Theo
Voltar para Ferranópolis era como vestir uma camisa apertada demais. Cada canto dessa cidade grita que eu sou o filho de Roberto Ferraz, o herdeiro que todos esperam que assuma o trono com gravata, postura e uma maldita pasta de couro. Mas tudo o que vejo quando cruzo o portão da mansão é a cela dourada onde cresci.
Eu preferia estar em qualquer outro lugar, até mesmo ouvindo meu professor de economia suíço tagarelar sobre mercados emergentes, do que cercado por gente que finge me amar porque carrego o sobrenome certo.
Mas então apareceu ela.
Clara Teixeira.
Na varanda, com os cabelos ondulados e soltos dançando na brisa e o olhar perdido como se quisesse desaparecer daquele universo. Ela parecia deslocada. Ingênua, até. Mas havia algo nela que me fez ficar. Talvez fosse os seus olhos verdes-azeitona, grandes e expressivos, com sobrancelhas arqueadas que dão um ar de seriedade. Ou o jeito como segurava o copo com as duas mãos, ou a forma desajeitada como tentava manter a compostura mesmo bêbada. Parecia... real. Um contraste gritante com tudo aquilo que transbordavam da festa.
Claro que brinquei. Testei os limites. Eu sempre testo. Só que ela respondeu. Não se curvou. E isso, por algum motivo, me irritou mais do que deveria.
“A nova vítima do velho.” Foi cruel, eu sei. Mas as palavras saíram antes que eu pensasse. Típico.
Ela não era o tipo de garota que costumo encontrar nas minhas festas. Não estava interessada em impressionar. Ou fingia bem. Seja como for, o olhar ferido dela me perseguiu o resto da noite, mesmo quando saí da varanda com aquele comentário idiota na ponta da língua.
Quando voltei pro salão, minha mãe me cercou em segundos. Ela tem esse talento natural de surgir sempre que estou prestes a escapar.
— Theo, amor, o prefeito quer falar com você — disse ela, sorrindo com os dentes todos. — E depois, seu pai espera seu discurso. Nada muito político, só algumas palavras bonitas sobre legado, essas bobagens.
— Eu não preparei nada, mãe — murmurei, pegando outro copo de uísque da bandeja de um garçom. Já era o quarto. Ou quinto.
— Improvise — ela sussurrou, os olhos apertando como quem avisa que aquilo não é um pedido. — Seja encantador. Como você sabe ser.
A verdade? Eu não queria discursar. Eu nem queria estar ali. E falei isso claramente para alguns amigos de farras que lá estavam. Todos filhos da elite da cidade.
Mas então vi meu pai, do outro lado do salão. Roberto Ferraz, imponente, com aquele olhar que faz qualquer um endireitar a postura. Quando nossos olhos se encontraram, ele fez um gesto quase imperceptível. Como se dissesse: "Seja um homem".
Então fui até o microfone.
Não lembro exatamente o que falei. Algo sobre honra, tradição e o futuro da empresa. Uma baboseira que faria qualquer investidor bater palmas. Fui aplaudido, claro. Ninguém ali ousaria não bater palmas para um Ferraz.
Mas o que mais me irritou naquela noite foi perceber, de relance, a figura de Clara ao fundo do salão. Ela estava parada, observando tudo com um olhar difícil de decifrar. Não havia admiração. Nem desdém. Apenas... silêncio. Como se estivesse vendo além do teatro.
E foi aí que soube: aquela garota era um problema.
E problemas sempre me atraem.
*****
Eu poderia muito bem continuar fingindo que voltei a Ferranópolis só por causa da empresa. Poderia alegar que estou aqui para ajudar meu pai com a transição da presidência, aprender os bastidores, conhecer os nomes dos engravatados que vivem babando ovo dele. Mas a verdade a qual eu não tenho a menor intenção de admitir em voz alta, é que desde aquela noite da festa, só uma imagem não sai da minha cabeça: Clara.
A novata. A protegida. A maldita garota que não me olhou como todos os outros. Não com admiração, medo ou interesse. Ela me olhou como se me visse. E isso me incomoda de um jeito que não sei explicar.
Entro na sede da Ferraz Holdings mais cedo do que o normal. Camisa dobrada nos antebraços, sem gravata, com o ar deliberadamente casual só para provocar meu pai. A recepcionista arregala os olhos como se tivesse visto um fantasma.
— Bom dia, senhor Theo! — ela diz, apressada, com aquele sorriso ensaiado que me dá náuseas.
— Relaxa, Marina. Não vim inspecionar nada… ainda — sorrio de canto, só para deixá-la nervosa. Funciona.
Sigo direto para o 11º andar. A sala do meu pai é no final do corredor, mas não é para lá que meus olhos vão. É para a antessala. Onde ela fica.
A porta da sala está entreaberta. E lá está Clara. Sentada, concentrada, digitando algo no computador. Cabelos presos de um jeito displicente, com algumas mechas escapando do coque. Uma blusa leve e discreta. Nada chamativo. Mas o suficiente para fazer meu olhar parar.
Ela não me vê chegar.
Aproximo-me silencioso, como um predador em seu habitat. Bato levemente na moldura da porta.
— Esperando alguém? — pergunto, com um sorriso torto.
Ela se assusta levemente, mas disfarça bem. Quando me olha, seus olhos verdes-azeitona parecem ainda mais vivos à luz da manhã.
— Só trabalhando, senhor Theo — ela responde, firme. Demais até. Como se tivesse ensaiado.
— Formal demais. Me faz parecer velho. Pode me chamar só de Theo.
— Prefiro manter a formalidade no ambiente de trabalho — rebate, voltando os olhos para a tela.
Mordo o lábio para conter o riso. Ela é teimosa.
— Ambiente de trabalho... interessante. Porque da última vez que nos vimos, você estava com um copo de espumante na mão, dizendo que odiava esse lugar.
Ela fica vermelha na hora. Bingo. Ela não disse isso, mas eu gosto de provocar reações intensas.
— Eu estava fora de mim naquela noite — rebate, mas a voz falha só um pouco. — Não costumo beber.
— Que pena — digo, encostando no batente da porta. — Estava... adorável fora de si.
Ela me olha como se quisesse jogar o mouse em mim. E por um segundo, eu até gostaria que ela fizesse isso.
— Posso ajudá-lo com algo? — ela pergunta, tentando manter a compostura.
— Pode. Pode me dizer por que não consegue olhar nos meus olhos por mais de cinco segundos.
Ela arregala os olhos. Conta mentalmente, com raiva. Um... dois... três... quatro… Desvia no quinto. Satisfeito, eu me afasto com um sorriso discreto. Maldito jogo perigoso. E eu adoro.
Mas antes que ela possa retrucar, a porta da sala do meu pai se abre com força.
— Theo, comigo agora. — A voz de Roberto é seca. — E Clara, assim que possível, preciso que envie os documentos da reunião com a Sales. Obrigado.
Clara concorda, aliviada, mas ao se levantar às pressas, tropeça no fio do carregador e esbarra direto em mim. Minhas mãos vão instintivamente para sua cintura, segurando-a firmemente. Ela arregala os olhos. Eu não me mexo.
— Vai tropeçar em mim sempre que quiser atenção? — murmurei, a voz rouca, com os olhos fixos nos dela.
Ela engole em seco, tenta se afastar, mas minhas mãos demoram um segundo a mais do que o necessário para soltá-la.
Um segundo que diz tudo.
E que não será o último.