A neblina se arrastava lentamente sobre as ruas de Odessa, envolta em um manto de umidade persistente que ainda se agarrava após o derretimento das últimas camadas de gelo. Era o fim do inverno, e a primavera parecia hesitar em assumir seu lugar. O sol, pálido e distante, mal conseguia romper as nuvens pesadas que cobriam os telhados inclinados e as chaminés fumegantes da cidade.
O único som em evidência naquela manhã era o ronco suave de um carro passando pelas ruas tranquilas. Um elegante Bugatti Royale preto avançava lentamente, como se quisesse passar despercebido pela vizinhança. O motorista e o passageiro, ocultos pela penumbra, observavam cada detalhe ao seu redor, trocando comentários breves sobre o ambiente. As casas de arquitetura gótica, com seus telhados pontiagudos e janelas estreitas, erguiam-se silenciosas, com olhares curiosos dos moradores que se escondiam parcialmente atrás das cortinas pesadas, como se fossem os guardiões ocultos das ruas estreitas e sombrias. Após alguns minutos, o carro virou em uma rua com uma placa que dizia "Thelmira Crane". A rua, aparentemente deserta, parecia suspensa em um instante congelado, onde o tempo hesitava em avançar. As poucas árvores nuas, com galhos retorcidos e esfolados, estendiam-se como dedos ossudos em direção ao céu. As nuvens começavam a se dissipar, permitindo que raios de sol leves evaporassem o orvalho do asfalto. — Imagino que seja essa rua mesmo — comentou uma voz feminina vinda do carro. — Sinto uma energia estranha emanando deste lugar, como se algo antigo e poderoso estivesse tentando se libertar. — A mulher falava com uma hesitação quase melódica, como se temesse que mais alguém a escutasse além do homem ao seu lado. O carro parou ao lado de um poste e os dois saíram, observando a mansão da família Crane do outro lado da rua. Sua construção gótica vitoriana erguia-se imponente em relação às demais casas. A mulher, fascinada e inquieta, fixava o olhar na fachada de pedra escura, exalando antiguidade e poder. Através das janelas altas e estreitas, iluminadas, podiam-se ver sombras se movendo de um quarto a outro, provavelmente empregados da casa. Ao atravessarem a rua em direção à mansão, os muros altos de pedra, semelhantes a uma fortaleza, envolviam o terreno. Lanternas antigas lançavam uma luz amarelada e suave sobre o portão de ferro forjado, criando um aspecto convidativo, mas ao mesmo tempo ameaçador, com a mansão no final do caminho de paralelepípedos. O homem observava atentamente o jardim descuidado, tentando captar cada detalhe com seus olhos castanhos. Seu sobretudo verde balançava suavemente, assim como a aba de seu chapéu fedora e o vestido cinza da mulher, conforme a brisa matinal soprava. Ele lançou um olhar breve à mulher ao seu lado. Seu cabelo preto estava impecável, intocado pelo vento, e o colar de prata com um pingente de lebre lançava feixes de luz suaves conforme os raios do sol o atingiam. A expressão da mulher, ao observar as árvores e seus galhos retorcidos, refletia determinação e cautela, como se estivesse ouvindo algo além da brisa. Ele então colocou a mão grande sobre o ombro dela, e ela se virou para ele, seus olhos castanhos com uma expressão melancólica. — Eve, está tudo bem? — perguntou ele com ternura. — Sob o manto da primavera, o passado e o presente se entrelaçam como raízes antigas, buscando a essência da vida eterna. — murmurou a mulher, com uma voz melódica e trêmula. Então balançou a cabeça, como se despertasse de um transe, e olhou para ele com uma expressão que indicava que as palavras estavam prestes a sair, mas ficaram na garganta. — Graham? — Ela perguntou, apertando os olhos e focando nele como se o mundo ao redor tivesse desaparecido. — Aconteceu alguma coisa? Antes que Graham pudesse responder, a porta de madeira maciça se abriu, e um mordomo de estatura baixa, com marcas de expressão e cabelos grisalhos, os cumprimentou. — Bom dia, senhor e senhorita. A senhora Crane os aguarda em seu escritório. — Disse ele, com a voz rouca, fazendo um gesto para que entrassem. Genevieve e Graham o seguiram, e o mordomo fechou a porta com rapidez. — Por favor, sigam-me. O interior da mansão estava repleto de sons de passos e murmúrios vindos do andar superior. No centro