A manhã começou com Flávia espiando-me pela janela do quarto, como se tentasse decifrar meus movimentos. Enquanto passava pelo corredor, notei a porta do quarto dela entreaberta, assim como as das gêmeas. A babá já estava de pé, vestida e pronta para acordá-las. Desci para o café da manhã determinado a esclarecer certas regras.
— Senhorita Carter — chamei, interceptando-a na sala de jantar — preciso conversar com você. Ela seguiu-me até o escritório com passos firmes, mas os olhos denunciavam uma inquietação contida. Sentou-se à frente da minha mesa, postura ereta, enquanto eu preparava as palavras. — Babás que desenham unicórnios em roupas manchadas não duram uma semana aqui — afirmei, cortando o silêncio. — Disciplina é essencial para minhas sobrinhas. Bagunça e sujeira não são arte, entendido? Antes que ela respondesse, a porta abriu-se com um estrondo. Bia entrava arrastando Mel pela mão, ambas de pijamas e cabelos despenteados. — Tio Hawk, você não vai mandar a Flávia embora, né? — a voz da mais velha tremia de drama, enquanto Mel abraçava o hamster contra o peito. — Se ela for, fugimos pro Central Park! A cena quase arrancou um suspiro. Ameaças de fuga com roedores já eram rotina, mas a determinação nas feições delas me obrigou a moderar o tom. — Ninguém está sendo despedido — expliquei, ajoelhando para nivelar o olhar com as duas. — Apenas ajustando detalhes. Após acalmá-las com promessas de waffles extras, voltei a atenção para Flávia, que recuou quando me aproximei. — Está aqui porque conquistou as duas em tempo recorde — reconheci, cruzando os braços. — Mas não se engane: quero que se tornem damas à altura do nosso sobrenome. E isso exige estrutura, não... unicórnios coloridos. — Compreendo, senhor — murmurou ela, voz suave, mas o queixo erguido desafiava a submissão, e mexia com meus instintos predadores. No caminho para o colégio, sentei ao volante enquanto Flávia ocupava o banco de trás, a pedido de Mel. — Faz tranças no meu cabelo? Igual às suas! — a caçula insistiu, puxando as madeiras loiras da babá. Flávia riu, mãos ágeis entrelaçando os fios rebeldes. — Vou fazer duas, bem apertadas, com fios de seda colorida que eu tenho aqui na mochila. Segura assim... Bia observava com inveja discreta até ceder: — Quero uma também! — Pronto, princesa — anunciou Flávia, exibindo sua obra de arte, para Mel que sorria enquanto se observava no espelho. — Você é a melhor babá do universo! — Mel exclamou, abraçando-a pelo pescoço. Olhei pelo retrovisor. A cena era quase... adorável. Quase. Mas disciplinei o sorriso antes que notassem. Ainda não era hora de fraquejar. Porém, confesso que a doçura daquela cena era contagiosa. Flávia cantarolava em português enquanto entrelaçava as tranças das gêmeas, os dedos ágeis dançando entre os cabelos loiros. Seus sorrisos eram tão leves, tão sinceros, que até o ar parecia mais leve. Mel e Bia riam com uma liberdade que jamais haviam mostrado a outras babás. Observava pelo retrovisor, tentando disfarçar a inquietação. Cada riso delas era um prego no caixão da minha resistência. “Ela tem um dom”, pensei, os nós no estômago apertando. Mas não podia ceder. “Disciplina e estrutura, é tudo o que importa.” Repeti mentalmente, os punhos cerrados contra o volante enquanto ainda observava Flávia rir com as gêmeas, com uma doçura que me fazia engolir seco. “Preciso arranjar outra babá. Logo.” Mas até minha própria mente traía a ordem, invadida pelo calor que aquela mulher irradiava sem esforço. “Disciplina e estrutura, droga!” repeti a mim mesmo revoltado, afinal, aquela mulher... era um furacão de cores num mundo que eu pintara em preto e branco. “E com aquela doçura, só Deus sabe o que eu faria se a tivesse na minha cama.” O relatório do investigador pesava na gaveta do escritório como uma tentação. Faltavam páginas — páginas que detalhariam cada segredo, cada medo, cada fenda na armadura de gelo que ela vestia. “Quero despedaçar esse gelo. Quero ouvi-la gemer meu nome até esquecer o seu” “Mas era impossível, não podia ser... Não enquanto ela estivesse encarregada das meninas. Ainda assim…” Meus dedos tamborilaram no couro do volante, acelerando