A mulher da parede
A mulher da parede
Por: Srta. Arthemis
A mulher da parede...

Os últimos raios solares despontavam no horizonte, lentamente, dando lugar a escuridão da noite que trazia consigo meus maiores temores. Respirei fundo enquanto minha mão empurrava a pesada porta de mogno, antiga e imponente como tudo naquela grande casa, e a vi abrindo com um rangido tão sombrio que arrepiou todos os pelos dos meus braços, aquele lugar era naturalmente assustador devido ao clima pesado em volta dele.

Tranquei a porta, acendi as luzes florescentes, e caminhei lentamente pelos corredores que rangiam a cada passo incerto sobre o piso de madeira polida, a casa estava silenciosa, zombando dos meus medos, ergui meus olhos em direção a longa escadaria que de repente, parecia maior do que o habitual e suspirei fazendo meu caminho, tentando ao máximo não fazer barulho.

Quando finalmente entrei no meu quarto, girei nos calcanhares, trancando a porta atras de mim, tateei a parede procurando pelo interruptor enquanto observava o canto próximo ao guarda-roupas sob a penumbra e como esperado, ela estava ali, exatamente no mesmo lugar que me lembrava de ter a visto desde a primeira vez anos antes.

No canto esquerdo do quarto, sob a janela que não mais abria, sentada com a cabeça inclinada, usando a parede como algo para se apoiar e seus longos cabelos absurdamente negros escorrendo por seu corpo magro, coberto por uma camisola fantasmagoricamente branca assim como sua pele. Seus olhos tingidos de sangue, atentos a cada passo que eu dava dentro do cômodo, eram tão escuros quanto suas madeixas e pareciam presos em lembranças antigas.

Nos mudamos para aquele antigo casarão construído numa pequena ilha quando eu tinha acabado de completar treze anos, ainda cicatrizava os machucados nos joelhos, causados pelas incontáveis quedas enquanto aprendia a pedalar com meu pai e começava a me acostumar ao novo visual sem o aparelho odontológico. Meu pai recebera uma grande proposta para a construção de um shopping e como sua empreiteira estava quase falindo, acabamos por nos mudar, abandonando minha antiga escola e amigos, assim como o trabalho de recepcionista da minha mãe. A ilha de Ainu era realmente pequena, sendo difícil de encontrar em mapas comuns, mas que curiosamente, começou a receber uma quantidade considerável de turistas desde a década de cinquenta.

Éramos estranhos naquele novo lugar e obviamente, a adaptação levou algum tempo para acontecer, o ambiente era muito diferente e os planos do meu pai estavam sendo trabalhosos devido à dificuldade em achar mão de obra qualificada na ilha e a relutância dos antigos funcionários em mudar-se para “o meio do nada”, logo, a construção acabou por demorar muito mais do que meus pais esperavam, e minhas esperanças de retornar ao continente se esvaíram.

A dificuldade em fazer amigos me tornou uma criança solitária, que passava seus dias trancada em casa ou sentada na varando observando os jardins dos vizinhos enquanto questionava quais segredos estariam escondidos em seus porões. Foi nesse momento, que passei a buscar os motivos para aquele espectro estar apegado à nossa casa, e sendo uma criança, pouco sabia sobre espiritualidade, mas tinha noção de que algo estava muito errado para aquela moça não ter passado para o outro lado ainda.

Cinco longos anos haviam se passado, e nunca ouvi sua voz, ainda que vez ou outra, eu tomasse coragem de puxar assunto, tentando entende-la, mas nunca houve resposta. Era assustador estar tão mergulhada na ignorância, e não ter tranquilidade em momento nenhum na minha vida desde a mudança, era doloroso. Porém, hoje, sinceramente não sei se isso é bom ou ruim.

Depois de alguma relutância, inquieta com suas reações, finalmente criei coragem e contei aos meus pais sobre aquela estranha visão, fui olhada com tanta preocupação que até achei que estivesse recebendo algum tipo de credibilidade, mas duas semanas depois estava sendo levada a um psicólogo infantil com suspeitas de esquizofrenia e sendo transferida para uma psiquiatra que me daria prescrições de ansiolíticos. Quem chega à conclusão de que a filha tem esquizofrenia em apenas uma conversa?

