Capítulo 2: A Vida de Flávia

*Flávia narrado*

Acordei com o susto do despertador ignorado. O coração disparou quando olhei para o relógio: 8:47 AM. “Merda, merda, merda”.

Saltei da cama, os pés descalços encontrando o chão gelado do apartamento minúsculo que dividia com Solange. Enquanto vestia o uniforme verde da floricultura — ainda com cheiro de lírios secos —, uma memória invadiu minha mente sem pedir licença: Papai dançando com mamãe na cozinha de nossa casa em Austin, o rádio tocando "Stand by Me" enquanto Jonny batucava nas panelas. Meu irmão mais velho sorria, erguendo a colher de pau como uma varinha. "Flavinha, vem cá ser nossa backup dancer!"

A garganta apertou. Jonny teria rido de me ver agora, correndo em Nova York como uma barata assustada.

— Flávia! A Giulia vai acabar cumprindo o que disse, e vai te demitir por causa dos seus atrasos! — gritou Solange do banheiro, cuspindo pasta de dente.

— Ela nunca mais falou isso… foi só aquela vez — respondi, amarrando o cabelo às pressas.

Enquanto descia as escadas do prédio fedendo a tinta fresca, outra lembrança me golpeou: “As mãos dele agarrando meu pulso, o cheiro de uísque barato, o som da minha pulseira quebrando no asfalto.” Instintivamente, toquei a cicatriz sob a manga. “Não hoje”, ordenei a mim mesma, acelerando os passos.

Na Giulia's Garden, a floricultura apertada entre um café hipster e a imponente Hawthorne Enterprises, o ar estava carregado do perfume pesado de gardênias. Dona Giulia, com seu coque grisalho e olhos que enxergavam segredos, batucava no balcão.

— Atrasada. De novo — disse sem levantar os olhos do buquê que montava.

— Desculpe, Dona Giulia. O metrô…

— Poupe-me, menina. Quero que faça a entrega das rosas brancas na cafeteria ao lado. O cliente é VIP — entregou-me a cesta com um bilhete: "Para Rafael H. – Gratidão. Ass: Equipe Tech Global".

— VIP? — perguntei, ajustando o avental.

— Homem rico. CEO daquele prédio de vidro — apontou com a tesoura de poda para a torre espelhada através da vitrine. — E não vacile. Ele é… exigente.

Antes que eu pudesse responder, o telefone tocou. Giulia atendeu com um:

— Sim, senhor Hawthorne — que me fez estremecer. “Hawthorne.” O sobrenome ecoou em algum lugar escuro da minha mente, mas não tive tempo de pescar a memória.

Enquanto arrumava as rosas, Jony sussurrou em meu ouvido de fantasma: "Cuidado com os espinhos, Flavinha.".Sorri amarga. Meu irmão sempre dizia que rosas eram como pessoas bonitas — lindas até te furar. Se ele soubesse o quanto eu concordava agora…

— Flávia! Cafeteria, agora! — rugiu Giulia, apontando para a porta.

Saí correndo, o coração batendo no ritmo das dúvidas. “Por que um CEO mandaria rosas para si mesmo?” E por que meu pescoço formigava ao pensar naquele nome… “Hawthorne”?

Enquanto atravessava a rua, a cicatriz no pulso queimou. “Não é hoje que o passado me alcança”, pensei, segurando as rosas como um escudo.

Mas Nova York sempre foi ótima em desmentir promessas. A caminho da cafeteria, segurando as rosas brancas com dedos trêmulos, uma memória invadiu minha mente como um filme antigo:

Mamãe, com suas mãos calejadas de plantar hortênsias, me ensinava a amarrar fitas em buquês na varanda de casa. "A beleza está nos detalhes, Flavinha", dizia, ajustando uma folha de samambaia entre as rosas. — enquanto Jony e papai corriam atrás dos bezerros, rindo como se o mundo fosse infinito. Mas o mundo não era infinito. E algumas histórias eram feitas de espinhos.

Quando entrei na cafeteria, o cheiro de café fresco misturou-se ao aroma das rosas. Avancei sem olhar para os lados — e colidi com um homem de terno impecável. As flores voaram, pétalas brancas espalhando-se pelo chão de mármore.

— Desculpe! — a voz dele era grave, cortando o ar como uma faca quente.

Ao me agachar para recolher as rosas, nossos dedos se tocaram. Olhei para cima e engoli seco: olhos cor de âmbar, cabelo escuro perfeitamente despenteado, uma cicatriz discreta no queixo. Ele me encarava como se eu fosse um enigma a ser decifrado.

— Você trabalha na Giulia's Garden? — perguntou, erguendo uma rosa caída. Seu sotaque era Nova Iorquino puro, mas algo ele me fez pensar em caubois e céus abertos.