conforme o desejo. Ela precisava sair. Tinha de contratar alguém sem aquele cheiro de jasmim, sem aquele jeito de transformar tranças em rebelião. Alguém que não me fizesse imaginar como seria morder seu lábio inferior enquanto a prendia contra a parede do escritório. “Conquiste-a. Leia o relatório. Descubra tudo.” A minha mente sussurrou em meu ouvido, perversa. “Depois, demita-a.” Sim. Porque depois que eu a tivesse — depois que descobrisse cada pedaço de sua alma —, ela não seria mais útil. Apenas... perigosa. Mas quando Mel gritou "Flávia, você é mágica!", algo em meu peito vacilou. Malditas fossem aquelas tranças. Maldito fosse o modo como ela fazia até o Central Park parecer pequeno diante de seu sorriso. “Não ceda.” Era uma ordem. Uma prece. Um mantra. Ao estacionar em frente ao colégio, as gêmeas saltaram do carro como borboletas, deixando para trás um rastro de alegria. Flávia as seguiu, despretensiosa, vestindo um vestido desbotado e uma cardigã que já perdera o formato. As mães no portão viraram-se, sussurros cortantes como facas. "Quem é aquela?" "Parece uma mendiga..." Os olhares delas perfuravam, mas Flávia caminhava de cabeça erguida, como se carregasse uma coroa invisível. — Senhorita Carter — chamei, segurando-a pelo cotovelo antes que entrasse. — Um momento. Ela fitou-me, a sobrancelha arqueada em desafio. — Percebeu os olhares? — perguntei, indicando o grupo de mães com um gesto discreto. Flávia seguiu minha indicação, os lábios se apertando em uma linha fina. — Claro que percebi — respondeu, voz firme como aço recoberto por veludo. — Mas julgar alguém pelas roupas é como avaliar um livro pela capa rasgada. Sinto pena de quem não enxerga além. A resposta dela me surpreendeu. Não pela rebeldia, mas pela certeza. Quase admirei aquela teimosia. “Quase.” — Concordo — menti, cruzando os braços. — Mas as aparências importam aqui. As meninas precisam de exemplos que... bem, que se encaixem. Ela riu, um som curto e seco. — "Encaixem"? Como manequins numa vitrine? — Como pessoas que entendem o peso do nosso nome — retruquei, aproximando-me o suficiente para sentir o perfume dela: Jasmim e algo selvagem, como mato após a chuva. — E, falando nisso, talvez seja hora de atualizar seu guarda-roupa. Seus olhos estreitaram. — Atualizar? — repetiu, mãos nos quadris. — Sim. Algo mais... adequado. Para o bem delas. Flávia estudou meu rosto, como se buscasse uma armadilha escondida nas palavras. Por um instante, vi-a hesitar. Talvez calculando o quanto precisava desse emprego. Talvez imaginando se eu estava brincando. — E se eu me recusar? — provocou, inclinando-se para frente, desafiadora. Segurei o impulso de tocar seu queixo, de provar até onde ia aquela coragem. — Então — sussurrei, baixando a voz até que só ela pudesse ouvir —, talvez eu precise convencê-la pessoalmente. Ela corou, mas não recuou. Um silêncio pesado pairou entre nós, carregado de tudo o que não era dito. Até que Bia gritou do portão: — Flávia, vem ver o desenho que fizemos! A babá deu um passo atrás, os olhos ainda presos aos meus. — Pense na oferta, senhorita Carter — concluí, virando-me para esconder o sorriso. Enquanto ela caminhava em direção às gêmeas, sabia que o jogo mudara. Não se tratava mais de roupas ou disciplina. Tratava-se de quanta areia eu conseguiria colocar no vidro antes que o desejo transbordasse.*Flávia Narrando* No dia seguinte, após as atividades do colégio, levei as gêmeas para o jardim para elas ter uma atividade recreativa e mais saudável, ao entardecer entramos novamente era lindo ver o rosto delas corado de tanto brincar. Ao entrar no meu quarto, porém encontrei uma pilha de caixas de seda. Dentro, vestidos que pareciam feitos de sonhos — rendas francesas, sedas italianas, tudo em tons de azul que lembravam meus olhos. — Presente do senhor Hawthorne — Rosália apareceu na porta, evitando meu olhar. — Ele disse que… funcionários da família Hawthorne devem refletir seu padrão.Agarrei o tecido mais próximo, sentindo a maciez como uma afronta. As caixas de seda pareciam rir de mim, seus laços perfeitos eram uma afronta ao meu jeans rasgado. Abri a primeira: um vestido azul-marinho que custaria mais que meu semestre na faculdade. No fundo, sabia o que aquilo era: uma armadilha dourada. Rafael queria me transformar em uma de suas estátuas decorativas, controlável e bon
