Maitê Moreli
Após uma noite horrível e mal dormida, quando finalmente consegui fechar os olhos, despertei assustada com a presença de Hunter — ele estava sentado à beira da minha cama, como se fosse o dono do lugar. Ergui-me num salto, ficando sentada de imediato, o olhar provavelmente assustado cravado nele. — O que você está fazendo aqui? Juro que tranquei a porta — balbuciei, ainda atônita. — Bom dia, Bela Adormecida! Agora vamos conversar... você e eu. — Eu tranquei a porta com chave! Como entrou assim, invadindo? Ele riu com desdém, debochado. — Invadir? Não, não. Aquele chaveiro que a Fanny te deu ontem tem uma cópia da chave do quarto da frente, o meu... ou melhor, o nosso quarto. Igual ao meu chaveiro — disse ele, tirando um molho de chaves do bolso e chacoalhando. — Também tem a chave deste quarto, onde você está dormindo... e onde eu posso querer dormir também. Não é assim que vivem os casados? Juntinhos o tempo todo. Engoli em seco. Tudo o que ele queria era me humilhar. Ele sabia, claro que sabia, que não se casou comigo de verdade. Só não entendi por que ainda não tinha chamado a polícia. Às vezes, penso que Edward pode estar certo... talvez ainda haja uma chance de ver minha mãe antes de enfrentar anos de prisão. Melhor desviar da ironia cruel de Hunter. — Preciso ir ao banheiro... aguarde um pouco. Já volto para essa conversa. — Claro. Enquanto isso, o café da manhã que pedi para nós, está subindo. — Obrigada... Como dizia minha falecida avó, eu estava entre a cruz e a espada. Tinha certeza de que Hunter Knoefel sabia que nosso casamento era uma farsa, mas enquanto ele fizesse esse jogo de gato e rato, eu tentaria manter minha liberdade o máximo que pudesse... minha mãe precisava de mim. No banheiro, além de respirar fundo e tentar controlar o desespero, tomei um banho rápido. Vesti uma camiseta simples e uma calça legging. Enquanto secava os cabelos com uma toalha, repassava mentalmente as mentiras que teria que despejar nos ouvidos daquele homem de olhos verdes. Quando saí do banheiro, encontrei uma mesa de café da manhã impecavelmente posta para dois. Havia suco, frutas, leite, ovos mexidos e pães típicos franceses. Também uma jarra elétrica, daquelas usadas para ferver água e preparar chá. Tudo muito bonito, quase convidativo, mas nada ali me enchia os olhos. Dentro de mim, só havia tristeza, preocupação... e medo. Medo do futuro. — Vamos, sente-se — disse ele, apontando para a cadeira à minha frente. O tom de sua voz era sempre autoritário, como se tudo fosse uma ordem. Obedeci, sentando-me com rigidez, aguardando que ele quebrasse o silêncio. — Quer que eu lhe sirva algo? Suco, chá? — Obrigada... estou sem fome. Só vou beber um pouco de água. — Como quiser — ele se serviu de suco de laranja e, com o garfo, começou a comer os ovos. — Então, Maitê... você é sempre tão calada assim? — Quase sempre — respondi, tentando não transparecer meu nervosismo. — Pelo visto, então, terei que tomar as rédeas desta conversa. Preciso entender muitas coisas... Dormi por mais de um ano e acordei com várias lacunas na cabeça, especialmente no que diz respeito a você. Vamos começar do início: como e onde nos conhecemos? Engoli em seco. Pisquei várias vezes antes de conseguir falar. A saliva desceu rasgando minha garganta. Mas eu tinha um propósito, minha mãe precisava de mim. Suspirei fundo e iniciei o espetáculo de mentiras. — Nos conhecemos em uma cafeteria na cidade de Guadalajara. — Me lembro de ter ido ao Knoefel Group Saúde em Guadalajara algumas vezes, mas não me recordo de nenhuma cafeteria. O que você fazia lá? Era cliente ou trabalhava? — Eu trabalhava. Era atendente. Uma tarde, você apareceu, foi simpático, deixou uma boa gorjeta... Conversamos bastante, até que levei uma bronca por dar atenção demais a um único cliente. Foi aí que você perguntou meu horário de saída... queria me encontrar depois. Enquanto eu despejava cada palavra, ele mantinha os olhos fixos em mim, nos meus olhos, especialmente. Como se tentasse escavar a verdade. — Então, eu entrei lá como cliente... e o que se vendia, além de café? — De bebidas, todo tipo de café, até refrigerante e milkshake de café. Também havia sanduíches, ovos mexidos... bem no estilo do seu país. — Interessante... e