Mundo de ficçãoIniciar sessão
Acordei com o despertador berrando no criado-mudo improvisado que eu mesma tinha montado com duas caixas empilhadas. Por um segundo, não sabia se era manhã, tarde ou noite. A claridade fraca entrando pela cortina remendada dizia que sim, já era dia. Mas a sensação no peito dizia outra coisa: que eu estava atrasada.
Sempre.
Antes mesmo de me levantar, estiquei a mão para o colchão fino no chão, buscando o corpo pequeno que eu precisava ver todos os dias antes de sair. Meus dedos tocaram o braço de Caio, encolhido debaixo do cobertor com estampa de super-herói. O cabelo dele, preto e bagunçado, caía pela testa, e a respiração pesada fazia o cobertor subir e descer devagar.
Esse menino tinha só oito anos, mas já carregava uma parte da vida que não deveria ser dele.
E eu carregava a culpa de sempre deixá-lo ali, sozinho, para trabalhar.
Me forcei a levantar do colchão. O chão gelado fez meus pés reclamarem, mas eu não tinha tempo para frescura. Passei pela cozinha minúscula: armário torto, geladeira velha, paredes descascando, o bilhete da conta de luz pregado com fita. A data de vencimento já tinha passado. De novo. Era como se as contas nunca tivessem medo de mim.
Abri a geladeira e encontrei o que já imaginava: quase nada. Um ovo, um restinho de leite e um pote com feijão de ontem. Respirei fundo, fiz uma decisão rápida e lógica. Usei o ovo e o leite. O feijão ficaria para Caio.
Preparei algo rápido, sem gosto, mas suficiente para enganar meu estômago até o meio da manhã. Enquanto o cheiro leve invadia o ambiente, olhei para o relógio velho na parede.
Eu estava atrasada.
Bebi metade do leite direto do copo, prendi meu cabelo loiro em um coque alto, vesti a calça jeans surrada, uma camiseta branca simples e o tênis que já tinha visto dias melhores. Era o uniforme do meu cotidiano. O uniforme da sobrevivência.
Voltei para o colchão e toquei o ombro de Caio com carinho.
— Caio, eu já vou. Tem pão na mesa e esquentei o leite. Não esquece do remédio depois de comer.
Ele abriu um olho só, ainda pesado de sono, e murmurou algo que soava como uma mistura de reclamação e carinho.
— Tá…
Sorri fraco.
— Qualquer coisa, me liga.
Ele virou para o outro lado, enfiou metade do rosto no travesseiro e puxou o cobertor com força. Aquele jeito típico de criança tentando se fazer de forte. E eu deixava, porque era o que restava para os dois.
Fechei a porta devagar e respirei fundo assim que o corredor apertado do prédio me engoliu. O cheiro de café forte, cigarro e produto de limpeza me recebeu como um bom dia mal-humorado.
O céu estava cinza. Quase branco. Pesado. Como se fosse desabar a qualquer momento.
Combinação perfeita com o meu humor.Enquanto descia as escadas três degraus por vez, minha mente corria mais rápido que meu corpo. Pensava no trabalho na creche, na coordenadora sempre com expressão de julgamento, nas mães apressadas e exigentes, nas crianças chorando, no salário curto, nos boletos longos, na minha mãe doente, no meu irmão que precisava mais de mim do que eu conseguia dar.
O ônibus se arrastou para chegar. Quando finalmente apareceu, velho, barulhento e lotado, eu já estava no limite. Entrei espremida, segurando na barra metálica, com o cheiro de perfume doce demais misturado ao de suor e pelo de casaco me sufocando.
Desci duas paradas antes porque o trânsito estava parado e eu não podia atrasar ainda mais. Corri o resto do caminho com a sensação de que o destino me puxava para trás pelo colarinho da camiseta.
Quando dobrei a esquina da creche, algumas mães já estavam na porta, com seus ternos impecáveis e saltos alinhados, olhando para mim como se eu fosse o atraso materializado.
— Bom dia — tentei dizer, mas apenas uma delas respondeu. As outras olharam para o relógio com um sutil ar de julgamento.
Entrei pelo portão desejando ser invisível.
O corredor estava cheio de mochilas espalhadas, casacos amontoados e crianças agitadas. O cheiro de giz de cera, álcool em gel e areia molhada preencheu o ar.
E então eu vi.
A coordenadora, Elisa, parada ao lado da porta da sala. Prancheta na mão. Óculos na ponta do nariz. Cara de problema.
— Chegou, finalmente.
Senti o golpe como se fosse físico.
— O ônibus atrasou — murmurei. — Mas já estou aqui.
— E não é a primeira vez — respondeu ela, anotando algo na prancheta. O som da caneta parecia tão afiado quanto as palavras dela.
Eu engoli qualquer resposta que meu corpo queria dar. Porque, apesar de tudo, ela estava certa. Não era a primeira vez.
E, naquela manhã, tudo parecia empilhar mais rápido do que eu conseguia segurar.
As crianças entraram, algumas chorando, outras rindo. Recebi a primeira com um sorriso quebrado, a segunda com um impulso automático de cuidado, a terceira com a paciência que eu tentava manter, mesmo quando minha alma queria deitar no chão e desistir.
— Tia Jade, você demorou — disse uma das meninas, agarrando minha cintura.
O nome saiu da boca dela como um carinho.
— Mas cheguei — respondi, girando-a no ar. — Você sentiu minha falta?
Ela assentiu com a cabeça e isso quase fez o dia doer menos.
A manhã correu como sempre: troquei fraldas, limpei mãos, separei brigas, cantei músicas infantis, contei histórias improvisadas com fantoches remendados. Em alguns momentos, quase esqueci do peso nos ombros.
Quase.
Porque a realidade sempre voltava.
No intervalo, sentei em um dos bancos minúsculos e chequei o celular. Nenhuma notícia de casa. Só uma nova mensagem do banco. Outro aviso. Outra cobrança.
Antes que eu pudesse guardar o celular, a voz de Elisa cortou o ar.
— Jade, na minha sala. Agora.
O mundo ficou menor.
Meu estômago despencou.
As pernas ficaram leves demais.
Atravessar o corredor até a sala dela pareceu interminável. Entrei. Fechei a porta.
Elisa estava sentada atrás da mesa, a prancheta à frente, um envelope ao lado, a expressão dura de quem já tinha tomado uma decisão.
E, naquele instante, eu soube.
Esse não seria só mais um problema.
Esse seria o problema.Aquele que mudaria tudo.
Aquele que abriria a porta para uma vida que eu ainda não imaginava.
E, sem saber, aquele era o dia em que eu começaria a andar na direção dele.
Do homem que eu ainda não conhecia.
Do homem que já tinha me visto.
E que já estava prestes a me querer.






