As ruas desertas da cidade de Odessa ainda estavam sob a influência das brisas gélidas do final do inverno, que carregavam algumas folhas secas restantes do outono. As árvores, inclinadas sobre as casas, pareciam ecos de um mistério antigo que tentava vir à tona.
O céu noturno, de um azul-escuro profundo, estava salpicado com algumas nuvens, e poucas estrelas eram visíveis. No entanto, a lua crescente, com sua luz pálida, iluminava toda a cidade, trazendo consigo uma aura de renovação e o presságio de um novo ciclo, já que o equinócio de primavera se aproximava. A mansão da família Crane se destacava imponente em meio às outras casas da vizinhança. Sua construção antiga, de arquitetura gótica e vitoriana, possuía uma fachada de pedra escura, decorada com detalhes arquitetônicos que evocavam uma sensação de antiguidade e poder. As janelas altas e estreitas, iluminadas por uma luz amarelada e quente, aos poucos iam se apagando, trazendo consigo uma atmosfera menos convidativa. A única iluminação restante vinha da entrada principal, guardada por um portão de ferro forjado e muros altos de pedra lisa e escura, decorados com lanternas antigas que lançavam uma luz suave sobre o caminho que levava até a porta de madeira maciça, adornada com entalhes complexos. O jardim ao redor, vasto porém descuidado pelo rigoroso inverno, abrigava árvores de galhos retorcidos que se estendiam em direção ameaçadoras, como se tentassem alcançar os céus. À medida que as horas avançavam, trazendo o esplendor da noite, as sombras das árvores e dos postes de luz a gás se alongavam, envolvendo a mansão em um véu de escuridão enigmática. Dentro da mansão, reinava quase completo silêncio, exceto pelas suaves badaladas do antigo relógio na sala de estar, marcando nove horas da noite. Helen Crane sentia seu coração bater freneticamente em compasso com o relógio. A jovem caminhava pelo corredor do segundo andar, na ala dos aposentos, em direção ao quarto de sua mãe. Suas mãos tremiam, mas seu corpo permanecia rígido, como se estivesse congelando aos poucos. O simples vestido verde-claro mal se movia conforme ela andava, e seus pés descalços produziam passos mudos. Helen segurava uma vela em um castiçal de ferro preto, com a cera branca já quase pela metade. Seu cenho estava levemente franzido, e seu olhar tentava capturar cada detalhe do corredor obscurecido pela noite, mas pouco podia ser distinguido. Mesmo com a luz da vela, apenas alguns retratos de parentes nas paredes se destacavam, entre eles, o de seu pai, falecido há dois anos. Chegando à porta do quarto de sua mãe, Helen quase implorava para que ela tivesse esquecido de trancar. Ao girar a maçaneta gélida, todo seu corpo se arrepiou, mas a porta se abriu. O ambiente dentro era ainda mais escuro que o corredor. O quarto, espaçoso, estava decorado com móveis de mogno, um tapete de pêlos vermelho no centro, e uma janela fechada, coberta por uma cortina da mesma tonalidade. Tudo estava cuidadosamente organizado. Helen caminhou em passos leves até a penteadeira de madeira esculpida, com entalhes de roseiras, de sua mãe, onde repousava um pequeno baú de jóias, entalhado com galhos de árvores. A jovem o abriu sem dificuldades e encontrou o que procurava. Um suspiro escapou-lhe, e um sorriso formou-se em seus lábios finos e vermelhos. Diante dela, estava o objeto de seu fascínio: não uma jóia comum de ouro ou prata, esmeralda ou rubi, mas um colar que Helen havia visto pouquíssimas vezes. A última fora no funeral de sua avó, Honória Crane, há cinco anos. Nem no funeral de seu pai sua mãe o usara. O colar possuía um cordão preto e firme, com um coração humano de doze centímetros, feito de raízes e folhas de árvores, destacando-se em sua tonalidade marrom-escura, com alguns traços verdes. Quando Helen olhava para o colar seus olhos brilhavam em fascínio — Como ele foi feito e por qual motivo? Como a família o havia conseguido? Quais mistérios ele carregava? O que ele havia visto no decorrer dos anos que estava em posse da família Crane? Os olhos de Helen brilhavam enquanto observava o colar. Sua mente vagava desde o primeiro momento em que viu sua avó usá-lo, quando tinha pouco mais de quatro