Capítulo 3 - Nos Caminhos da Morte

Ele, no entanto, seguiu fielmente todos os seus conselhos e nem assim pôde contar com sua ajuda, quando mais precisou.  A decepção, principalmente neste caso, mata qualquer sinal de confiança que tenhamos em alguém ou em qualquer coisa. Jesus Cristo deixou escrito em seu evangelho que jamais permitiria que às portas do inferno prevalecesse sobre sua igreja, tanto no presente como no futuro.

Porém, não foi isso que o dedicado pastor presenciou na prática. Ele foi esquecido no campo de batalha, abandonado por seu general enquanto travava sua pior luta. A maior tragédia para a alma humana é perder completamente a confiança no seu Criador, pois essa condição significa sua morte espiritual. O afastamento permanente de Deus levará o homem à escuridão profunda e irreversível, quanto mais dele se distanciar menores serão as chances de evitar a condenação eterna. Carlos França considerava-se mais que um fracassado, via-se como um filho traído por seu pai que antes o imaginava como um ser amoroso e protetor.   

Sempre encarou as ameaças que surgiam à sua frente com um otimismo sem limites, por acreditar cegamente na possibilidade de uma proteção divina que o tornava invencível diante de seus opressores. E, quando finalmente chegou o momento de colocar essa confiança em prática tudo acontece diferente do esperado.

 Matando a fé sólida que cresceu dentro do seu ser por tantos anos. Muitos outros cristãos já se decepcionaram por esperar em vão a providência divina e revoltaram-se de maneira semelhante. Permitindo ao mal o poder de dominá-los e escravizados seguiram na escuridão que para alguns significou um fim impossível de evitar.  No caso de Carlos, que depois de seu fracasso sucumbia-se em sentimento de culpa por ter sido tão ingênuo.

 A tal ponto de não perceber a malícia na qual seus falsos irmãos na fé agiam em secreto para destruí-lo, ainda poderia existir esperanças de restauração caso isso começasse a ocorrer apressadamente, através de alguém que realmente o amasse. Que surgisse em sua e vida e tentasse ajuda-lo, um amor verdadeiro ao ponto de estar disposto a sacrificar parte de seu tempo e da vida para resgatá-lo daquela triste situação. 

E, para sua sorte, como dizem as Escrituras Sagradas, Deus nunca falha em seus propósitos. Haveria de surgir futuramente uma pessoa disposta a lhe estender as mãos com força suficiente para arrancá-lo daquele pântano de pecados. Ele seria novamente iluminado e se tornaria um poderoso instrumento nas mãos do Deus que um dia não poupou sequer a vida de seu único filho para conceder aos perdidos a chance de serem salvos do fogo eterno.

Amanheceu com o céu nublado e os respingos da chuva fina molhavam lentamente seus cabelos grisalhos enquanto andava sem rumo definido rua abaixo. A avenida localizada no centro do bairro era ampla e bastante movimentada.

 A cidade com uma população de aproximadamente trinta mil famílias e as centenas de veículos que iam e vinham a cada segundo, o barulho lhe atormentava a mente cansada e perturbada pelas recordações infelizes do passado que viveu a pouco tempo atrás. Cansado, ausentou-se num canto qualquer para descansar. De repente viu estacionar bem à sua frente um veículo de importante marca que trazia em seu interior quatro homens, todos eles estavam vestidos em ternos finíssimos, com gravatas vermelhas e sapatos de couro preto.

 Aveludado, como exige a tradição da mais alta elite de pastores. Que usurpam dinheiro de seus fiéis, enriquecendo às custas de suas ingenuidades.  Logo que desceram do diplomata dirigiram-se ao mendigo para vê-lo de perto e comprovar sua desgraça. Carlos estava assentado no meio fio localizado na lateral do asfalto e não entendia como o reconheceram.  Os quatro passageiros se aproximaram e indagaram o nome do desgraçado, como que tentando confirmar sua identidade:

 — Pastor Carlos, é mesmo o senhor? — Carlos permaneceu em silêncio, negando-lhe qualquer resposta, o que levou o indagador a insistir:

 — Pastor, fomos informados de sua situação e gostaríamos de lhe prestar qualquer ajuda que precise

 Ele finalmente ergue a cabeça e encara seus adversários:

 — Malditos carniceiro, será que não foi o suficiente tudo o que fizeram comigo e minha família?  Vocês destruíram meu ministério e me colocaram aqui, nessa sarjeta, e agora vem aqui me oferecer misericórdia?  Pois saibam que eu os amaldiçoo por todo o mal que fizeram contra mim, eu os condeno ao fogo do inferno!

— Calma meu irmão, viemos em paz!

— Paz? Depois de tudo que fizeram contra mim falam de paz seus cretinos?

As palavras dele assustaram os quatro obreiros da corrupção que resolveram retornar para o veículo e saíram às pressas. A notícia daquele encontro se espalhou de boca em boca por todos os cantos da extensa comunidade evangélica. A triste situação de Carlos França virou notícia no mundo cristão e enquanto uns achavam lastimável o fim terrível no qual ele se encontrava, outros zombavam de sua queda.

Entretanto, aquele ainda não seu estágio final, muito ainda teria que acontecer e seu nome certamente em breve voltaria a ter grande importância. Agora desempregado e sem nada de importante para fazer perambulava de um lado para o outro pelas ruas e avenidas da cidade, tornou-se um carregando nas mãos uma garrafa de pinga e um maço de cigarro num saco amarrado à cintura. A cada nova manhã ele mais e mais se acostumava com aquela rotina miserável e poucas vezes retornava para casa, deixando seus filhos preocupados. Quando demorava a voltar eles saiam à sua procura com o medo de que algo terrível pudesse ter lhe acontecido.