o que eu consumi? — Na verdade, não me lembro... já faz algum tempo. — Acho que vi essa sua boca bonita e esses olhos expressivos, um pouco assustados agora, mas ainda assim lindos, antes de entrar naquela cafeteria. Talvez tenha te seguido até lá. — Por que pensa isso? — perguntei, temendo a resposta. — Porque só isso explicaria minha entrada numa cafeteria. Eu detesto café. Até o cheiro me incomoda. Engoli em seco mais uma vez. Minha saliva parecia feita de arames. E só então percebi: sobre aquela bela mesa de café da manhã, não havia café. Nenhuma xícara, nenhum bule. Nada. Ele quebrou o silêncio com voz baixa, mas intensa: — Duas coisas me intrigam. Primeiro: você disse que nunca fizemos amor. Olho para você e fico pensando... como pude me casar com essa mulher e não me embriagar dela? A única explicação que me ocorre é que você não gostou do sexo... e, por isso, mentiu dizendo que nunca aconteceu. O ar parecia rarefeito. Eu tinha dificuldade de respirar, mas precisava manter a compostura. — Nosso casamento era verdadeiro apenas perante a lei. Você se casou comigo para me ajudar. Eu queria entrar nos Estados Unidos e essa foi a única forma. Depois, eu desisti e você voltou sozinho. — Hum... — ele tamborilou os dedos sobre os lábios. — Mas algo não encaixa. Você me escreveu cartas como se tivéssemos tido um relacionamento amoroso... Ele sacou o celular do bolso e me mostrou uma foto: estávamos nos beijando. Uma imagem cheia de intimidade. Maldita hora! Eu tinha certeza de que aquela foto fora manipulada.po Edward. — Nessa foto, parecemos apaixonados. — Hunter ainda usou de deboche. — Não disse que não tivemos relacionamento. Só que não transamos. Foi um namorico... poucas vezes. — Poucas? Quantas? — Uma ou duas... talvez um pouco mais. Não lembro direito. — Não lembra? Será que você também não perdeu a memória? Ele continuou deslizando fotos na tela, muitas fotos. De nós dois. Em diferentes lugares. Nos beijando. — Acho que foram mais do que duas vezes. Mas temos um grande problema: não me lembro do gosto da sua boca. E isso é quase um sacrilégio. Preciso lembrar. — Não precisa lembrar de nada. Apenas vamos nos divorciar e encerrar esse assunto. — O divórcio é uma opção, claro... mas há questões que não saem da minha cabeça. Outra coisa: você disse, na carta, que sua mãe estava extremamente doente. Mas não a trouxe com você. Se ela ficou no México em tratamento, por que não permaneceu ao lado dela? Mais uma mentira se formava na minha mente... — Assim que chegou em Guadalajara, seu irmão viu a situação da minha mãe. No mesmo instante, mandou que ela fosse trazida para cá. Ela já está sendo tratada num hospital local. — Edward me surpreendendo... Sempre achei meu irmão o sujeito mais egoísta da face da Terra. E olha só que atitude generosa. Ele sorri sem mostrar os dentes e passa a língua sobre os lábios. — E, falando nisso, vou terminar de secar meu cabelo e irei para o hospital, ficar com minha mãe. — Não. Você não vai. — Claro que vou. Minha mãe precisa de mim. Você não pode me manter presa aqui. — Posso. E você sabe que posso. — Você é um déspota prepotente! Minha mãe está doente, ela precisa de mim. E, por favor, trate logo do nosso divórcio. Levantei, indo em direção à porta para sair daquele quarto, mas ele veio atrás. Nossa discussão seguiu pelo corredor, no andar de cima da casa. — Maitê, você tem muita coisa para me explicar. Ainda não terminei essa conversa. — ele não levava a voz, mas tinha fúria em cada uma de suas palavras. — Pois eu já terminei! Não sou sua escrava para ficar à sua disposição. E muito menos você vai me manter presa. Eu quero, e vou,ver a minha mãe! Já me aproximava da escada quando ele me agarrou pelo braço, com firmeza, puxando meu corpo contra o dele. Uma de suas mãos apertava com força meu braço; a outra segurava meu queixo, forçando meu rosto para cima. Suas palavras escorriam rente à minha pele: — Você não sai desta casa até esclarecer tudo. E, se tentar... garanto que não passa do jardim. — Me solta! Está machucando meu braço! — implorei. — SOLTA ELA, HUNTER! A voz ressoou como um trovão. Era Edward. Não sei se me senti aliviada ou mais assustada. Só sabia que as coisas estavam prestes a sair completamente do controle.