Assim como meus pais, o psicólogo lançava-me olhares penosos como se acreditasse que eu realmente fosse louca, o que me fazia ter uma vontade absurda de gritar com todos eles, mas sendo uma criança, apenas chorava e balançava levemente no divã, o que acredito ter passado uma imagem catatônica de mim. No fim, as consultas não me ajudaram em nada naquele quesito pois, eu continuava vendo a mulher da parede, como inocentemente a apelidei, visto que não sabia seu nome.

O efeito dos medicamentos era brutal ao meu corpo ainda em formação, meu desenvolvimento estava estranho e meu humor horrível, então depois, de algum tempo, comecei a montar um plano para me desvincular daquela situação. Meu primeiro passo contra isso foi mentir, comecei a dizer que não a via mais e que acreditava que ela era apenas uma infantilidade criada pela minha mente solitária de filha única, frases que eu sabia ser o que eles queriam ouvir. E o motivo? Não aguentava mais ouvir o psicólogo dizer que eu a havia criado e que os medicamentos seriam modificados caso não houvesse avanços novamente, me fazendo temer ser internada em um hospício.

Hoje, aos 17 anos, posso dizer que me acostumei a sua presença e não tenho mais tanto medo como no início, podendo "conviver" com ela quase normalmente. Aos poucos, a adaptação me possibilitou ter uma vida normal, com alguns poucos amigos e paqueras que me deixavam feliz, e não precisava mais tomar os medicamentos que apenas me deixavam sonolenta. Contudo, a curiosidade e a constante presença da mulher da parede, fazia com que eu continuasse me questionando sobre seu estranho caso. E depois de muito pedir, minha mãe concordou em conversar com o corretor sobre o passado daquela casa.

A verdade era que pouco se sabia a respeito, e o homem inclusive não entendeu o porquê dos nossos questionamentos, mas depois de algum tempo, acabou por nos dizer o pouco que sabia sobre a casa, e sobre algumas fotos dos antigos moradores que encontrou. Ao vê-las, meus joelhos tremeram enfraquecidos, em uma das fotos de família, havia uma mulher extremamente parecida com a mulher da parede, não sabíamos como havia morrido ou seu nome, apenas que viveu ali como governanta e cuidadora dos filhos dos donos do casarão. Porém, eu não comentei sobre essa descoberta com ninguém, ainda mais porque aparentemente, eu já havia superado minha suposta infantilidade, logo, tocar no assunto, apenas faria com que minha mentira fosse descoberta.

Sai de meus devaneios ao acender a luz do teto, piscando algumas vezes antes de iluminar todo o quarto, voltei meus olhos novamente à mulher da parede e notei que o canto estava vazio. Curiosamente, ela só aparecia no escuro da noite e para a minha infelicidade, só eu a via, como já era de se esperar. Começo a pensar que eu quem sou muito azarada e acabo atraindo esse tipo de coisa para a minha vida, e pior, para minha família.

Fui até o banheiro e tomei um banho longo, relaxando os músculos tensos por um dia longo de estudos e trabalho, sem contar o constante peso das energias daquela cidade. Deitei-me na cama, usando uma camisola confortável e fiquei um tempo mexendo no celular, respondendo as mensagens de alguns colegas de classe. Quando fui dormir, algumas horas depois, olhei para o interruptor, mas não tive coragem de apagar a luz pois, sabia que ela voltaria e naquela noite, eu estava especialmente assustada por causa dos relatos de assassinatos recentes na ilha.

Uma súbita vontade de rir me tomou ao perceber que estava comparando aqueles dois tipos de perigo, um fantasma não me machucaria, diferente de um assassino em série que inclusive, a polícia ainda não havia conseguido encontrar. E sendo uma garota em idade escolar, meus pais ficavam ainda mais ansiosos e superprotetores. Chequei novamente a janela, observando as ruas vazias, e voltei para a cama, alongando meus músculos que voltaram a ficar tensos, aquela claramente seria mais uma noite de insônia.

Deitei-me, abraçando os travesseiros que cheiravam a limpeza e tentei descansar, dormindo parte da noite com as luzes acesas, uma chuva fina caia sobre o telhado, praticamente me embalando em uma canção de ninar. Mas dormi pouco, acordando assustada algumas horas depois quando os relâmpagos causaram uma queda brusca de energia e tudo ficou na escuridão.