— S-sim. São para o Sr. Hawthorne — gaguejei, sentindo o pulso latejar sob a cicatriz.

Ele congelou por um milésimo de segundo. — Sou eu.

“Merda, merda, merda!”

Tentei sorrir, mas os lábios tremiam. Rafael Hawthorne — o CEO cujo nome estava em todos os prédios de vidro do distrito — segurava minhas rosas como cuidado. Seu olhar, porém, pesou sobre mim, escaneando cada detalhe.

— Obrigada — forcei as palavras, arrancando as flores de suas mãos.

Corri para o balcão da cafeteria antes que ele pudesse falar outra palavra. Enquanto o barista assinava o recibo, senti os olhos de Rafael queimando minhas costas. “Exatamente como “ele” me olhava naquela noite”, pensei, os dedos contraindo-se involuntariamente. Depois que peguei o recibo sai praticamente correndo dali, sem olhar para trás.

As minhas pernas ficaram bambas com o impacto que o senhor Hawthorne me deixou, especialmente seu olhar e sua voz: "Você trabalha na Giulia's Garden?" era suave, mas havia uma autoridade nela que fez meu estômago embrulhar.

Enquanto ajuntávamos as rosas, sua mão grande e quente roçou a minha — mas, a cicatriz no meu pulso latejou como um alarme. E quando descobri quem ele era, quase derrubei as flores de novo. Voltei para as entregas, porém ainda estava com as lembranças dele bem viva em minha mente e não entendi porque.

Duas horas depois, ao voltar para a floricultura, veio a bomba:

Dona Giulia me encarou com um olhar pesado e triste. — Não é pessoal, Flávia. Mas com a Hawthorne Enterprises comprando o quarteirão… — fez um gesto vago com a mão enluvada de terra.

— Entendo — menti, os dedos apertando o avental. “Jonny diria para eu lutar”, pensei, mas a voz do meu irmão estava enterrada em Austin, junto com meu velho eu.

A última imagem que guardei de Jonny, foi ele suando em sua camisa de flanela, me empurrando para dentro do ônibus interestadual na estação de Austin. "Lembra do código", sussurrou, "Código: dragão azul", Jonny brincou suavemente, enfiando um colar com pingente de dragão em minhas mãos trêmulas. "E se ele ousar chegar perto de você de novo, ligue. Pra mim, pros pais, pro diabo se precisar. Não se cale.” O motorista buzinou. Jonny me abraçou apertado e deu um beijo no topo da cabeça desejando sorte.

Na estação enquanto esperava o ônibus, encostei o pingente no coração, como fazia todas as manhãs desde Austin, toquei levemente no metal frio e pensei: “Só por precaução.”

No apartamento, durante o almoço:

Solange espetou um pedaço de frango com furor. — Mas que droga como ela fez isso contigo demissão assim do nada sem aviso prévio?

— Me disse que a floricultura está mal.

— Pois eu duvido! — falou Solange ainda aborrecida.

— Eu também, mas infelizmente tive que engolir.

— respondi de forma desolada.

Naquela noite porém…

Ainda desolada, procurava desesperada por uma nova vaga de emprego quando Solange que remexia seu celular no sofá descascado, jogou a notícia como quem j**a um osso a um cachorro:

— Babá, Flávia. Tem um anúncio aqui das gêmeas do CEO gostosão daquele prédio espelhado. Você ia ser ótima.

— Eu não sei cuidar de crianças — protestei, fingindo não ver o link que ela me enviara.

— Mentira. Você criou metade das crianças da nossa rua em Austin, lembra? — Ela apontou para a foto de Jonny na estante, onde eu aparecia ao fundo carregando a pequena Lily no colo, a filha da nossa vizinha.

— Vai lá — Solange cutucou minhas costelas. — Essas crianças ricas precisam de alguém que não as transforme em robôs de etiqueta.

Enquanto preenchia o formulário online para a vaga de babá quando li, o anúncio de babá que dizia: "Necessário experiência com crianças criativas. Tolerância a… imprevisibilidade." Sorri ao imaginar que tipo de criatividade eles se refiriam, se fosse o que eu estava pensando, acreditava que iria adorar as crianças.

Quatro dias depois um e-mail chegou pra mim, e às 09h47, eu já estava na frente do prédio da Hawthorne

Olhei para o céu de Nova York — cinza como sempre. “Designer tecnológico”, lembrei, tocando o pingente que Jony me dera.

— Senhorita Carter? — o segurança fitou meu vestido simples. — A entrevista é no 72º andar.

Enquanto o elevador subia, uma voz sussurrou em meu ouvido — não a de Jony, mas “a dele”, áspera e embriagada: "Você nunca escapará de mim Flávia."

Apertei o pingente até doer. Hoje não. Hoje, eu lutaria.

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