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Prólogo - Alexander
A primeira coisa que senti foi o peso. Um peso estranho, sufocante, como se o próprio ar tivesse ficado espesso demais pra respirar. Minha cabeça latejava, e o som de algum aparelho apitando me fez querer tapar os ouvidos, mas quando tentei mexer as pernas, nada aconteceu. O desespero veio de uma vez. Tentei mexer os pés, o tronco, qualquer coisa. Nada. Meu corpo inteiro parecia morto. Mas eu sentia o coração batendo, acelerado, como se tentasse compensar o resto que não funcionava. Abri os olhos com esforço. A luz branca me cegou por um instante, e quando consegui focar, vi o teto. Um teto frio, impessoal, típico de hospital. Fios. Tubos. Monitores piscando. Um cheiro forte de desinfetante. Tentei falar. Quis gritar. Perguntar o que estava acontecendo. Mas a voz não saiu. A garganta queimava e parecia colada por dentro. Tentei de novo. Um gemido rouco escapou, e foi o suficiente pra chamar a atenção de alguém. Uma mulher apareceu no canto da minha visão, usando roupas claras e uma touca no cabelo. — Calma, senhor, calma, o senhor está bem — ela disse, se aproximando rápido. — Respire fundo, tá? Eu vou chamar o médico. Bem? Ela disse bem? Como alguém pode estar bem preso dentro do próprio corpo? Senti o ar preso nos pulmões, a respiração descompassada, o peito subindo e descendo rápido demais. Consegui mexer as mãos, e agarrei o lençol com força. Era a única parte do corpo que parecia me obedecer. Minutos depois, um homem de jaleco entrou no quarto. O olhar dele era sério, cansado, e mesmo antes de abrir a boca, eu sabia que não vinha coisa boa dali. — Alexander? Consegue me ouvir? — ele perguntou, se inclinando. Pisquei duas vezes, tentando confirmar. — Ótimo. Vamos devagar, ok? Respira fundo, você está num hospital, em recuperação. Tentei formar uma pergunta com os lábios secos. Ele pareceu entender. — Eu sei que tem muitas dúvidas. Só um momento, vamos retirar os tubos. A enfermeira se aproximou, desligando aparelhos, tirando fios, soltando o tubo que estava na minha garganta. Eu tossi, tossi até o peito doer. Quando finalmente consegui respirar sozinho, sussurrei: — Água… por favor. Ela me deu um pouco, com cuidado. A sensação do líquido descendo foi a melhor coisa que senti desde que acordei. — O que… o que aconteceu? — minha voz saiu fraca, falhada. — Por que eu tô aqui? O médico respirou fundo. Olhou pra enfermeira, depois pra mim. — Sua família já foi chamada. Estão a caminho com a psicóloga. Vamos conversar com calma, tudo bem? — Eu não preciso de psicóloga. Nem da minha família. Eu só quero a minha esposa — respondi, e minha garganta travou no meio da frase. — Onde ela tá? O médico desviou o olhar. O silêncio dele doeu mais do que qualquer resposta. Pouco tempo depois, a porta se abriu. Minha mãe entrou primeiro, os olhos inchados de chorar. Atrás dela, meu irmão, com o rosto pálido. E uma mulher de jaleco, que eu presumi ser a tal psicóloga. — Alex… — minha mãe sussurrou, se aproximando, a voz tremendo. — Mãe, o que tá acontecendo? — perguntei, tentando manter a calma que eu já não tinha. — Cadê a Julia? A mulher de jaleco respirou fundo e deu um passo à frente. O olhar dela era sereno, mas carregava um peso que me gelou por dentro. — Alexander, eu sei que é difícil ouvir isso — ela começou, com aquela voz doce e controlada — mas você sofreu um acidente. — Acidente? — repeti, confuso. — Que acidente? — Foi há exatos dois anos e dois dias — ela disse. — Você estava com a sua esposa no carro. Houve uma colisão grave. Você ficou em coma desde então. Meu corpo inteiro pareceu congelar. Dois anos? — E a Julia? — sussurrei. A mulher hesitou. Meu irmão abaixou a cabeça, e foi aí que eu entendi. — Não… — balancei a cabeça, ou tentei. — Não, não, não… — Ela não resistiu, Alexander. Sua esposa faleceu no acidente. As palavras dela cortaram o ar. Eu não ouvi mais nada. Só um zumbido. Uma pressão no peito, como se o coração tivesse decidido parar junto com o resto do corpo. — Era pra ter me deixado morrer também — falei, com a voz embargada. — Eu não quero isso. Eu não quero viver sem ela. Minha mãe chorava encostada na cama. O médico tentou falar algo, mas eu gritei: — SAIAM! — Foi um grito mais mental do que físico, porque o corpo ainda não obedecia. — Me deixem em paz! O rosto da psicóloga se manteve calmo, mas os olhos dela denunciavam pena. Pena. A última coisa que eu queria. Fiquei ali, preso naquele quarto branco, sentindo o tempo se arrastar. A dor era tão grande que parecia ter corpo, forma. Ela me esmagava por dentro. Nos dias seguintes, os médicos falavam sobre terapia, reabilitação, esperança. Mas eu não ouvia. O que me importava já tinha morrido. Tentei lembrar do acidente, mas minha mente só trazia flashes desconexos. O som do vidro quebrando. O grito dela. E depois o escuro. Fiquei internado por mais algumas semanas. Cada manhã era um lembrete de que eu nunca mais andaria. Nunca mais sentiria o toque dela, o cheiro do cabelo dela, o riso leve que enchia a casa. Um dia o médico entrou com aquele mesmo olhar piedoso de sempre. — Alexander, os exames mostram que está tudo estável. Vamos dar alta amanhã. Assenti, sem emoção. Estável. Essa palavra soava como condenação. Fui levado pra casa numa cadeira de rodas. O caminho inteiro, encarei o vidro da janela, vendo a cidade passar sem conseguir sentir que eu fazia parte dela. Quando cheguei, tudo parecia estranho. A casa era a mesma, mas vazia de vida. As coisas dela ainda estavam lá, o perfume no ar, as roupas no guarda-roupa, a caneca preferida na cozinha. Tudo congelado no tempo, como se ela fosse entrar a qualquer momento pela porta. Passei os dias seguintes no silêncio. As pessoas vinham me visitar. Amigos, parentes, Amigos. Todos com aquele olhar de quem não sabe o que dizer. E eu não queria ouvir nada mesmo. Fiquei no quarto. As cortinas fechadas. A cadeira virada pra parede. O celular desligado. Só eu, o som do meu próprio respirar, e a lembrança dela. De vez em quando, eu olhava pra aliança no meu dedo. Aquela pequena faixa dourada parecia zombar de mim. Promessas de até que a morte nos separe. Mas ninguém te prepara pra quando a morte separa de verdade. Os dias viraram semanas. As semanas viraram meses. E eu continuei ali, me punindo, me trancando, esperando o tempo acabar. Porque, no fundo, eu já tinha morrido naquele carro. O que restou, é só o que sobrou de mim. E talvez seja isso que eu mereça. Viver preso no próprio corpo, sentindo a ausência dela em cada segundo. Um castigo. Um lembrete cruel do que eu perdi. Julia sempre dizia que eu era forte. Mas ela não tá mais aqui pra ver o quanto eu me tornei um fraco. E talvez… Talvez seja melhor assim.






