ISABELA SILVA
— Minha filha, você não precisa ficar aqui com esse velho, pode ir se divertir com seus amigos. — Meu pai disse, enquanto eu buscava seu remédio. Eu estava terminando de me arrumar quando ouvi o barulho vindo da sala, meu coração deu um solavanco quando vi o meu pai no chão, ele tinha acabado de cair da cadeira porque teve tontura, de novo. — Papai, nem pensar eu vou deixá-lo aqui nesse estado. Quantas vezes o senhor deixou de sair para cuidar de mim? Hein? — toquei o seu nariz, enquanto sorria tentando tranquilizá-lo. Meu nome é Isabela Silva, tenho vinte e seis anos e moro num pequeno vilarejo chamado Aurizona, no Maranhão. A minha família é o meu pai, nós cuidamos um do outro desde que minha mãe nos abandonou anos atrás. Eu tinha apenas dois anos e meio quando ela fugiu com um engenheiro rico que veio fazer um trabalho na indústria de minério, ela carregou apenas a minha irmã gêmea, foi embora sem olhar para trás e eu fiquei. Por anos eu me culpei pela atitude da minha mãe, eu nasci com uma anomalia genética, a síndrome de Waardenburg, é pouco conhecida, ela deixa a cor dos olhos com cores incríveis mas a visão pode ser prejudicada e a minha foi, eu nasci cega. Mas meu pai gastou tudo que construiu ao longo da vida e pagou os custos de um tratamento que me devolveu vinte por cento da visão do olho esquerdo e quarenta por cento da visão do olho direito, aos treze anos eu consegui ver o mundo pela primeira vez. Foi o momento mais emocionante da minha vida, o meu pai me levou até o nosso quintal e me mandou erguer a cabeça e quando ele tirou o tampão dos meus olhos, a primeira coisa que vi foi o céu cheio de estrelas e a lua me iluminando. A visão não era nítida, mas a imagem das estrelas mais brilhantes ficaram gravadas na minha memória como a página do meu recomeço. Aos quinze anos eu tive que começar a trabalhar, o meu pai descobriu um câncer e não conseguiu continuar no trabalho de marceneiro, o tratamento era muito agressivo e prejudicou sua capacidade de manusear os equipamentos. Nossa vida nunca foi fácil, tivemos muitos desafios, mas os vencemos dia após dia e somos felizes. Aos vinte e três anos eu consegui me formar no ensino médio e depois ingressei no curso de secretariado, foi uma grande vitória e eu fiquei muito realizada quando recebi o diploma. O barulho do meu telefone tocando chamou a minha atenção. — Alô! — Atendi, após correr até o sofá onde estava minha bolsa. — Cadê você, Bela, estamos te esperando há meia hora!— Ana, minha melhor amiga, praticamente gritou ao telefone. — Eu não posso sair agora, Ana, me desculpe, mas meu pai passou mal. Diga ao pessoal para se divertirem muito por mim — Respondi, sentando-me ao lado da bolsa. — Leva ele para minha casa, você sabe que a mamãe cuida dele pra você — disse ela, tentando me convencer. — Eu sei disso, Ana, a tia é um anjo. Mas não posso fazer isso, não hoje, você sabe que está chegando a data que aquela mulher foi embora e o papai fica muito arrasado todas as vezes. — Eu sei. Sinto muito, amiga, de verdade. Dê um beijo no tio por mim. — Eu dou. — Encerrei a ligação. Deixei o telefone no sofá e segui de volta ao meu quarto para trocar as roupas e tirar a maquiagem, na verdade era apenas um blush que apliquei nas bochechas para amenizar a pele pálida. Após jogar água no rosto, olhei o reflexo no espelho, a expressão triste e a decepção tomam cada poro da pele, cada suspiro ao respirar, a decepção e tristeza estão em tudo. A verdade é que eu também não superei o abandono e essa data também dói em mim. Mais um suspiro me escapou quando as imagens de tudo que eu passei voltaram à minha mente. Eu e meu pai passamos por muitas lutas e algumas foram mais pesadas do que era possível aguentar e quando o meu pai adoeceu e eu tive que cuidar dele e até trocar suas fraldas, eu não suportei a pressão então eu cheguei ao fundo do poço e tentei suicídi0, eu tive medo de perdê-lo e a minha depressão piorou ao ponto de chegar ao limite e desistir. Mas o Luigi me encontrou e me salvou. Depois o meu pai melhorou e eu me reergui. A imagem no espelho não era nítida, porém foi suficiente para eu enxergar os traços da mulher que me tornei. Eu sou o estereótipo que consideram bonito. Tenho um metro e setenta e cinco; sou magra; meus cabelos pretos são lisos e o comprimento é na altura da bunda, gosto deles longos estilo Rapunzel; os meus olhos azuis completam o perfil que consideram perfeito. Muitos dizem que ter uma boa aparência torna a vida mais fácil, entretanto a minha realidade não condiz com essa informação, as coisas sempre foram muito difíceis para mim, tanto que minha mãe me abandonou e levou a minha irmã. Minha vida é tão difícil que já tiveram momentos de faltar comida na mesa e os remédios para os tratamentos, meu e do meu pai. É complicado até sorrir às vezes e quando ficava muito crítico, eu me pegava pensando: como a minha irmã vivia, como seria a vida dela? É certo que é mais fácil que a minha. *** Segunda-feira, mais uma semana começando e eu aqui, tentando administrar trabalho e cursinho para prestar o vestibular. Agora quero fazer serviço social para trabalhar no Cras do município. Prendi os cabelos de qualquer jeito e saí sem olhar uma última vez no espelho, já estava atrasada para o trabalho no mercadinho. Fui dormir de madrugada porque tive que terminar um trabalho para postar no grupo do professor hoje às oito horas. — Você tem certeza que vai conseguir conciliar tudo, Bela? Olha pra você está só o bagaço — disse Ana, enquanto arrumava meu cabelo bagunçado. — Eu tenho , claro que tenho! Eu preciso dar conta de tudo, Ana, eu não posso perder o emprego e preciso passar na prova ou meu plano para entrar na faculdade no próximo semestre vai por água abaixo — respondi, abaixando a cabeça e segurando o queixo com as duas mãos, meus cotovelos apoiados no balcão. — Sabe do que você precisa, Bela, precisa de diversão, essa rotina de casa, trabalho e estudo está acabando com você, o tio António concorda comigo. Hoje nós vamos sair um pouco, vamos numa festa que a mineradora vai fazer para comemorar o aniversário dela. Vai estar cheio de gatinhos — disse Ana, animada. — Eu não quero, você sabe que não gosto dessas coisas. E também não estou procurando nenhum gato — recusei. Ou ao menos tentei, Ana não aceitou o não como resposta. — Ah, você vai sim, já combinei tudo com o tio Antônio e ele me garantiu que hoje você iria sair conosco. Acabei rindo quando ela ameaçou ligar para o meu pai e contar que eu estava tentando recusar. No final eles me venceram e eu aceitei fazer o sacrifício. O restante do dia correu tudo tranquilo, o mercadinho, que era uma pequena mercearia que vendia produtos alimentícios e de limpeza, ficava no centro do vilarejo, não teve muito movimento então acabei adiantando algumas matérias que tinha para estudar. E para ser bem sincera, eu não estava nada animada para a tal festa de hoje à noite.