As reuniões com outros de sua igual situação eram frequentes nas ruelas e becos do bairro.  E sempre que os cristãos o viam perdido na embriaguez e meio aos drogados intercediam em favor dele para Deus tivesse misericórdia. Entretanto, nem todos se compareciam de seu estado deplorável uma grande maioria escolhiam criticar sua pobreza espiritual e riam-se de sua miséria. Carlos dedicou-se à igreja com o corpo, alma e de todo coração, era um fanático religioso. Defendia sua fé nos ditames da crença que desde cedo lhe ensinaram a acreditar.

A Bíblia Sagrada era sua bússola e seus ensinamentos seu guia inquestionável. Os conselhos deixados pelo Mestre Jesus, ao seu ver, não podiam ser contestados por ninguém, nem por doutores e menos ainda por leigos. Era inimigo cruel dos que duvidavam da veracidade Sagrada. Estudou a fundo a Lei divina a fim de compreender a perfeita e indiscutível vontade do único Senhor de todo o universo.

Conhecia sua fidelidade para com aqueles que o serviam com inteireza de espírito era um verdadeiro guerreiro da causa salvífica de Cristo. Jamais pensou que um dia seria por ele abandonado e entregue nas mãos de seus piores adversários. Fazia dias que tinha saído de casa e vagava de um canto para outro como uma alma penada, com a mente cheia de ideias absurdas e maquinando o mal contra a cúpula que o lançaram no fundo do poço.

 Escondendo-se de quem queria lhe prestar ajuda. Numa região onde as chuvas são frequentes. Espremia-se num estreito espaço na frente de um estabelecimento comercial, confundindo-se com as várias caixas de papelões espalhadas em redor, tentando se aquecer do frio quase insuportável.

A cada trovoada ouvida e o relampejar visto a rasgar as densas nuvens no céu, ele amaldiçoava tudo o que aquilo representava por desacreditar na fidelidade divina. De acordo com as revelações repassadas ao profeta João no Apocalipse, o som do trovão representa o prelúdio da segunda vinda de Cristo a este mundo.  Informando o dia e hora exata do segundo advento, um alerta para que a humanidade se desperte e abandone suas vidas de pecados, preparando-se para receber o Salvador que virá em busca dos seus eleitos.

Ciente disso, Carlos murmurava contra o som do trovão que se manifestava naquele momento ao cair daquela forte chuva.  Pois na hora em mais precisou que tais afirmações de livramento aos que fizessem jus ao merecimento foi simplesmente desamparado. Talvez porque tenha se dedicado demais à religião errada? Por ter ao tornado um fanático inveterado? Por querer ser perfeito demais diante dos homens?

 Sabe-se lá qual foram as razões do seu desamparo, a verdade é que seus adversários vieram sobre ele como chacais sedentos de sangue. E o devoraram, rasgaram suas carnes e roeram seus ossos, lançando em seguida o que restou dele num poço infindável.

Então, para que ainda esperar alguma recompensa por sua intensa dedicação a um ser celestial que o desprezou e negou-se a lhe estender as mãos na sua pior angústia. Quando se viu num cerco intransponível e nenhuma saída lhe foi oferecida? Não, daquele instante em diante, quando os lobos raivosos comeram sua carne e lamberem seus ossos decidiu nunca mais crer no Deus da Bíblia. Antes tinha um vasto propósito, naquele momento via o amanhã com pessimismo e duvidava de que algo melhor pudesse lhe acontecer.

 Seu interior estava cada vez mais vazio e somente o cheiro da morte ardia em suas narinas. Entre um gole e outro de cachaça.  Tudo ao redor não passava de nada aos seus olhos, perdeu a confiança numa força superior, nas pessoas e em si mesmo, vivia com a mente entorpecida pelo efeito maléfico do álcool.

 Já não era mais capaz de raciocinar com inteligência e permanecia preso às suas mágoas. Sinésio era um negro carroceiro que morava bem ao lado de sua casa. E vivia encrencado com a polícia, pai de quatro filhos perdidos meio às drogas. Viviam praticando pequenos furtos na área e não livravam nem os vizinhos mais próximos. Porém, foram avisados de não tocarem no pastor Carlos e na sua família. Apesar do que aconteceu ele ainda o respeitava, pois lhe ajudou por diversas vezes, livrando seus meninos e a si mesmo da cadeia.

Durante sua permanência como guia espiritual no bairro soube fazer grandes admiradores. Porém, mais fora da igreja que dentro dela. Até os traficantes que infestavam as ruas com vendas de drogas tinham admiração pelo “pastor França”, como o chamavam. Isso foi de certa maneira útil, porque tanto ele como seus filhos podiam andar livremente sem serem molestados por quem quer que seja.

Nem mesmo seu estado decadente o fez perder tal credibilidade, e por várias vezes se encontrou sentado numa calçada ou na esquina de uma rua meio aos alcóolatras, como fazia antes de sua queda. A aproveitava para lhes anunciar as Boas Novas de salvação, através da pessoa de Cristo e seu evangelho. Agora, depois de perder a fé em Deus e em tudo o que antes lhes ensinou, apenas ouviam suas conversas sem sentido e saboreava a embriaguez de um bom whisky, que fazia questão de levar para beber com seus novos companheiros.

Sempre cheio de amargura e do tipo rancoroso, o velho carroceiro resmungava a respeito da traição sofrida pelo vizinho. Por incontáveis vezes pediu-lhe permissão para m****r seus meninos enfiar uma bala no coração dos infiéis que causaram sua expulsão da igreja. Queria ser útil de alguma maneira, ajudando-o a cumprir neles a vingança que achava justo e não podia esconder uma imensa vontade de aceitar tal proposta. Em seus momentos de revolta pensava concordar com Sinésio.