do hall, uma escadaria majestosa de madeira maciça se enroscava em uma curva perfeita. A madeira escura, polida ao longo dos séculos, refletia a luz do candelabro de cristal no teto alto, cujas velas ainda estavam acesas apesar da luz do dia. O mordomo guiava os dois pelo hall, e Genevieve sentia uma inquietação crescente. Seu coração batia em compasso com um relógio antigo, cuja badalada era quase inaudível. Um aroma suave de raízes podres e flores mortas vinha do segundo andar. — As paredes são como as guardiãs de inúmeros segredos. — murmurou Genevieve, tão baixo que Graham não a ouviu. Ele estava absorto na visão das paredes adornadas com cabeças de animais, como cervos e alces, e emolduradas com quadros de eras passadas, com figuras severas que pareciam observá-los atentamente. Ao chegarem ao final do corredor, encontraram uma porta de ébano. O mordomo bateu suavemente três vezes. — Pode entrar. — A voz feminina áspera ecoou do outro lado. O homem abriu a porta, revelando uma sala quadrada. A parede esquerda era ocupada por uma estante de livros, enquanto a direita exibia um quadro com o mapa da cidade de Odessa, ao lado de um retrato que capturava uma figura enigmática e imponente. A mulher no retrato possuía um rosto angular e bem definido, com uma expressão séria e melancólica. Seus olhos cinza profundo quase prateado eram penetrantes, e sua pele pálida contrastava com o cabelo escuro e liso, caindo em uma linha reta. Ela usava um vestido verde clássico, com mangas longas e rendas, e um anel dourado com a letra "C" no dedo médio. Abaixo do retrato, duas poltronas de mogno e veludo verde escuro estavam dispostas, e no centro da sala havia um tapete de linho verde, adornado com flores de hibisco e folhas douradas. Uma grande escrivaninha de mogno dominava o espaço, com uma máquina de escrever preta e documentos organizados. À esquerda da mesa, havia uma caneta de tinteiro preta, e à direita, uma lâmpada vitoriana e um telefone preto antigo. Atrás da mesa, uma poltrona mais alta, semelhante às outras, tinha um elegante vitrô com vista para o jardim. O jardim mostrava um labirinto de cerca viva e árvores com galhos tortuosos e folhas recém-crescidas. O local era iluminado por um candelabro de cristal, idêntico ao do hall de entrada. Sentada na poltrona estava uma mulher que, apesar de sua expressão séria, compartilhava uma essência com a figura do retrato. Seus olhos azuis vibrantes, carregados de amargura, refletiam um oceano de segredos turbulentos. Seu vestido vitoriano azul destacava seus olhos e brincos dourados. Sua postura era de controle, e suas mãos finas repousavam delicadamente sobre a escrivaninha. Um aroma de flores mortas e raízes podres pairava no ar, e Genevieve sentia uma conexão intuitiva com os pensamentos ocultos da mulher. — Bom dia, devo me apresentar. Sou Louise Crane, a proprietária desta casa e a responsável por convocar seus serviços. — Louise se levantou brevemente e estendeu a mão para Graham, que parecia completamente absorvido pela presença imponente de Louise, como se estivesse em transe. Ele rapidamente recobrou a compostura e apertou a mão dela, seguido por Genevieve. — O prazer é nosso, Sra. Crane — disse Graham com firmeza. — Sou Graham Sullivan, o investigador particular que a senhora contratou, e esta é minha assistente pessoal, a senhorita Genevieve Hester. — Ao seu dispor. — Genevieve sorriu brevemente, recebendo apenas uma resposta severa de Louise, que então se sentou novamente. — Vamos direto ao ponto. — Louise olhou para eles com uma intensidade penetrante. — Como informei pelo telefone, um colar meu foi roubado há duas noites, e minha filha, Helen Crane, também desapareceu. — Ela fez uma pausa, respirando profundamente, com um ar de amargura evidente. — O crime ocorreu em meu quarto, onde o ladrão quebrou a janela e quase destruiu o local. As autoridades acreditam que o responsável ainda esteja na cidade, possivelmente escondido na floresta. — Louise inclinou-se para frente, a expressão endurecida. — Preciso que encontrem o colar e minha filha até hoje a noite. — Certamente, senhora. Faremos o possível para trazer sua filha e o colar de volta rapidamente. — Graham respondeu com firmeza, enquanto Genevieve observava em