*Rafael Narrando*
O sol ainda não havia rompido completamente o horizonte de Manhattan quando acordei, mas os primeiros raios dourados já riscavam os vidros fumê do arranha-céu vizinho. Sentei na cama, observando através da janela panorâmica como Nova York sussurrava seu mantra eterno: "Você não pode parar". Eu, Rafael Hawthorne, CEO da Hawthorne Enterprises, entendia aquele idioma melhor do que ninguém. Minha rotina era um ritual fúnebre desde que Miguel morrera. Três passos até o espresso machine italiano, dois comprimidos para a enxaqueca matinal, um olhar rápido para a foto emoldurada na estante: meu irmão e eu no topo do Rockefeller Center, sorrindo como dois piratas que haviam conquistado o mundo. Agora, só restavam as gêmeas. Mel e Bia. Seis anos de risos que ecoavam estranhos naquele apartamento de decoração minimalista, onde até os brinquedos pareciam organizados por um curador de museu. Vesti o terno sob medida como uma armadura. No espelho do banheiro, um estranho me encarava: olheiras profundas, mandíbula cerrada, o mesmo relógio Patek Philippe que Miguel usava no dia do acidente. "Nós somos invencíveis, Rafa", ele costumava dizer entre goles de uísque em bares clandestinos do Lower East Side. Agora, eu bebia água mineral em reuniões de conselho. Desci as escadas em espiral para o living principal, onde Rosália, minha governanta há uma década, ajustava os talheres de prata na mesa de mármore. Seus olhos evitaram os meus - sinal claro de tempestade. — Bom dia, Senhor Hawthorne — murmurou, colocando meu café duplo exatamente a 15 cm do prato. — Dona Lola e as meninas já estão... no jardim de inverno, mas… O “mas” pairou no ar como um fantasma. Meus dedos contraíram involuntariamente em torno da xícara. — Fale. Rosália engoliu seco. — A agência de babás ligou. Dona Lola... desistiu da posição. Disse que as gêmeas são... demais. O café amargou em minha boca. — Demais?! — A pergunta ecoou como uma acusação. Beatriz, com seus "porquês" que furavam qualquer lógica adulta. Melissa, com seu hábito de sumir como um gatinho assustado pelos corredores. Sete babás em cinco meses. Olhei para a porta do jardim, onde ouvi um riso agudo seguido por um “Não é assim, Bia!”. Por um instante, quase sorri. Quase. — Marque entrevistas com novas candidatas. Hoje. — ordenei, pegando minha maleta. — E desta vez, quero relatórios psicológicos. Comprovados. Rosália assentiu, mas seus olhos diziam o que eu já sabia: nenhum teste ou relatório prepararia alguém para o furacão Hawthorne. Enquanto meu motorista acionava a buzina na rua, senti o peso do relógio de Miguel no pulso. "Você precisa viver por nós dois agora", sussurrou uma voz dele em meu ouvido. Mas viver era uma palavra grande demais para quem ainda respirava por obrigação. As primeiras luzes da manhã tingiam o Central Park de dourado quando o riso delas invadiu a cozinha como uma invasão de alegria proibida. —Tio Hawk! — gritaram em coro, pequenos pés descalços ecoando no piso de mármore. Melissa colou seu nariz achatado no vidro blindado da janela, enquanto Beatriz tentava escalar minha perna como um macaquinho em pijamas de unicórnio. — Princesas! — murmurei, erguendo as gêmeas de uma vez só. Seus seis anos pesavam menos que meu relógio, mas ocupavam todo o espaço morto do meu peito. Bia enfiou uma mão pegajosa de waffle no meu colarinho impecável. — Tio, a Lola disse que você tá bravo com o mundo de novo! — anunciou, enquanto Mel sussurrava em meu ouvido: — Mas nós te amamos mesmo quando você faz cara de monstro. Rosália apareceu na porta, segurando um tablet com a agenda do dia. — Senhor Hawthorne, as entrevistas para a nova babá começam às 9:00 horas mas… — Um olhar para as meninas silenciou-a. — Eu conhecia aquele roteiro: — teremos mais uma semana até a Dona Lola partir para Guadalajara. Ou seja, apenas mais sete dias para encontrar alguém que não fugisse das pequenas furacões Hawthorne. No café da manhã, enquanto Mel desenhava dragões em seu oatmeal e Bia debatia por que o Empire State Building não usava chapéu, Lola entregou a carta de demissão com mãos trêmulas. — Minha tia Esperanza... o câncer.. — disse em espanhol rápido. Eu acenei, mas minha mente já calculava riscos: “Quem supervisionaria as aulas de natação? Quem sabia que Bia tinha pavor de abelhas após o incidente no Brooklyn Botanic Garden?” Na Bentley a caminho da escola, enquanto