 Até imaginou lhe dar a autorização que esperava ansioso para executá-los, mas uma força maior o impedia de agir. Era como se um poder maior defendesse aqueles canalhas ou tivesse piedade dele. Quantas ocasiões o viram na sarjeta das ruas do bairro ou nos bares e tabernas, dividindo uma garrafa de cerveja ou um copo de bebida forte com os perdidos, e o criticaram.

 Certa vez ele retornava para casa bastante embriagado e tropeçou, caindo no asfalto e ferindo seriamente os joelhos, e não teve quem o ajudasse a levantar, apenas riram-se dele. Após a embriaguez ele ainda lembrava da vergonha que lhe abateu naquele dia, mas suportou firme. Segurou as lagrimas e passou por cima da afronta com o pouco orgulho que ainda lhe restava. Nos dias seguintes não parou para se corrigir ou ver se o seu caminho era certo ou incerto, seguiu em frente, determinado a se auto destruir.

 Castigava a si mesmo pela maldade que seus inimigos lhe fizeram, era como se ele se culpasse por alguma coisa, talvez por não ter sido capaz de perceber a malícia de seus adversários. E ter confiado cegamente na falsa ilusão de santidade daqueles que o rodeavam.

A bebida forte entorpecia sua mente, confundia seus pensamentos, mas não era capaz de lhe fazer esquecer o passado. Via-se a cada segundo diante do conselho, ouvindo as duras palavras de acusações sobre ele. Assumindo a culpa por responsabilidades que não estavam seus ombros, pois não sabia do erro que seus liderados cometiam às escondidas.

O que mais doía saber era que tinha sido uma grande farsa, armada para destituí-lo de seu cargo, os dois casais acusados de cometer prostituição dentro da igreja eram cumplices de um plano maior. Cujo principal objetivo era incriminá-lo, depois de sua saída foram perdoados pelo conselho e recolocados em seus antigos cargos.

 No final, somente ele foi destituído e expulso do ministério, era sarcástico ser abordado por alguns deles enquanto se embriagava. Para tentar convencê-lo a voltar para assentar-se no banco da congregação, afim de se reconciliar com um Deus que o abandonou à própria sorte e com uma igreja covarde que não defendeu sua inocência.  Antes, deveriam ter a cadencia de pelo menos deixa-lo em paz e parar de fingir que se preocupavam com ele, pois já haviam dado provas do contrário.

Permaneceu como um ébrio por muito tempo, seus dois filhos prosseguiam, sustentando a fé que dele receberam como herança. Viram a queda espiritual e moral do pai como um exemplo a ser evitado, não apontavam o dedo para seus erros. Nem admitiam que alguém zombasse de sua fraqueza, eram verdadeiros defensores daquilo que um dia ele foi e fez de melhor. Sem levar em conta sua atual situação. Acreditavam que um dia o Deus no qual aprenderam a crer, finalmente o levantaria das cinzas.

 Apesar de se tornar um alcóolatra ainda trabalhava como metalúrgico na mesma empresa por trinta anos. Foi seu primeiro e único emprego, tinha estabilidade e já podia se aposentar, mas antes que fizesse isso foi demitido por causa das várias faltas seguidas no decorrer dos meses. E com mais essa perda afundou por completo no vício que o escravizava. Amigo dos cachaceiros e parceiro dos desocupados, esse foi o título que conquistou após viver por tanto tempo entre os bêbados.

Como não precisava mais acordar cedo para ir ao trabalho, passava todo o dia e a noite em companhia deles, poucas vezes retornava para casa, perdeu-se por completo. A pior escuridão vivida por alguém é aquela quando não consegue mais encontrar a si mesmo, nem perceber as oportunidades que surgem de mudança. Chances para recomeçar uma nova existência, de se levantar e Carlos entregou-se ao negativismo e falta de esperança.

ele, perder seu ministério pastoral era o fim de tudo, e por não olhar em volta para dar valor ao que ainda tinha de melhor, perdeu tudo do muito que restou: A família. M esmo que ainda pudesse contar com a companhia dos dois filhos, sua menina se foi e a esposa agora dormia nos braços de outro. Ela estava bem, divertia-se como podia e esnobava a aparente felicidade de quem busca prazer no sexo e nas ilusões que o mundo pode oferecer.

E ele? O pobre diabo nem isso tinha a seu favor. Era o mês de seu aniversário, os filhos foram até a padaria da esquina e compraram um pequeno bolo de milho, coberto com um adocicado creme de morango. Umas uvas verdes em redor, descansando sobre uma estreita bandeja de papel brilhante colocado sobre a mesa da cozinha. Junto, duas garrafas de refrigerantes e três copos de plástico colorido.

Não havia a necessidade de uma quantidade maior, pois ninguém mais se faria presente. Esperaram pelo pai até a meia noite, cansados e cientes que ele não retornaria naquela noite para casa, foram dormir. Eram seis da manhã, quando tocou a campainha e Daniel atendeu a vizinha acompanhada do esposo que o convidava para abrir a porta. Ele recebe o pai completamente embriagado e sujo de lama, eles o encontraram jogado na vala próximo à avenida principal do bairro. Bebeu demais e foi roubado pelos parceiros moribundos.

Os dois rapazes lamentaram a situação e agradeceram os vizinhos pela gentileza de trazê-lo para casa, que grande presente de aniversário ele havia dado a si mesmo, aquele episódio ridículo ficaria para sempre gravado na memória dos dois jovens.  Janaina foi informada do ocorrido e apenas viu a situação como algo engraçado, zombou da desgraça alheia e os filhos irritaram-se com seu descaso, daquele instante em diante eles decidiram manter distância da mãe por causa de sua insensibilidade.