anos. Ela se imaginava usando o colar em eventos importantes da cidade, em bailes, com figurinos majestosos, e o toque especial da peça. O desejo de possuí-lo era intenso desde a primeira vez que o vira. Estendendo o braço para pegar o colar, Helen hesitou. Seu olhar recaiu sobre o objeto uma última vez. — Será que eu realmente deveria pegá-lo? Mamãe disse diversas vezes que é uma herança de família, que será minha no momento certo… — Pensativa, franziu levemente o cenho, respirou fundo e finalmente segurou o colar, colocando-o cuidadosamente em seu pescoço. De repente, o coração feito de raízes e folhas parecia pulsar, e os detalhes verdes começaram a irradiar uma luz esverdeada, fraca mas quente. Nesse instante, ela ouviu os galhos das árvores que cercavam a mansão baterem na janela fechada. Seu coração acelerou com o barulho, mas Helen pensou que fosse apenas a brisa noturna, que talvez estivesse mais forte. No entanto, as batidas ficaram mais intensas, e ela se dirigiu à janela. Ao puxar a cortina e olhar para a árvore à sua frente, Helen deu alguns passos para trás, suas mãos começaram a tremer, e os batimentos se tornaram frenéticos. Entre os galhos tortuosos, ela avistou uma figura de aparência humana, com olhos verde-claro cintilantes que a encaravam fixamente. Apavorada, fechou as cortinas rapidamente e se afastou da janela. Mas, ao se virar para sair do quarto, ouviu o som de vidro estilhaçando e sentiu a cortina bater freneticamente com o vento forte. Helen soltou um grito agudo e começou a correr, mas, neste momento, um dos galhos retorcidos agarrou suas pernas, puxando-a em direção aos cacos de vidro e à janela, onde a criatura continuava a encará-la, agora com uma expressão franzida e olhar vibrante tomado por uma súbita fúria. Conforme era arrastada em direção à janela, sentia o ardor dos cacos rasgando sua pele e o sangue escorria por onde ela passava. Desesperada, Helen gritava e tentava se agarrar aos móveis próximos, mas a força do galho era grande demais, um aroma forte de flores mortas e galhos podres invadiu o ambiente. Ela se debatia tentando se libertar, mas, ao alcançar a janela, a criatura se aproximou. Parecia uma mulher humana, mas com partes do corpo feitas de galhos e folhas, e uma longa cauda que se agitava freneticamente. A criatura fixou os olhos verdes em Helen, tentando decifrar quem era a jovem que havia capturado. Nesse momento, Helen sentiu seu corpo endurecer, como se estivesse se transformando em uma casca de árvore. Incapaz de gritar ou mover seus lábios, ela sentia o cheiro de galhos podres a deixar sua visão turva, e sua cabeça girava cada vez mais rápido. O ambiente ao seu redor se tornava cada vez mais desconexo, enquanto espirais de folhas rodavam em volta da criatura, até envolvê-la completamente, e a escuridão tomou conta de seus olhos. A pálida lua crescente se encontrava em seu auge no meio da noite quando um barulho de carro atravessa a tranquila rua em direção à mansão Crane, o carro era um Ford Modelo A, com tons de vermelho e preto. Ele parou na frente do portão, o motorista desceu e o abriu evitando fazer ruído, e logo voltou ao carro e o conduziu devagar até a entrada principal, e então a porta traseira abriu, e de lá saiu uma elegante mulher, usava um longo vestido vermelho carmesim profundo em estilo vitoriano clássico e sofisticado, com vários detalhes de rosas vermelhas bordadas em estilo de alta costura, usava luvas brancas até os cotovelos e um belíssimo casaco de pele de urso marrom, bem quente para se proteger do frio,e de um colar de pérolas que reluzia ao luar. Os olhos da mulher vagavam por todo local e seu pequeno nariz se arrebitou levemente, como se tivesse capturado um aroma diferente e incomum. Ela permitiu que sua visão vagasse por cada uma das janelas altas e estreitas da fachada da frente da mansão, as luzes estavam todas apagadas — Helen já deve estar dormindo. — pensou a mulher, mas algo em seu interior dizia que estava alguma coisa errada, o ar que pairava sob todo o ambiente estava diferente, seu olhar percorreu até as copas das árvores que cercavam a construção, o vento parecia estar mais lento e as nuvens do céu se dissiparam