Sentei no colchão olhando ao redor com apreensão, evitando fitar o canto em que ela sempre estava sentada e procurei pelo celular, achando-o no criado-mudo ao lado da cama. A lanterna era quase inútil em meio a aquele breu, mas iluminava fracamente a penumbra do quarto, me dando uma ilusão de segurança.

De repente, uma espécie de respiração lentamente chamou a minha atenção, vinha do canto próximo a janela e eu sabia que aquele barulho estava sendo feito por ela. Era um som estranho que eu nunca havia ouvido, era parecido com o som feito pela traqueia quando o ar não consegue passar, um ruido que duvido ser possível de ser reproduzido por qualquer animal ou humano normal. 

 Respirei fundo, tomando coragem e voltei minha atenção à mulher da parede, sentindo uma súbita vontade de perguntar porque só eu a via, ou porque ela estava presa naquela casa como se a culpa da insônia e a queda de energia fosse dela. Ergui a lanterna com as mãos trêmulas e pude observar com cuidado sua silhueta, como nunca tive coragem de fazer antes, uma vez que, sempre que estávamos no mesmo cômodo, ainda sentia vontade de gritar ou chorar.

Seus olhos me seguiam em cada movimento que eu dava, arregalados e com grandes manchas vermelhas ao redor da íris. Uma de suas mãos pálidas repousava sobre o tecido branco, meus olhos recaíram sobre ela e notei que quase não havia unhas e a pele estava esfolada como se tivesse tentado cavar algo. De repente, percebi que sua boca estava firmemente fechada, como se tivesse sido costurada, mas não havia pontos ou sangue nela. O que me fez questionar se seria uma escolha sua em vida.

– Q-quem é você? Gaguejei em um sussurro, tomando coragem de me aproximar minimamente, me agachando a sua frente e nossos olhos se encontraram. – Porque está aqui?

– Porque só eu te vejo? Novamente ela não respondeu nada, me levantei e caminhei lentamente até me agachar diante dela. Tão próximas, pude observá-la mais nitidamente, seus olhos eram grandes e castanhos, não pretos como imaginei, sua boca estava pálida, mas parecia estar suja de um batom recém retirado.

Era o espectro de uma mulher que viveu naquele mesmo quarto em tempos remotos, numa olhada mais minuciosa dava para ver que era jovem e bonita, devia ter uns trinta anos quando morreu, e por estar vestida em uma camisola, me fazia supor que foi assassinada enquanto dormia. Porém, o que mais chamou a minha atenção eram as grandes marcas arroxeadas de dedos ao redor de seu pescoço e pulsos, me fazendo questionar quem havia a assassinado. 

O que fizera para receber tanto ódio?

Não havia registros de sua morte, o que me fazia pensar que provavelmente foi encoberta por pessoas muito poderosas que estavam envolvidas de alguma forma. E logo, lembrei novamente das manchetes no jornal matutino, falando sobre uma moça encontrada estrangulada no bosque próximo ao parque, e de forma inconsciente, acabei associando as duas.  

 – Você morava nessa casa? Perguntei, sentindo uma estranha compaixão daquela mulher que parecia ter sofrido muito antes de morrer, mas ela continuava em silêncio, apenas olhando-me. – Diga-me algo, por favor!

Senti o clima esfriar ao meu redor e um arrepio subiu por minha coluna novamente, ela continuava olhando-me, mas logo percebi que seus olhos arregalados pareciam estar fixos atrás de mim e aos poucos, sua expressão neutra deu lugar a um semblante de medo e sua boca abriu-se em um grito mudo, me fazendo questionar o que seria tão aterrorizante para assustar um espectro.

Virei lentamente, sentindo os músculos enrijecidos pelo medo e deparei-me com uma figura assustadora, sombria e gigantesca me fitando com um sorriso sádico. Um outro raio caiu, irrompendo pelo vidro da janela e iluminou o quarto, dando-me a visão perfeita de sua silhueta esguia e aparentemente masculina. Mesmo na escuridão, ainda podia ver seus olhos enegrecidos e os lábios contorcidos.

 – Então era aqui que você estava, minha querida!  

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