Denise continuava morando com os tios na cidade vizinha, eram apenas duas horas de carro até lá, as vezes vinha visitar a avó e outros parentes acompanhada dos dois primos e da tia Janete. Mas se recusava ir ver o pai, a mãe e os dois irmãos. Sentia desprezo e repulsa pelos familiares, mantinha distância de todos eles, como prometeu no dia que partiu.

 Todas as vezes que ficava ciente da presença de sua filha nas proximidades tinha uma vaga esperança de ser visitado por ela, mas isso nunca aconteceu. Os anos se passavam e a menina de lábios vermelhos, sobrancelhas cheias e cabelos cacheados se tornava uma linda mulher, esforçando-se cada vez mais para esquecer que um dia pertenceu àquela família. 

Para ela, os pais e seus irmãos não passavam de inúteis, indignos de sua atenção. Enquanto ela deixava que esse tipo de sentimento dominasse seu coração, seus dois irmãos cumpriam cabalmente a missão de cuidar do pai durante seu tempo de penitência ou castigo.

Esperançosos de que em breve ele despertasse daquele sono destruidor e novamente voltasse à realidade, enxergasse o colorido do mundo ao seu redor e renovasse em seu coração um novo desejo de viver. Naquela madrugada de domingo as ruas estavam desertas, Carlos estava muito embriagado, pois tinha bebido o dia inteiro com uns desocupados.

 Depois seguiram cada um seu caminho, envergonhado com o estado crítico no qual se encontrava naquele instante, decidiu ficar mesmo pelas ruas, ao invés de retornar para casa e causar mais vergonha para seus filhos. Acomodou-se num beco qualquer, a chuva que caia era insistente, parecia não querer parar le usava uma calça jeans azul, suja pelas várias quedas que sofreu durante a caminhada até ali. Também trazia raladuras pelo corpo e seus sapatos eram velhos e estavam cobertos de lama, apesar da marca famosa estampada neles.

Não eram seus, pertencia a um de seus filhos, sempre deu o melhor que podia a eles, enquanto se espremia no lugar apertado para fugir das fortes rajadas de chuva que inundavam o lugar, encolhido entre duas paredes e enrolado num velho plástico que achou pelo caminho. Seus olhos embaçados pelo efeito da bebida mal podiam perceber as luzes dos postes e ouvia bem pouco, como se estivesse longe, o gotejar do telhado que cobria o pequeno abrigo. Não tinha pretensão de retornar durante aquela noite para casa, então acomodou-se para dormir.

Os meninos ficariam preocupados, mas sabiam que ele iria sobreviver a mais uma noite de chuva nas ruas do bairro.  Enquanto esperava o sono chegar ainda teve forças para relembrar o passado e sentir na boca, mesmo com os efeitos da embriaguez, o amargo das acusações, bem como de tudo o que lhe tiraram, quando foi vencido pelos falsos mestres da igreja.

 Os seguidores de Balaão, dominados pela ambição e guiados pelas trevas, os malditos destruíram sua vida e lhe tiraram tudo o que lhe fazia sentido, jurou que um dia todos eles pagariam por seus erros, não ficariam impunes, receberiam a justa recompensa. As imagens dos tormentos psicológicos ocorridos durante meses lhe eram uma terrível angústia, todas as vezes em que foi pressionado a confessar erros que não havia cometido diante de seus superiores.

Tantas acusações, as culpas indevidas, tudo ainda o atormentavam, seu ato de infidelidade, o abandono pela esposa e o adeus da filha caçula, tantos fracassos eram um verdadeiro martírio. Razões pelas quais se entregava cada dia mais ao álcool, afim de tentar esquecer. Sentiu frio e enrolou-se no lençol de plástico que tinha a seu alcance e aqueceu seu corpo cansado e debilitado como podia, vivia seu pior momento de pobreza, fez da miséria sua companhia permanente e nada mais parecia poder fazer para mudar aquela realidade.

 Nem mesmo o amor pelos filhos era suficiente para refazer suas forças e fazê-lo lutar contra suas limitações. Sua alma morreu, dentro do seu ser apagou-se a última luz da razão, todos que o viam consideravam-no um caso perdido. Pela manhã alguém desperta o bêbado que ocupava espaço no estreito beco entre dois imóveis, os proprietários precisavam sair do local e ele estava atrapalhando a passagem.

 Um deles agiu com rispidez e o espancou com violência, porém, foi contido por outros que não viam necessidade para tal atitude. Mais uma entre tantas outras feridas espalhadas pelo corpo, não fazia qualquer diferença. Retorna para casa quase sóbrio, pelo menos dava conta de andar com seus próprios pés, não chegaria em casa sendo carregado pelos os outros, como da última vez. Foi recebido pelos filhos que estavam bastante preocupados, após um banho acomodaram-no na cama e em seus pesadelos reviveu todo seu passado.

  Dormir não era um descanso, mas uma permanente lembrança de tudo quanto passou até chegar no completo estado miserável no qual se encontrava, pesadelos em forma de sonhos lhe atormentavam constantemente, levando-o a reviver o que precisava esquecer. Aquele era mais um dia em que ficaria ausente no trabalho, logo numa segunda-feira. Na manhã seguinte aparece meio sem jeito para trabalhar e é de imediato chamado ao escritório para se explicar ao superior:

 —  Carlos, o que está havendo com você, companheiro? Essa já deve ser a centésima vez que sou obrigado a lhe chamar aqui para adverti-lo sobre estas suas ausências no local de trabalho no início da semana, desse jeito vou ser obrigado a lhe demitir! Sabemos das dificuldades que tem enfrentado, mas não pode misturar seus assuntos pessoais com os profissionais, ou leva à sério o compromisso que tem para com esta empresa ou está fora!