cada vez mais. Conforme o carro voltava pelo mesmo caminho, a estranha inquietação da noite caiu como um véu sob a casa. A mulher agarrou a maçaneta dourada da porta de madeira maciça e logo sentiu uma pontada no coração, como se uma adaga a tivesse perfurado rapidamente e logo fosse retirada, ela se encurvou levemente para frente quase perdendo o equilíbrio, e então abriu a porta. — Helen? — ela chamou com a voz alta porém trêmula. O interior da resistência estava envolto com uma misteriosa névoa verde, clara que vinha do segundo andar, e consigo um aroma forte de flores mortas e galhos podres, estavam deixando sua cabeça latejando, há várias décadas não sentia esse cheiro tão forte. — Helen? — ela chamou mais uma vez, conforme ia subindo a escadaria de madeira, que ficava à poucos metros da entrada principal, suas sapatilhas pretas reluzentes emitiam um leve ruído. A mulher segurava firme no corrimão de madeira escura, e sua mente vagava, ela se lembrava quando era bem jovem naquela clareira escura da floresta nos arredores de Odessa, era noite do equinócio de primavera, os cervos corriam ao seu redor e então a lua cheia brilhou fortemente. Ao chegar no final da escada ela tropeçou no último degrau, o que fez ela voltar a realidade interrompendo o devaneio. O cheiro se tornava cada vez mais insuportável e a névoa ficava mais espessa, a mulher mal conseguia enxergar um palmo a sua frente. Ela caminhava tropecendo em seus próprios pés conforme sentia pontadas cada vez mais fortes no coração, ela se inclinava para frente quase caindo, mas se apoiava nas paredes do corredor, quase derrubando os retratos dos familiares. Quando chegou ao final do corredor encontrou a porta do seu quarto levemente aberta — Helen querida, você está aí? — quando a empurrou viu uma cena do completo caos, seus móveis revirados, a janela quebrada e então viu que sua caixa de joias estava aberta, ela correu até a penteadeira, e como temia a encontrou vazia. — O colar... Helen... — Suas mãos começaram a tremer, e então ela olhou para os cacos de vidro, folhas mortas e as manchas de sangue no chão, os galhos das árvores estavam para dentro do quarto atravessando a janela. — A Huldra fugiu... — Sentiu mais uma pontada no coração e lágrimas quentes escorriam de seus olhos finos e azuis-escuro. — Helen, o que você fez... — A mulher falou com uma pontada de amargura em sua voz.O vento da manhã chegava suavemente, balançando as copas das árvores, enquanto os pássaros cantavam, anunciando um novo dia. Helen sentiu um leve calor pousar em seu rosto, em contraste com o solo úmido sobre o qual estava deitada, a terra e a grama molhadas pelo orvalho. A jovem abriu os olhos e, por um instante, ficou cega pela luz solar do início da manhã, mas logo seus olhos se adaptaram, permitindo-lhe observar o ambiente ao redor. Seu vestido verde-claro estava sujo de terra, folhas secas e grama, além de rasgado em algumas partes. O colar de raízes repousava sobre seu peito, pulsando suavemente em sincronia com seu próprio coração. Ao se mover, Helen começou a sentir uma leve ardência em seu corpo e percebeu que seus braços e pernas estavam cobertos de cortes cicatrizados e sangue seco, misturados com terra e algumas folhas. O ambiente ao seu redor estava sereno. Helen ainda podia escutar o canto dos pássaros e o movimento dos animais da floresta caminhando sobre a relva alta
A neblina se arrastava lentamente sobre as ruas de Odessa, envolta em um manto de umidade persistente que ainda se agarrava após o derretimento das últimas camadas de gelo. Era o fim do inverno, e a primavera parecia hesitar em assumir seu lugar. O sol, pálido e distante, mal conseguia romper as nuvens pesadas que cobriam os telhados inclinados e as chaminés fumegantes da cidade.O único som em evidência naquela manhã era o ronco suave de um carro passando pelas ruas tranquilas. Um elegante Bugatti Royale preto avançava lentamente, como se quisesse passar despercebido pela vizinhança. O motorista e o passageiro, ocultos pela penumbra, observavam cada detalhe ao seu redor, trocando comentários breves sobre o ambiente. As casas de arquitetura gótica, com seus telhados pontiagudos e janelas estreitas, erguiam-se silenciosas, com olhares curiosos dos moradores que se escondiam parcialmente atrás das cortinas pesadas, como se fossem os guardiões ocultos das ruas estreitas e sombrias.Após