silêncio. — Podemos ver a cena do crime para coletar algumas informações? Genevieve notou a dor sutil na expressão de Louise, apesar de sua tentativa de disfarçar. Seus olhos, profundos e carregados de segredos, revelavam mais do que ela estava disposta a mostrar. — Não será possível. As autoridades já verificaram a área e o quarto está interditado. — Louise respondeu de forma ríspida. — Compreendo, Sra. Crane, mas gostaria de dar uma olhada pessoalmente. — insistiu Graham. — Não é necessário. Todas as informações essenciais foram fornecidas. — Louise respirou fundo. — Tragam o colar e minha filha de volta. Não me importam os métodos. Apenas façam o que eu pedi. — Ela cerrou os punhos e bateu na mesa, com uma pequena lágrima quase visível em seu rosto. — Depois eu lido com o sequestrador. — Desculpe, Sra. Crane, mas está se sentindo bem? — Genevieve perguntou cautelosamente, notando a agonia em Louise. — Estou perfeitamente bem, agradeço por perguntar. — Louise respondeu de forma ríspida. — Agora, por favor, saiam. — Ela chamou o mordomo, que estava de pé diante da porta. — Maurício, acompanhe-os até a saída. — Sim, senhora. — Maurício respondeu, indicando a saída. — Agradecemos por seu tempo, Sra. Crane. — Graham e Genevieve se despediram e foram guiados para fora. Assim que a porta se fechou, eles se entreolharam, compartilhando hipóteses silenciosas. — Boa sorte na busca pela senhorita Crane. — O mordomo desejou, antes de fechar a porta atrás deles. Graham e Genevieve se afastaram da mansão e se dirigiram para a lateral, onde homens trabalhavam empilhando troncos e galhos cortados. No segundo andar, dois homens trocavam os vidros das janelas. Evitando ser vistos, eles saíram da propriedade e entraram no carro. — O que achou da Sra. Crane? — Perguntou Graham enquanto ligava o carro. — Ela está tentando manter o controle da situação, mas está claramente atormentada. — Genevieve olhou para a mansão pelo vidro do carro. — Ela esconde algo grave. Não demorará para que seu segredo seja revelado. — Antes de entrarmos na mansão, você murmurou algo sobre "o manto da primavera, raízes do passado e essência da vida eterna". Lembra o que isso significa? — Graham perguntou, curioso. — Não me lembro exatamente, mas minha intuição diz que a floresta vai nos ajudar a entender. — Genevieve continuava a encarar a mansão. — Parece que há um significado maior por trás disso. — Vamos descobrir em breve. — Graham respondeu, enquanto dava partida no carro e se dirigiam para deixar a rua Thelmira Crane.Os raios suaves do sol penetravam a densa copa das árvores, iluminando a floresta em tons de verde vibrante. Animais passavam a poucos metros de Helen, mas, curiosamente, pareciam não perceber sua presença. Sentada encostada no alto carvalho, a menina observava o ambiente ao redor, tentando acalmar a mente agitada. O vento soprava suavemente entre as árvores e arbustos, levantando as folhas secas e levando-as para longe. Flores novas desabrochavam, e o verde tomava conta da paisagem, uma visão que contrastava com as ruas gélidas de Odessa, onde o inverno ainda se recusava a ceder espaço para a primavera.— Odessa... — Helen murmurou para si mesma. Ela estaria muito longe de casa? O colar de coração de raízes em seu pescoço ainda pulsava, em um ritmo que ecoava o seu próprio.Os pensamentos de Helen voltaram-se para a visão que a Huldra lhe havia mostrado. Ela se lembrava das histórias que sua avó, Honória, contava sobre Thelmira Crane. Thelmira, a primeira matriarca da família, tinha
A antiga floresta se aproximava, sua presença imponente crescendo no horizonte à medida que Graham guiava o carro pela estrada sinuosa. A informação dada por Louise indicava que o ladrão estaria escondido lá. Dentro do veículo, o silêncio entre ele e Genevieve era espesso, cortado apenas pelo som rítmico dos pneus sobre o asfalto.Genevieve começou a se encolher no banco, os braços se cruzando ao redor do corpo como se quisesse se proteger de um frio inexistente. O pingente de lebre em seu peito tremia levemente, refletindo sua pulsação acelerada.— Eve, está tudo bem? — perguntou Graham, desviando brevemente o olhar da estrada.Ela hesitou, balançando a cabeça em um gesto afirmativo, mas seus olhos continuaram fixos nas árvores à frente. Quando Graham estava prestes a insistir, Genevieve subitamente se virou para ele, e sua voz ecoou firme, guiada por algo além dela mesma.— Pare aqui! — A ordem soou com uma autoridade inesperada.Graham freou bruscamente, surpreso. Antes mesmo que o