— Eu compreendo, Junior, você tem toda a razão de impor tais condições, sinto muito por não ter cumprido corretamente com meu compromisso profissional. E desde já deixo minha vaga à disposição, caso volte a falhar com vocês

— Mas não é isso que queremos de você, meu amigo, se nossa intenção fosse demiti-lo a muito tempo já teríamos feito. Afinal, são anos de tolerância com essa situação, mas é que mudou a diretoria e os novos diretores não reconhecem o tempo de serviço que você prestou dedicadamente a essa empresa no passado, nem o quanto contribuiu para que ela chegasse a esta posição. O que exigem é pontualidade a todos os seus funcionários e aqueles que não se encaixarem nessa nova condição devem ser desligados

— Junior, nos conhecemos a muitos anos, você sempre foi meu melhor amigo e sei que não sentirá prazer em me prejudicar. Não se preocupe, se seus novos patrões estão exigindo minha demissão, então faça conforme eles autorizaram, não guardarei rancores por isso, só estará obedecendo ordens

— Eles ordenaram sua demissão a vários meses atrás, meu amigo, eu é que tenho me esforçado ao máximo para mantê-lo por aqui. Será que não há mesmo uma maneira de você colocar sua vida novamente em ordem e salvar seu emprego?

— Faltam apenas alguns meses para que eu possa ter direito a dar entrada na minha aposentaria por tempo de serviço, uma demissão agora não irá me afetar em nada quanto a isso. Pode executar suas ordens, meu amigo, e não se preocupe, pois ficarei bem

 — Está certo, fico feliz que não esteja lhe causando qualquer dano. Então passe no RH e assine seu aviso prévio, e daqui a três dias volte para concluir o processo de desligamento da empresa e ter acesso a documentação que lhe permitirá efetuar a retirada de suas indenizações, conforme determinam as leis trabalhistas

Após um forte abraço, que simbolizava o fim de mais de trinta anos juntos no mesmo local de trabalho. Carlos e Junior se despedem. Dali para frente ele era um homem livre do compromisso de acordar todos os dias as cinco da manhã e enfrentar uma longa jornada em quatro conduções lotadas, o trabalho pesado nas oficinas e o retorno para casa nada confortável, com um salário miserável que em nada compensava tanto esforço. 

Agora estaria com todo o tempo disponível para jogar conversa fora com os amigos de copo, enquanto se embriagassem. Após perder o emprego as coisas não andavam muito bem financeiramente e teve que vender a casa onde morava para ter condições de pagar os estudos dos dois filhos, bastante caros por sinal.

 Foram morar num cubículo de quatro cômodos, localizado numa das muitas ruelas que ficavam na baixada, o lugar era um terreno baixo em relação a rua principal e alagava durante o forte inverno, típico da região.  Mal começava a chover e Carlos, quando estava sóbrio. Tinha o dever de colocar baldes nos cantos das paredes do barraco para aparar a água que caia das goteiras do telhado cujas telhas de barro. Que por serem antigas e em parte quebradas, não continham a tempestade. Se o período de chuva fosse demorado, aí sim, o pior acontecia.

A lama que se formava na rua sem qualquer tipo de saneamento acumulava ao ponto de transbordar e inundar o piso. Sem falar nas infiltrações que encharcavam as paredes feitas de tijolos mal preparados, comprados por baixo preço pelos moradores de bairros pobres como aquele. Enquanto chovia e as crianças brincavam, correndo dentro da lama de uma ponta a outra da rua, eles e vários outros tentavam secar suas casas da inundação. As vezes a tempestade de água chegava ao fim e eles permaneciam naquela penitência até altas horas da noite. 

Completamente esgotados e correndo sério risco de contrair doenças graves. Findavam a limpeza e dormiam quase sem forças para na manhã seguinte seguirem em direção à escola, os meninos suportavam tamanha luta sem murmurar e ainda achavam graça da atual situação em que se encontravam ao lado do pai. 

 Eram dois filhos de ouro que Deus, na sua infinita misericórdia deixou para dele cuidassem, mesmo que já tivesse perdido ele a fé que antes possuía. Eles admiravam o esforço do pai em investir o pouco que lhe restou nos seus estudos.  Ao sair do emprego aplicou grande parte da indenização recebida para pagar as melhores escolas. Fez isso para que eles pudessem se preparar nos melhores cursos e obter a experiencia necessária para encarar o competitivo mercado de trabalho.

 A nova vizinhança era hostil, mas também admirava seus esforços e não o criticavam pelo desmedido vício do álcool, pois ali a maioria eram, também, beberrões ou viciados em alguma droga.  Sua maior preocupação era que seus filhos fossem influenciados de alguma forma pelos jovens usuários de maconha, crack ou mulas do tráfico. Mas o antigo conselho das Escrituras que diz:

“Ensina o caminho em que a criança deve andar e, quando ele crescer, jamais dele se desviará”, cumpria seu efeito em suas vidas. Carlos mostrou a Danilo e Daniel o caminhos da luz e nele eles permaneciam, nunca se desviaram. Pelo contrário, logo que mudaram para o novo bairro a atitude deles foi procurar uma igreja evangélica.  No objetivo de ali se reunirem com seus novos irmãos em Cristo. Num curto período de tempo a humilde casa de paredes manchadas, devido às infiltrações, encheu de visitantes.

 Eram adolescentes e jovens de todas as idades provenientes de várias igrejas da redondeza. Amigos que conquistaram e por eles verdadeiramente amados. Como os dois rapazes eram bons músicos, recebiam com frequência convites para tocar nas bandas das congregações.  E, com o incentivo dos pastores e da comunidade cristã, passaram a dar aulas para aqueles que tinham vocação para tal ofício, o que prontamente aceitaram e com profunda satisfação dedicaram-se ao ensino. Carlos permanecia preso à escuridão do vício e revolta, algumas vezes ia ao templo ver os filhos em suas apresentações.