as gêmeas cantavam "New York, New York" com letras inventadas, a memória cortou como uma faca: Lorena naquele mesmo banco traseiro seis anos atrás, perfume barato misturado ao cheiro de mentiras. "São suas sobrinhas, Rafael. Ou você me paga para me calar, ou eu as transformo num reality show." Ainda sentia o gosto metálico daquela tarde - o jeito que meu irmão Miguel teria esmurrado a mesa, mas eu apenas assinara o cheque com caligrafia de CEO. Cinco milhões de dólares para pagar uma mãe. Três seguranças armados para garantir que ela embarcasse no voo para Cancún. — Tio Hawk, você tá com cara de Hulk outra vez! — Bia cutucou meu joelho com os sapatos de Minnie Mouse. Melissa, sempre a psicóloga mirim, colocou sua mãozinha sobre a minha: — A gente te protege dos monstros, viu? Ao deixá-las na entrada da Little Ivy Academy, vi as outras mães cochicharem. “O tio coração gelado, fico com pena dessas crianças.” O que elas não sabiam, porém, era que eu trocaria todas as torres de Manhattan por um único dia daquelas pestinhas me chamando de "Tio Monstro" com aquele sorriso que arrancava tijolos de meu muro emocional. De volta ao escritório no 72º andar da Hawthorne Tower, as pilhas de currículos me encaravam como um desafio. "Experiência com crianças", lia no primeiro. Babá de uma família em Hamptons. Referências impecáveis. Mas a foto mostrava uma mulher de tailleur impecável e sorriso de plástico – o tipo que chamaria as gêmeas de "pequenas selvagens" em vez de entender suas invenções de slime. Joguei a pasta na pilha de rejeitados. O segundo currículo: Cláudia M. - 8 anos de experiência. Cursou pedagogia. Mas seu histórico incluía uma passagem relâmpago por uma família em Dubai. Demitida após 3 semanas. Provavelmente não aguentou crianças mais difíceis que um filhote de poodle. — Próxima — grunhi, esfregando as têmporas. Na tela do computador, uma candidata de coque perfeito falava em vídeo: "Adoro impor rotinas saudáveis." Imaginou-a confiscando os giz de cera de Mel durante uma "hora do silêncio" e mandei o arquivo para o lixo eletrônico. O quarto currículo cheirava a desespero: "Aceito qualquer salário!" Risquei com uma caneta Montblanc. Não queria alguém desesperado. Queria alguém perfeito. A quinta pasta quase me fez rir: uma ex-modelo com cursos de yoga infantil. Bia a transformaria em escada humana em 15 minutos. Estava prestes a jogar o iPad contra a parede de vidro quando a porta do escritório se abriu com um estalo. Irma, minha secretária pessoal há 12 anos – e a única pessoa que ousava interromper meus surtos – entrou com passos de taco de hóquei. — Reunião com os investidores coreanos em 20 minutos — anunciou, deixando um dossiê de 300 páginas na minha mesa. — E pelo amor da Chanel, Hawthorne, pare de assassinar candidatas. A próxima babá das garotas vai pensar que este prédio é a filial do Assassin's Creed. Olhei para ela por cima dos óculos Prada. — Você tem alguma candidata que não seja uma Miss Simpatia ou uma freira fugitiva? Irma ajustou os óculos de aro vermelho – seu único traço de cor em trajes sempre cinza. — Tenho uma reunião marcada amanhã com uma ex-professora do MOMA. Arte-terapia para crianças, diz o CV. — Arte-terapia — repeti, imaginando Mel pintando meu Aston Martin com glitter. "te amo tio." Enquanto ela saía, olhei pela janela. Lá embaixo, o Central Park parecia um tapete verde onde Bia certamente tentaria "domesticar esquilos" se eu a levasse lá. Puxei a gaveta superior e encarei a única foto que permitia em meu escritório: Miguel segurando um troféu de hóquei, dois dias antes do acidente. "Cuide delas como eu não pude", sussurrou aquela voz na minha mente. O relógio de parede marcou 8: 45 AM. Respirei fundo, endireitei o paletó Brioni, e saí para a reunião. "Babás podiam esperar. O mundo não."*Flávia narrado*Acordei com o susto do despertador ignorado. O coração disparou quando olhei para o relógio: 8:47 AM. “Merda, merda, merda”.Saltei da cama, os pés descalços encontrando o chão gelado do apartamento minúsculo que dividia com Susana. Enquanto vestia o uniforme verde da floricultura — ainda com cheiro de lírios secos —, uma memória invadiu minha mente sem pedir licença: Papai dançando com mamãe na cozinha de nossa casa em Austin, o rádio tocando "Stand by Me" enquanto Jony batucava nas panelas. Meu irmão mais velho sorria, erguendo a colher de pau como uma varinha. "Flavinha, vem cá ser nossa backup dancer!" A garganta apertou. Jony teria rido de me ver agora, correndo em Nova York como uma barata assustada. — Flávia! A Giulia vai acabar cumprindo o que disse, e vai te demitir por causa dos seus atrasos! — gritou Susana do banheiro, cuspindo pasta de dente. — Ela nunca mais falou isso… foi só aquela vez — respondi, amarrando o cabelo às pressas. Enquanto descia a
