Capítulo 4: O Primeiro Dia  

*Flávia narrando*

O despertador tocou às 5:32 da manhã — trinta minutos depois do horário que programei. Corri pelo apartamento minúsculo como uma barata envenenada, vestindo meias desiguais enquanto Susana roncava no sofá.

— Vai dar certo —menti para o espelho embaçado do banheiro, onde escrevi "VC CONSEGUE" em batom vermelho na noite anterior.

O metrô atrasou. A chuva transformou meu guarda-chuva de 5 dólares num esqueleto de nylon. Quando cheguei ao portão da mansão de Rafael, o relógio da torre marcava 8:17. “Sete minutos atrasada.”

Ele esperava na entrada, trajando um terno que custava mais que meu ano de aluguel. Seus olhos escanearam minha roupa encharcada — blusa de renda barata colada aos meios seios, sapato com solado descolado — e suas sobrancelhas franziram-se em desaprovação.

— Senhorita Carter — começou, voz mais fria que a chuva de abril — seu contrato menciona pontualidade como...

— Eu sei. Desculpe. O metrô...

— Desculpas são como rosas murchas — interrompeu, abrindo a porta com um gesto brusco. — inúteis e descartáveis.

Segui-o pelo corredor de mármore, minhas meias deixando rastros úmidos. No escritório, jogou um documento diante de mim.

— Cláusula 7.2: Disponibilidade integral. Você dormirá aqui.

— O quê? — engasguei, pingando água no contrato.

Ele inclinou-se sobre a mesa, o cheiro de seu perfume amadeirado invadindo meu espaço.

— Sua eficiência é inversamente proporcional à distância. Quarto no terceiro andar. Decida agora.

Assinei com letra trêmula, a cicatriz no pulso latejando. “Jonny teria dito pra fugir”, pensei.

Rosália me levou ao quarto no terceiro andar. Ao chegar no quarto, confesso que fiquei de boca aberta, era um espaço tão grande que ecoava. A cama king-size parecia ironizar minha mochila, onde cabiam dois jeans, três blusas e um roupão que Susana chamava de "estilo mendigo".

O cômodo era maior que meu apartamento, mas gelado como cela de prisão. Rosália, deixando-me com um manual de regras mais espesso que a Bíblia.

Estava arrumando as duas mudas de roupa na cômoda vazia, quando ouvi passos no corredor.

— Almoço das gêmeas às 11:30h — anunciou Rafael pela porta entreaberta. Seus olhos pousaram na foto de Jonny na minha mesinha de cabeceira. Seu rosto franziu com uma expressão indecifrável.

Antes que pudesse responder, ele desapareceu, me deixando no vácuo. Alguns minutos depois, porém desci as escadas de mármore, sentindo cada passo ecoar como um erro.

O primeira dia na mansão dos Hawthorne foi como entrar em um filme de época — se os personagens fossem uma babá desajeitada e um CEO que parecia ter saído de um catálogo de ternos caros, o almoço fui um silêncio sepulcral.

Muitas horas depois, no jantar, porém Bia decidiu sentar-se em meu colo derrubando suco de uva no meu vestido — o único decente que tinha. O líquido roxo escorreu, manchando o tecido barato, enquanto Rafael ergueu uma sobrancelha do outro lado da mesa, como se eu tivesse planejado aquilo para irritá-lo.

— Olha, Bia! — fingi entusiasmo, pegando um canetinha que sempre carregava no bolso. "Um acidente mágico."

Em cinco minutos, a mancha virou um unicórnio desengonçado, com chifres dourados feitos de clips que Bia arrancou do cabelo. Melissa, até então quieta, aproximou-se como um passarinho curioso.

— Ele tem nome? — sussurrou, tocando o desenho.

— Sir Mancha — respondi, movendo o tecido como se estivesse fazendo voar. Seu riso foi tão leve que quase não ouvi.

Rafael observou tudo em silêncio, os dedos tamborilando no talher de prata. Seu olhar pesava mais que o julgamento de um júri.

Horas depois, enquanto botava Bia e Mel para dormir, Mel puxou-me para o seu lado do quarto, onde as paredes eram um caos organizado de dragões rabiscados em folhas de papel.

— Esse é o Senhor Escamas — apontou para um dragão com asas de coração. — Ele protege o tio Rafael dos monstros.

— Monstros? — perguntei, sentando no chão ao lado dela.

— Dos que vivem na cabeça dele — respondeu, séria como uma psicóloga de seis anos. — Ele faz cara de bravo, mas é só medo.

Quase engasguei com a sabedoria daquela criança. Quando a deitei, ela segurou meu pingente de dragão.

— Ele é igual ao meu — disse, dormindo antes de explicar.

Já no meu quarto, enquanto arrumava as meias furadas na gaveta, senti um frio na nuca. Virei-me rápido olhando para a varanda do terceiro andar,— nada. Mas pela fresta das cortinas de cetim do quarto de Rafael, um vulto moveu-se. “Ele estaria me observando?” Ao imaginar isso, senti um terrível calafrio.

Às 22h47 fui novamente até o quarto das gêmeas que dormiam abraçadas como “filhotes de dragões” após três horas de treinamento. Desci à cozinha em busca de chá, e quase derrubei a xícara ao encontrar Rafael na penumbra, bebendo uísque com um relatório aberto.

— Relatório de... — comecei, curiosa.

— Não é da sua conta — cortou, mas não antes que eu visse no cabeçalho. “Investigação Completa.”

— Seu quarto tem vista para o jardim de inverno — disse de repente, sem olhar para mim. "Mel gosta de desenhar lá às 8 da manhã, nos finais de semana." E sumiu novamente como sempre fazia.

No corredor escuro, uma porta entreaberta chamou a minha atenção — o único cômodo trancado da mansão. Ao passar, um arrepio percorreu minha espinha: dentro, prateleiras com brinquedos infantis empoeirados e uma foto de duas crianças, dois meninos e um deles era muito parecido com as gêmeas e outro, eu tinha certeza que era Rafael, porém ao ouvir passos fugi rapidamente dali.

Fui dormir, mas infelizmente tive uma madrugada terrível, e quando finalmente peguei no sono horas depois acordei aos gritos. Nos meus sonhos, as mãos de "dele" se transformaram nas do senhor Hawthorne, frias e implacáveis. Agarrei o pingente até a pele ficar marcada.

Na janela, a cidade luzia como um convite à fuga. Mas lá embaixo, no jardim, vi algo que me fez parar: Hawthorne de paletó sobre os ombros, assistindo ao nascer do sol com uma expressão que jamais mostraria à luz do dia — “pura, crua, e totalmente humana.”

Quando nossos olhares se encontraram através do vidro, ele virou-se bruscamente. Mas não antes que eu visse: na mão direita, segurava o mesmo relatório que havia me deixado curiosa. E na esquerda, uma rosa branca murcha.

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