 Numa delas até se reconciliou e permaneceu por lá um tempo. Mas depois se deixou vencer pelo desânimo e voltou para às mesas dos bares. Mas tudo era projeto divino que nunca desistiu dele, apesar de sua amargura de espírito. Com toda a liberdade conquistada pelo recente desemprego, passava toda a noite perambulando pelas ruas na companhia de outros beberrões e dormia durante o dia. Sua aparência era horrível, poucos que o acompanharam no auge de seu pastoreio o reconheciam.

  De homem importante, passou a ser visto apenas como um pobre coitado, derrotado e sem chances de se levantar.  Usando sempre as mesmas calças rotas e camisas de mangas longas, quando muito embriagado gritava em voz alta trechos bíblicos.

Condenando seus inimigos e afirmando que em breve cairia sobre suas cabeças a ira divina pelo mal que lhe fizeram. Claro que para quem o ouvia aquilo não passava de delírios provenientes da alta quantidade de álcool ingerida por ele, mas alguns que conheciam sua triste história de vida compreendiam o real significado daquelas palavras.

 E torciam para que um dia elas fossem devidamente ouvidas por Deus e se cumprissem.  Os mais jovens eram hostis e o escarneciam, mandavam que se calasse, o taxavam de louco, em certas ocasiões o apedrejaram e teve que ser levado ao centro médico do bairro para cuidar dos ferimentos.

 E nessa caminhada infernal os que mais sofriam eram os dois filhos que insistiam em permanecer de seu lado. Contrariando o restante dos familiares que eram de acordo que o abandonassem. No período de carnaval daquele ano todo o país estava em festa, todos quanto viviam distantes da luz divina se divertiam nas trevas espirituais da luxúria, em busca do prazer momentâneo oferecido pela bebida, sexo e toda forma de devassidão moral.

 Carlos, como de costume, não conseguia ficar em casa durante ao findar o dia e saiu para alimentar o vício do qual se fez um constante dependente.  Para ele, parecia ser uma noite normal como qualquer outra nas quais bebeu e se descontraiu ao lado dos companheiros. Mas uma época perigosa e em cada esquina se escondia o perigo.

 Daniel e Danillo recomendaram que ficasse em casa, mas sua teimosia era incontrolável. Enquanto estavam na igreja orando juntamente com os irmãos na fé, o pai vagava sabe-se lá por onde e algo lhes incomodava. Carlos sempre saia e voltava somente pela manhã. Estavam acostumados, mas naquela noite era como se alguma coisa lhes advertisse que o pior poderia acontecer. Após o culto retornaram para casa e não conseguiam dormir, passava das duas da madrugada e só escutavam as várias aparelhagens tocando músicas mundanas. Os embriagados circulando pela rua estreita com suas garrafas de cachaça nas mãos.

Eles pronunciavam palavrões sem fim. Onde estaria Carlos, caído em alguma calçada, jogado num beco qualquer. Ou quem sabe sendo espancado pelos muitos embriagados e drogados que infestavam o bairro naquela época de orgia carnavalesca? Os dois rapazes perceberam o primeiro cantar do novo amanhecer e logo se levantaram para irem à procura do pai ausente.

Em pleno acordo saíram sem rumo certo, tentando encontra-lo em algum local dos vários que habitualmente frequentava para saciar sua sede de álcool. Bares, tabernas. Pequenos comércios e até nos barracos da feira livre. Quanto mais andavam a busca parecia inútil, nenhum sinal que lhes servisse de orientação para ajuda-los a localizá-lo.

 De acordo com o passar das horas passaram a perder as esperanças, alguém lhes aconselhou a irem fazer uma busca pelos hospitais, delegacias, e por onde ele pudesse ser encontrado. Durante as buscas forma informados de que o pai estaria internado no centro médico.

Depois de ter sido amparado por populares que o livraram das mãos de indivíduos que o espancavam. O mal pressentimento que lhes advertiu sobre o perigo era verdadeiro, de fato o pai estava enfrentando dificuldades e quase perdeu a vida.  Sem dúvida existia uma forte ligação entre eles, como deve ser numa família.

Os rapazes viveram momentos de intensa preocupação e juraram daquele dia em diante agirem com mais severidade com o pai. Afim de que ele se libertasse da dependência alcóolica, não levaram o episódio ocorrido com Carlos ao conhecimento da mãe nem da irmã.  

Pois sabiam que elas dariam pouca importância. Depois de um tempo se recuperando dos ferimentos por todo o corpo, ficou impedido de ingerir bebidas alcóolicas. E hora por outra tinha crise de abstinência que era controlada por medicamentos receitados pelo médico, o que na verdade não surtiam grandes efeitos. Foi um período de intensa luta enfrentado pelos jovens, que em nenhum minuto pensaram em desistir. Trocavam os curativos e preparavam-lhe as refeições adequadamente.

Ambos estudavam, por isso revezavam o horário para atender as necessidades do pai. Por causa disso tiveram de suspender as aulas de música na igreja e foram compreendidos por seus alunos e líderes, cientes da situação. Por fim, quando Janaina ficou ciente do que aconteceu não foi sensibilizada. E ainda teve o descaramento de cobrar rigidamente dos filhos pelo fato deles terem feito segredo do caso, como se tivesse mesmo algum interesse.

Para tentar conquistar o respeito como mãe passou uns dias auxiliando-os na recuperação de Carlos e depois, quando ele demonstrou melhoras, desapareceu. Não foi nenhuma novidade, Daniel e Danilo conheciam bem Dona Janaina, era uma mulher interesseira e nada fazia sem querer algo em troca, desde a primeira vez que ela fez descaso da triste situação do pai que eles passaram a ignorá-la. Por isso decidiu vir ajuda-lo no objetivo de amenizar a indiferença e reconquistá-los. 