Os raios suaves do sol penetravam a densa copa das árvores, iluminando a floresta em tons de verde vibrante. Animais passavam a poucos metros de Helen, mas, curiosamente, pareciam não perceber sua presença. Sentada encostada no alto carvalho, a menina observava o ambiente ao redor, tentando acalmar a mente agitada. O vento soprava suavemente entre as árvores e arbustos, levantando as folhas secas e levando-as para longe. Flores novas desabrochavam, e o verde tomava conta da paisagem, uma visão que contrastava com as ruas gélidas de Odessa, onde o inverno ainda se recusava a ceder espaço para a primavera.— Odessa... — Helen murmurou para si mesma. Ela estaria muito longe de casa? O colar de coração de raízes em seu pescoço ainda pulsava, em um ritmo que ecoava o seu próprio.Os pensamentos de Helen voltaram-se para a visão que a Huldra lhe havia mostrado. Ela se lembrava das histórias que sua avó, Honória, contava sobre Thelmira Crane. Thelmira, a primeira matriarca da família, tinha
A antiga floresta se aproximava, sua presença imponente crescendo no horizonte à medida que Graham guiava o carro pela estrada sinuosa. A informação dada por Louise indicava que o ladrão estaria escondido lá. Dentro do veículo, o silêncio entre ele e Genevieve era espesso, cortado apenas pelo som rítmico dos pneus sobre o asfalto.Genevieve começou a se encolher no banco, os braços se cruzando ao redor do corpo como se quisesse se proteger de um frio inexistente. O pingente de lebre em seu peito tremia levemente, refletindo sua pulsação acelerada.— Eve, está tudo bem? — perguntou Graham, desviando brevemente o olhar da estrada.Ela hesitou, balançando a cabeça em um gesto afirmativo, mas seus olhos continuaram fixos nas árvores à frente. Quando Graham estava prestes a insistir, Genevieve subitamente se virou para ele, e sua voz ecoou firme, guiada por algo além dela mesma.— Pare aqui! — A ordem soou com uma autoridade inesperada.Graham freou bruscamente, surpreso. Antes mesmo que o
Genevieve e Graham avançavam pela rua que levava à Mansão Crane. O céu noturno parecia oprimido por nuvens densas, e um silêncio inquietante pairava no ar, como se a própria natureza aguardava com expectativa o desenrolar dos eventos. Genevieve sentiu um arrepio correr pela espinha, seus instintos alertando que algo fundamental havia mudado. Ao longe, a mansão se erguia majestosa, mas algo em sua aura parecia diferente, menos opressiva, como se a escuridão antiga que envolvia a propriedade estivesse, aos poucos, se dissipando.— Estamos chegando. — disse Graham, com uma nota de ansiedade perceptível em sua voz. Genevieve apenas assentiu, o olhar fixo na estrada à frente, determinada a por fim ao ciclo de dor que atormentava a família Crane por gerações.Ao adentrarem o hall da mansão, foram recebidos pelo crepitar solitário da lareira na sala ao lado. A figura de Louise Crane — ou melhor, Thelmira Crane — estava de pé, apoiada em uma bengala, a luz do fogo desenhando sombras alongada
A lua cheia banhava a floresta com sua luz pálida, as sombras dançando entre as árvores antigas. Genevieve e Graham caminharam. — Não posso ir embora ainda, Graham. Tem algo que preciso fazer antes. — Genevieve disse. —Preciso saber para onde a Mãe dos Bosques levou Helen. — A voz suave, mas determinada. Ela caminhava com propósito, cada passo parecia sintonizado com o ritmo antigo da floresta.A tensão entre eles era quase palpável. O rosto de Graham, marcado pela preocupação, observava Genevieve, que exibia um semblante calmo, que contrastava com a inquietação de Graham.Genevieve sentiu a mesma brisa que os guiou até Helen antes. Carregando folhas e galhos, formando pequenos redemoinhos que dançavam entre as árvores. Em seu coração Genevieve sabia que era aquele lugar e o momento certo, ela parou no meio de algumas árvores e ergueu os braços, como se acolhesse o vento. — Mãe dos Bosques, venha até mim, eu clamo por tua atenção, Bela Dama das Florestas, Senhora das Árvores Ancestr