezes, o que me restava era um prato com arroz e um resto de feijão aguado.

Quando tinha carne, era só pro pessoal “de casa”. Eu não contava.

Uma vez me atrevi a pegar um pedaço de frango da panela antes que todos terminassem. Nunca vou esquecer da surra que levei por isso. Nem da frase que tia Mary gritou:

— Se acha que vai comer como todo mundo, vai trabalhar igual empregada.

E foi isso que eu fui. A empregada da família.

Acordava antes de todos, varria o quintal, lavava o banheiro, preparava o café da manhã das meninas.

Ia pra escola com o estômago vazio, com uniforme emprestado, e rezando pra não chover porque meu tênis furado deixava os pés encharcados.

Minha sorte era que, mesmo com tudo isso, eu sempre tive facilidade de fazer amizades.

E foram as minhas amigas da escola que me salvaram.

Elas dividiam os lanches comigo.

Algumas escondiam bolachas e sucos nas mochilas só pra me dar no recreio.

Teve uma vez que a April me deu um pedaço do bolo de aniversário dela embrulhado num guardanapo e disse:

— É pra você sentir que alguém lembrou de você hoje.

Eu chorei quando cheguei em casa. Comi aquele pedaço de bolo devagar, como se fosse o melhor banquete do mundo. E foi.

Mas os piores dias da minha vida não eram durante as aulas.

Eram os finais de semana e as férias.

Enquanto minhas colegas saíam, viajavam, eu estava trancada em casa.

Literalmente.

Tia Mary não me deixava sair.

— Nada de ficar rodando na rua, ninguém precisa ver essa tua cara.

Quando a família viajava, eu até ia junto, mas nunca como convidada.

Ficava no quarto.

Não podia usar a piscina.

Não podia tirar foto.

Não podia aparecer nas rodas de conversa.

Uma vez ouvi minha tia dizendo pra uma vizinha que tinha vergonha de mim.

— Ela não parece da nossa família. Nem bonita é. Parece filha de outra pessoa.

Aquilo me destruiu.

Mas nunca, nem por um segundo, eu deixei de sonhar.

Eu sonhava acordada, deitada naquele colchão velho, olhando pro teto mofado do quartinho dos fundos.

Sonhava que um dia eu ia crescer, arrumar um emprego, juntar dinheiro, alugar um cantinho só meu.

Sonhava em comprar minhas próprias roupas. Escolher meu próprio shampoo. Comer o que eu quisesse, nem que fosse um sanduíche simples, mas meu.

Sonhava em nunca mais ouvir a voz da tia Mary.

Nunca mais aguentar o desprezo das minhas primas.

Nunca mais engolir a humilhação disfarçada de “lar temporário”.

Eu queria minha liberdade.

Queria ser dona da minha vida.

E isso era o que me mantinha viva.

Essa esperança silenciosa, quase impossível, mas que nunca me abandonou.

Não importava quantas vezes eu fosse chamada de inútil, ou quanto eu fosse tratada como lixo.

Dentro de mim existia uma chama.

Pequena, fraca, mas persistente.

A chama de quem ainda acredita que merece mais.

Hoje, aos dezenove anos, essa chama ainda existe.

Mesmo depois de tudo.

Eu só queria ter crescido com amor. Só isso. Se meus pais tivessem sobrevivido, minha vida teria sido outra.

Talvez eu tivesse ido ao baile de formatura. E vivido como um ser humano.

Quando completei dezoito anos, meu primeiro passo foi buscar independência. Consegui um trabalho como garçonete numa lanchonete no centro, e, por sorte, o dono do lugar tinha um prédio com vários kitnets. Conversei com ele, expliquei minha situação, e ele me alugou um dos menores por um valor que cabia no meu bolso.

Com o meu primeiro salário, comprei uma cama de solteiro, uma cômoda simples e uma TV usada que encontrei num brechó. Levei tudo de ônibus, sozinha. Montei meu cantinho com esforço e orgulho. É pequeno, tem vazamento na pia e as paredes estavam descascando, mas é meu. Pela primeira vez, me senti livre.

Vivo com pouco, mas para mim é o suficiente. Não tem luxo, mas tem paz. Estou longe da casa da tia Mary, e só isso já vale tudo.

Ultimamente, ela anda me odiando ainda mais. Depois que descobri o que ela fez vendeu tudo que era dos meus pais, desde a loja até o carro, fiquei revoltada. Gastou cada centavo com as filhas dela e com a própria casa. Quando a confrontei, ela teve a cara de pau de dizer que era “por direito”. Mas isso não se faz. Eu jurei: não vou deixar barato.

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