 No final das contas Janaina conseguiu seu objetivo, pois eles ficaram gratos pelo gesto de misericórdia e o casal, mesmo com seus laços rompidos. Parecia dá esperanças de união e companheirismo no futuro. Carlos se recuperou e logo que se sentiu fortalecido voltou às ruas em busca das más companhias e da bebida.

Para tristeza dos filhos que insistiam para quer ele se esforçasse e abandonasse o vício. Era triste vê-lo sentado naquelas calçadas, dividindo copos de bebidas fortes com outros bêbados. A situação só piorava depois que ele passou a consumir cachaça ao invés de uma simples cerveja, a embriaguez era maior e mais prejudicial, levando-o a um estágio preocupante. Na igreja, Daniel e Danilo pediam aos irmãos na fé que orassem em favor do pai. Na intenção de vê-lo liberto da dependência alcóolica. Homens e mulheres, jovens e adolescentes se uniram numa campanha. 

Oravam em prol desse objetivo durante várias semanas, jejuns eram constantes no intuito de serem ouvidos e atendidos por Deus. Enquanto isso, Carlos só afundava cada vez mais na triste existência que escolheu. Planejando o fim da própria vida. Mas, aos poucos as coisas iriam começar a conduzi-lo na direção certa e aquele mal seria dissipado, a luz divina que a igreja pedia que viesse ao seu auxílio finalmente chegaria e seguraria em suas mãos. Sustentaria seus joelhos cansados e o desviaria da morte certa.

 Pois ele ainda não tinha cumprido toda sua missão na terra como anunciador das Boas Novas de salvação. Na sua louca jornada ao lado de outros alcóolatras, certa ocasião conheceu Leopoldo, um velho rabugento com quem fez grande amizade e gostava de conversar, ouvia suas histórias com prazer, pois muito aprendia com seus comentários. Naquela manhã os dois estavam assentados numa das inúmeras calçadas de bares que existiam na avenida independência. E o amigo passou a lhe falar algo novo:

 — Sabia que estes cinco bares localizados neste lugar já foram meus?

 — Como, assim, seus?

 — Sim, meu amigo, essa é uma triste realidade. Já faz muito tempo, eu era um próspero empresário e dono de várias propriedades.

 Mas perdi tudo depois que minha mulher me trocou por outro e busquei refúgio na bebida e nas drogas. Acabei vendendo tudo o que tinha para sustentar o vício e terminei como você pode ver, na sarjeta

 — Mas porque o amigo não seguiu em frente? Com certeza encontraria outra mulher que saberia lhe dar o valor merecido e voltaria a ser feliz

 — Falar é fácil, quando olhamos de fora tudo parece simples, mas eu amava profundamente aquela mulher e pensei ser impossível viver sem ela. Era difícil vê-la circulando por ai de mãos dadas com aquele moleque que tinha idade de ser nosso filho, zombando de mim diante de todos que nos conheciam. Juro que depois de um tempo o amor se transformou num amargo ódio e passei a desejar tirar a vida dos dois, não o fiz porque jamais tive tendência a me tornar um assassino

— Fez bem, caro amigo, caso contrário estaria hoje preso e sem sua liberdade

— E você acha mesmo que sou um homem livre, Carlos? Por acaso se acha livre, nessa vida miserável em que nos encontramos? Não confunda liberdade com o fato de poder sair por aí com uma garrafa de cachaça nas mãos, bebendo até cair pelas calçadas, acompanhado pela escória das ruas, sem ter quem o condene ou repreenda suas ações, como um imprudente que não se dá conta da loucura que está fazendo, destruindo a si mesmo neste vício maldito.

Não, companheiro, eu e você não somos homens livres e sim escravos das circunstâncias na qual nos colocamos a partir do momento em que perdemos nosso amor próprio. As palavras de Leopoldo fizeram Carlos refletir por um segundo e perceber tão grande verdade elas expressavam. Sim, ele era o único culpado de viver naquela miséria, ninguém mais. Seus inimigos o perseguiram, armaram-lhe ciladas e conseguiram manchar sua reputação e jogá-lo vivo dentro de uma profunda cova.

Tiraram-lhe o que mais amava, transformando-o num homem renegado pelos que antes o admiravam. Mas, se naquele momento era um derrotado e encontrava-se na sarjeta, isso era uma escolha sua e não deles. Seus adversários poderiam até ter o poder de tirar tudo o que conquistou no longo de sua carreira, o ministério pastoral. E até quem sabe, influencia a igreja contra ele, mas nunca roubar sua dignidade.

Se tornou um derrotado e vivia jogado pelas ruas como um farrapo humano por conta própria, foi sua escolha, ninguém tinha culpa alguma por isso.  As verdades pronunciadas pelo amigo pareciam ter feito cair a máscara de coitado. Que Carlos havia insistido em colocar diante de seus olhos por tanto tempo, e naquele exato instante se deu conta do quão covarde estava sendo.

Ao conhecer a história de Leopoldo quis encoraja-lo a seguir em frente, levantar e dar a volta por cima, mas foi repreendido e compreendeu que poderia ter usado essas mesmas convicções para prosseguir na sua jornada. Quando seus inimigos o confrontaram. Mas o que fez foi fugir assustado para dentro da concha, onde permanecia como um covarde. Depois de um longo papo e ouvir do amigo muita coisa que lhe serviram de despertamento seguiram em frente.

Sem rumo certo e assim permaneceram até o anoitecer, sempre relembrando o passado que lhes atormentava. o dia e lá estavam eles em frente a um dos bares que Leopoldo dizia ter sido dono e a atual proprietária lhes convidou a sentarem-se numa das mesas de canto, cumprimentando-o.