Genevieve e Graham avançavam pela rua que levava à Mansão Crane. O céu noturno parecia oprimido por nuvens densas, e um silêncio inquietante pairava no ar, como se a própria natureza aguardava com expectativa o desenrolar dos eventos. Genevieve sentiu um arrepio correr pela espinha, seus instintos alertando que algo fundamental havia mudado. Ao longe, a mansão se erguia majestosa, mas algo em sua aura parecia diferente, menos opressiva, como se a escuridão antiga que envolvia a propriedade estivesse, aos poucos, se dissipando.— Estamos chegando. — disse Graham, com uma nota de ansiedade perceptível em sua voz. Genevieve apenas assentiu, o olhar fixo na estrada à frente, determinada a por fim ao ciclo de dor que atormentava a família Crane por gerações.Ao adentrarem o hall da mansão, foram recebidos pelo crepitar solitário da lareira na sala ao lado. A figura de Louise Crane — ou melhor, Thelmira Crane — estava de pé, apoiada em uma bengala, a luz do fogo desenhando sombras alongada
A lua cheia banhava a floresta com sua luz pálida, as sombras dançando entre as árvores antigas. Genevieve e Graham caminharam. — Não posso ir embora ainda, Graham. Tem algo que preciso fazer antes. — Genevieve disse. —Preciso saber para onde a Mãe dos Bosques levou Helen. — A voz suave, mas determinada. Ela caminhava com propósito, cada passo parecia sintonizado com o ritmo antigo da floresta.A tensão entre eles era quase palpável. O rosto de Graham, marcado pela preocupação, observava Genevieve, que exibia um semblante calmo, que contrastava com a inquietação de Graham.Genevieve sentiu a mesma brisa que os guiou até Helen antes. Carregando folhas e galhos, formando pequenos redemoinhos que dançavam entre as árvores. Em seu coração Genevieve sabia que era aquele lugar e o momento certo, ela parou no meio de algumas árvores e ergueu os braços, como se acolhesse o vento. — Mãe dos Bosques, venha até mim, eu clamo por tua atenção, Bela Dama das Florestas, Senhora das Árvores Ancestr
As ruas desertas da cidade de Odessa ainda estavam sob a influência das brisas gélidas do final do inverno, que carregavam algumas folhas secas restantes do outono. As árvores, inclinadas sobre as casas, pareciam ecos de um mistério antigo que tentava vir à tona. O céu noturno, de um azul-escuro profundo, estava salpicado com algumas nuvens, e poucas estrelas eram visíveis. No entanto, a lua crescente, com sua luz pálida, iluminava toda a cidade, trazendo consigo uma aura de renovação e o presságio de um novo ciclo, já que o equinócio de primavera se aproximava. A mansão da família Crane se destacava imponente em meio às outras casas da vizinhança. Sua construção antiga, de arquitetura gótica e vitoriana, possuía uma fachada de pedra escura, decorada com detalhes arquitetônicos que evocavam uma sensação de antiguidade e poder. As janelas altas e estreitas, iluminadas por uma luz amarelada e quente, aos poucos iam se apagando, trazendo consigo uma atmosfera menos convidativa. A únic
O vento da manhã chegava suavemente, balançando as copas das árvores, enquanto os pássaros cantavam, anunciando um novo dia. Helen sentiu um leve calor pousar em seu rosto, em contraste com o solo úmido sobre o qual estava deitada, a terra e a grama molhadas pelo orvalho. A jovem abriu os olhos e, por um instante, ficou cega pela luz solar do início da manhã, mas logo seus olhos se adaptaram, permitindo-lhe observar o ambiente ao redor. Seu vestido verde-claro estava sujo de terra, folhas secas e grama, além de rasgado em algumas partes. O colar de raízes repousava sobre seu peito, pulsando suavemente em sincronia com seu próprio coração. Ao se mover, Helen começou a sentir uma leve ardência em seu corpo e percebeu que seus braços e pernas estavam cobertos de cortes cicatrizados e sangue seco, misturados com terra e algumas folhas. O ambiente ao seu redor estava sereno. Helen ainda podia escutar o canto dos pássaros e o movimento dos animais da floresta caminhando sobre a relva alta