*Rafael Narrando* O sol ainda não havia rompido completamente o horizonte de Manhattan quando acordei, mas os primeiros raios dourados já riscavam os vidros fumê do arranha-céu vizinho. Sentei na cama, observando através da janela panorâmica como Nova York sussurrava seu mantra eterno: "Você não pode parar". Eu, Rafael Hawthorne, CEO da Hawthorne Enterprises, entendia aquele idioma melhor do que ninguém. Minha rotina era um ritual fúnebre desde que Miguel morrera. Três passos até o espresso machine italiano, dois comprimidos para a enxaqueca matinal, um olhar rápido para a foto emoldurada na estante: meu irmão e eu no topo do Rockefeller Center, sorrindo como dois piratas que haviam conquistado o mundo. Agora, só restavam as gêmeas. Mel e Bia. Seis anos de risos que ecoavam estranhos naquele apartamento de decoração minimalista, onde até os brinquedos pareciam organizados por um curador de museu. Vesti o terno sob medida como uma armadura. No espelho do banheiro, um estranho m
*Flávia narrado*Acordei com o susto do despertador ignorado. O coração disparou quando olhei para o relógio: 8:47 AM. “Merda, merda, merda”.Saltei da cama, os pés descalços encontrando o chão gelado do apartamento minúsculo que dividia com Susana. Enquanto vestia o uniforme verde da floricultura — ainda com cheiro de lírios secos —, uma memória invadiu minha mente sem pedir licença: Papai dançando com mamãe na cozinha de nossa casa em Austin, o rádio tocando "Stand by Me" enquanto Jony batucava nas panelas. Meu irmão mais velho sorria, erguendo a colher de pau como uma varinha. "Flavinha, vem cá ser nossa backup dancer!" A garganta apertou. Jony teria rido de me ver agora, correndo em Nova York como uma barata assustada. — Flávia! A Giulia vai acabar cumprindo o que disse, e vai te demitir por causa dos seus atrasos! — gritou Susana do banheiro, cuspindo pasta de dente. — Ela nunca mais falou isso… foi só aquela vez — respondi, amarrando o cabelo às pressas. Enquanto descia a
* Rafael narrando* A luz do meio-dia invadia meu escritório, mas eu só enxergava um par de olhos azuis pairando sobre Manhattan como um fantasma. Quatro dias. Quatro dias desde que aquela mulher da cafeteria me deixara paralisado com um simples olhar — e eu, Rafael Hawthorne, que nunca hesitava em tomar o que desejava, havia engolido seco como um adolescente diante de sua primeira paixonite. A cidade pulsava sob meus pés, mas meu cérebro estava preso em loop: olhos azuis, rosas brancas, perfume de lavanda. Quatro dias. Quatro dias desde que aquela mulher desaparecera como fumaça após me deixar com um buquê caótico e uma frustração que me corroía as entranhas. Irma invadiu meu escritório como um furacão de eficiência. — As entrevistas para a babá começam em… — Cancele todas — cortei, sem tirar os olhos do relatório falso que fingia ler. — Mas as gêmeas… — Cancele! — Usei o tom que fazia os estagiários chorarem. — E chame o detetive Collins. Preciso que ele encontre alguém.
*Flávia narrando* O despertador tocou às 5:32 da manhã — trinta minutos depois do horário que programou. Corri pelo apartamento minúsculo como uma barata envenenada, vestindo meias desiguais enquanto Susana roncava no sofá. — Vai dar certo —menti para o espelho embaçado do banheiro, onde escrevi "VC CONSEGUE" em batom vermelho na noite anterior. O metrô atrasou. A chuva transformou meu guarda-chuva de 5 dólares num esqueleto de nylon. Quando cheguei ao portão da mansão de Rafael, o relógio da torre marcava 8:17. “Sete minutos atrasada.” Ele esperava na entrada, trajando um terno que custava mais que meu ano de aluguel. Seus olhos escanearam minha roupa encharcada — blusa de renda barata colada aos meios seios, sapato com solado descolado — e suas sobrancelhas franziram-se em desaprovação. — Senhorita Carter — começou, voz mais fria que a chuva de abril — seu contrato menciona pontualidade como... — Eu sei. Desculpe. O metrô... — Desculpas são como rosas murchas — int