Aquele velho de roupas rotas, com cabelos longos e a barba manchada pela fumaça do cachimbo inseparável, onde queimava seu fumo preferido. Ela o recebia com muita atenção e servia-lhe bebida todas as vezes que aparecia por lá, Carlos admirou-se que mesmo naquelas condições Leopoldo ainda recebesse tal tratamento, então ele explicou a razão:

— Essa é Meire, minha sobrinha. Quando soube o que me aconteceu e que estaria vendendo tudo o que tinha veio de imediato comprar estes imóveis no objetivo de mantê-los como bens da família. E desde então tem tentado me tirar das ruas, cuidar de minha saúde e me fazer retomar à antiga vida que tive, mas tem sido em vão, pois não sinto mais desejo algum em viver

— Eu entendo, t5ambém tenho dois filhos maravilhosos que se esforçam para me ver reagir, levantar e seguir em frente, mas perdi a vontade de viver

 — Na verdade somos dois ingratos, meu amigo. Temos quem nos ame e lutam para nos ajudar, mas preferimos ficar jogados no esgoto. Não merecemos o amor que deles recebemos   

 — Você tem toda razão, precisamos parar e refletir melhor na forma como estamos tratando aqueles que ainda nos valorizam, apesar da pouca importância que temos hoje

— Talvez você devesse começar a fazer isso, Carlos, eu já estou no fim da jornada e seria perda de tempo pensar em resgatar alguma coisa nessa vida miserável que escolhi

— Não fale isso, meu amigo, você ainda está vivo e tem essa sobrinha dedicada que se esforça em ajuda-lo. Tente dá uma chance a si mesmo!

— Tenho setenta anos e acometido de um câncer na próstata num estágio avançado, é tarde demais para pensar em recomeço

— Mas porque nunca me falou sobre isso, velho amigo?

— E desde quando você é médico, Carlos?

— Ele sorri e bate forte em seu ombro

— O que importa é que nos conhecemos antes de minha partida e sou grato por sua amizade

 — Sinto muito por isso, Leopoldo. Sinto mesmo!

 — Ora, pare com essas lamentações, meu amigo. Vamos aproveitar todo o tempo que ainda me resta!

 — Sim, é claro!

 — E de agora em diante me faça o favor de me chamar apenas Léo, como gosto que me chamem

 — Pode deixar Léo, farei isso

Uma forte amizade se firmou, agora, entre os três. Apesar de está habitando num mundo onde a luz e as trevas mantinham-se vizinhas uma da outra, porém em planos totalmente diferentes, havia a esperança de que em um futuro próximo tudo pudesse mudar na vida daquelas pessoas feridas pelo destino.

A amizade dos dois homens perdurou por um longo tempo, Leopoldo passou a visitar a casa de Carlos e foi bem aceito por seus filhos, Daniel e Danilo riam-se das histórias que o idoso contava e das peraltices que fazia, quando criança. Era a primeira vez que o pai decidia levar um dos seus companheiros de copo para conhecer sua família, e acertou em cheio, porque mesmo sendo um bêbado sabia respeitá-la e se portava convenientemente.

  Algumas vezes até visitou a igreja e participou de alguns eventos, os irmãos gostaram muito dele e lhe deram roupas novas, cortaram seus cabelos e apararam sua barba. As jovens brincavam com o visitante e se divertiam com suas conversas. Porém, toda aquela alegria e repentina felicidade de Leopoldo significava uma despedida que o destino parecia está lhe reservando.

 Era seu momento de dizer adeus. Apesar do câncer que lhe devorava por dentro sua saúde parecia estar em alta, aos setenta anos encarava um bom jogo de futebol com a garotada nas peladas de rua, mesmo que só para atrapalhar.

 Não demorava e já estava cansado, mas eles adoravam o velho danado que queria ser jovem e lhes fazia sorrir bastante. Carlos se afastou dos demais bêbados e só andava com o novo amigo, na verdade até abandonaram mais as ruas e bebiam em casa. Daniel e Danilo gostaram da mudança e davam apoio a amizade dos dois.

Pois viam que ela era benéfica ao pai.  Numa noite das muitas que se reuniam em casa para conversar, trocar ideias ou mesmo assistir o campeonato de futebol. Ali estavam os quatro, quando Leopoldo passa mal e pedem ajuda a um vizinho que possuía carro para leva-lo ao hospital mais próximo.

Onde foi prontamente atendido e submetido a vários exames. Carlos deixou o médico de plantão a par da situação em que se encontrava o amigo. Explicou sobre o câncer de próstata, e todos os procedimentos foram feitos, levando em conta essa informação. Depois de retornarem para casa os dois jovens informaram a igreja sobre o episódio e passaram a orar para o breve reestabelecimento do enfermo, mas dessa vez suas orações não seriam atendidas.

Porque era propósito de Deus encerrar sua jornada, o ancião ainda era um alcóolatra, mas havia diminuído o consumo de álcool. Devido a insistência dos evangélicos e dos dois rapazes por quem aprendeu ter muito apreço.  E isso foi algo imensamente positivo, pois influenciou Carlos, que abandonou as ruas, reduziu a embriaguez e seguia a mesma mudança do amigo.

Leopoldo passou a ser querido por todo, que sentiam muito por seu grave estado de saúde. Carlos estava inquieto no terceiro dia após internar o amigo naquele hospital e decidiu ir até lá ver como reagia ao tratamento, mas, tratando-se de um pobre coitado pouco foi feito para ajudá-lo em sua recuperação. Ele permanecia na mesma, muito mal. A saída foi Meire, sua sobrinha, reunir recursos e transferi-lo para uma clínica particular de oncologia, onde uma equipe médica se empenhou em salvá-lo, mas no quinto dia de internação Meire e Carlos foram informados do falecimento do paciente.

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