* Rafael narrando* A luz do meio-dia invadia meu escritório, mas eu só enxergava um par de olhos azuis pairando sobre Manhattan como um fantasma. Quatro dias. Quatro dias desde que aquela mulher da cafeteria me deixara paralisado com um simples olhar — e eu, Rafael Hawthorne, que nunca hesitava em tomar o que desejava, havia engolido seco como um adolescente diante de sua primeira paixonite. A cidade pulsava sob meus pés, mas meu cérebro estava preso em loop: olhos azuis, rosas brancas, perfume de lavanda. Quatro dias. Quatro dias desde que aquela mulher desaparecera como fumaça após me deixar com um buquê caótico e uma frustração que me corroía as entranhas. Irma invadiu meu escritório como um furacão de eficiência. — As entrevistas para a babá começam em… — Cancele todas — cortei, sem tirar os olhos do relatório falso que fingia ler. — Mas as gêmeas… — Cancele! — Usei o tom que fazia os estagiários chorarem. — E chame o detetive Collins. Preciso que ele encontre alguém.
*Flávia narrando* O despertador tocou às 5:32 da manhã — trinta minutos depois do horário que programou. Corri pelo apartamento minúsculo como uma barata envenenada, vestindo meias desiguais enquanto Susana roncava no sofá. — Vai dar certo —menti para o espelho embaçado do banheiro, onde escrevi "VC CONSEGUE" em batom vermelho na noite anterior. O metrô atrasou. A chuva transformou meu guarda-chuva de 5 dólares num esqueleto de nylon. Quando cheguei ao portão da mansão de Rafael, o relógio da torre marcava 8:17. “Sete minutos atrasada.” Ele esperava na entrada, trajando um terno que custava mais que meu ano de aluguel. Seus olhos escanearam minha roupa encharcada — blusa de renda barata colada aos meios seios, sapato com solado descolado — e suas sobrancelhas franziram-se em desaprovação. — Senhorita Carter — começou, voz mais fria que a chuva de abril — seu contrato menciona pontualidade como... — Eu sei. Desculpe. O metrô... — Desculpas são como rosas murchas — int
A manhã começou com Flávia espiando-me pela janela do quarto, como se tentasse decifrar meus movimentos. Enquanto passava pelo corredor, notei a porta do quarto dela entreaberta, assim como as das gêmeas. A babá já estava de pé, vestida e pronta para acordá-las. Desci para o café da manhã determinado a esclarecer certas regras. — Senhorita Carter — chamei, interceptando-a na sala de jantar — preciso conversar com você. Ela seguiu-me até o escritório com passos firmes, mas os olhos denunciavam uma inquietação contida. Sentou-se à frente da minha mesa, postura ereta, enquanto eu preparava as palavras. — Babás que desenham unicórnios em roupas manchadas não duram uma semana aqui — afirmei, cortando o silêncio. — Disciplina é essencial para minhas sobrinhas. Bagunça e sujeira não são arte, entendido? Antes que ela respondesse, a porta abriu-se com um estrondo. Bia entrava arrastando Mel pela mão, ambas de pijamas e cabelos despenteados. — Tio Hawk, você não vai mandar a Flávia e
*Flávia Narrando* No dia seguinte, após as atividades do colégio, levei as gêmeas para o jardim para elas ter uma atividade recreativa e mais saudável, ao entardecer entramos novamente era lindo ver o rosto delas corado de tanto brincar. Ao entrar no meu quarto, porém encontrei uma pilha de caixas de seda. Dentro, vestidos que pareciam feitos de sonhos — rendas francesas, sedas italianas, tudo em tons de azul que lembravam meus olhos. — Presente do senhor Hawthorne — Rosália apareceu na porta, evitando meu olhar. — Ele disse que… funcionários da família Hawthorne devem refletir seu padrão.Agarrei o tecido mais próximo, sentindo a maciez como uma afronta. As caixas de seda pareciam rir de mim, seus laços perfeitos eram uma afronta ao meu jeans rasgado. Abri a primeira: um vestido azul-marinho que custaria mais que meu semestre na faculdade. No fundo, sabia o que aquilo era: uma armadilha dourada. Rafael queria me transformar em uma de suas estátuas decorativas, controlável e bon