CAPÍTULO 2

Eu só queria embarcar. Só isso. Uma viagem tranquila, uma fila normal, um check-in sem surpresas. Mas claro que o universo decidiu que hoje era um ótimo dia para testar minha paciência.

A fila de embarque serpenteava pelo corredor, gente suspirando, malas de rodinha travando, crianças chorando, aquele aroma inconfundível de café caro e desespero. Eu estava ali, na posição perfeita entre “estou quase entrando no avião” e “se alguém encostar essa mochila nas minhas costas de novo, eu mordo”.

A funcionária do portão digitava com tanta força que o teclado parecia ter xingado a mãe dela. À minha frente, um homem reclamava ao telefone:

— Como assim venderam mais passagens do que assentos? Eu paguei por isso, Regina! Eu paguei!

Eu não pude evitar olhar. Superlotação? Overbooking? De novo? Ah, claro. Porque o caos me ama.

Chegou minha vez. Entreguei meu bilhete com o melhor sorriso possível, tentando atrair sorte. Mas a mulher atrás do balcão franziu a testa assim que o código apareceu na tela.

— Senhora… um instante, por favor.

Pronto. Nunca é bom quando eles dizem isso.

— Problema? — perguntei, já apertando os dedos no passaporte.

Ela respirou fundo, tipo “meu Deus, isso vai render”.

— O sistema… vendeu passagens demais para este voo. Parece que seu assento não está mais disponível.

Eu pisquei. Uma. Duas. Três vezes.

— Como assim “não está disponível”? Ele evaporou? Fugiu? Virou um Pokémon raro?

Ela abriu a boca, mas antes que pudesse responder, outra funcionária correu até o balcão, murmurando “eles estão ficando agitados, precisamos resolver isso agora”.

Eu olhei para trás — a fila fervia. Gente, reclamando, braços gesticulando, um homem já perguntando “cadê o gerente?”. Nada une tanto desconhecidos quanto uma injustiça coletiva.

A funcionária do meu bilhete forçou um sorriso profissional, mas seus olhos gritavam “eu quero férias”.

— Senhora, pode me acompanhar, por favor?

Ótimo. Ou eu seria realocada para outro voo… ou deportada para o limbo dos passageiros problemáticos. Peguei minha mochila e segui pelas costas do balcão, ouvindo a intensidade da discussão aumentar.

Elas me levaram até uma das mesas laterais. A nova funcionária — crachá dizendo Carla – Supervisora — assumiu o controle.

— Olha, eu vou ser direta — ela disse, inclinando-se um pouco. — Tivemos um erro no sistema. Venderam mais vagas do que as disponíveis no voo. Isso está acontecendo com alguns passageiros, inclusive você.

Respirei fundo. Até tentei manter a calma.

— Ok… e o que vocês pretendem fazer?

Carla olhou para a colega, depois para o corredor, onde um grupo começava a filmar com o celular.

— Resolver isso rápido — respondeu ela, já digitando com velocidade absurda. — Antes que isso vire matéria no TikTok e a empresa receba dez processos.

— Agradeço a sinceridade.

— Sem rodeios — ela continuou —, você tinha passagem econômica, certo?

Assenti.

— Bom… não temos mais lugar na econômica.

— Imagino — murmurei.

— Então vamos te oferecer um upgrade para a executiva.

Eu quase ri. Eu? Executiva? A pessoa que pagou tarifa promocional, levou lanche de casa e colecionou cupom para despachar mala?

— Sério? — perguntei, desconfiada.

— Com certeza. Assento maior, refeição completa, bebida liberada… — Ela suspirou, como se aquilo fosse um presente pessoal dela. — E… compensa toda a dor de cabeça que estamos dando.

Eu mordi o lábio, tentando parecer contida. Por dentro, eu estava fazendo uma dancinha ridícula.

— Certo… eu aceito.

— Ótimo — disse ela, imprimindo o novo cartão de embarque como quem resolve um incêndio. — Agora corre, o embarque prioritário está abrindo.

— Eu… tenho embarque prioritário agora?

— Tem tudo agora — respondeu com um meio sorriso cansado. — Aproveite. E por favor… — Ela inclinou a cabeça para o corredor. — Não diga muito alto que ganhou upgrade. Ou teremos uma rebelião.

Peguei o cartão e segui, lutando contra o impulso de correr e contra a vontade de cantar vitória na frente da fila revoltada.

Quando cheguei à entrada da cabine, o funcionário olhou meu bilhete e imediatamente abriu espaço:

— Seja bem-vinda, senhora. Executiva por aqui.

Meu ego deu uma esticada.

Entrei. O contraste foi quase doloroso de tão bonito. Poltronas grandes, gente calminha, luz ambiente azulada, aquele perfume de riqueza que parece envolver até o ar. Sentei-me no meu assento — que, honestamente, parecia um mini sofá — e tentei não parecer uma criança entrando na casa da Barbie.

A comissária sorriu, educadíssima.

— Aceita uma bebida de boas-vindas?

Uma bebida de boas-vindas. “Boas-vindas”. Eu estava vivendo um sonho financiado pelo erro alheio.

— Água, por favor — respondi, antes que meu cérebro falasse “champanhe” e eu derrubasse tudo no meu colo.

Enquanto ela se afastava, olhei pela janela. Lá fora, eu conseguia ver parte da fila que ainda discutia. A voz elevada de alguém escapava pelo vidro quando a porta se abria para passageiros atrasados. Um homem perguntava quem ia pagar a noite de hotel, outra senhora exigia voar no colo do piloto, se fosse preciso.

Por um segundo, senti uma pontada de culpa. Pequena. Minúscula. Um farelo de culpa. Mas sumiu rápido, substituída pelo conforto do assento reclinável.

A comissária voltou com minha água.

— Deseja ajuda com o assento? Ele tem algumas configurações.

Eu apertei um botão e o assento começou a descer como uma cama de hospital de luxo.

— Eu acho que dou conta — respondi, já brincando com os controles.

Ela sorriu e seguiu atendendo os outros passageiros.

Fechei os olhos por um momento, absorvendo o silêncio suave da cabine. Nenhuma mala batendo nas minhas pernas. Nenhum bebê gritando. Nenhum senhor discutindo com o W******p da família. Nada. Apenas… paz.

E tudo porque o sistema decidiu enlouquecer hoje.

Quando o comandante anunciou o fechamento das portas, eu soltei o ar devagar, finalmente relaxando. Não era esse o plano para minha manhã, mas definitivamente estava melhor do que o comum.

A aeronave começou a se mover. Eu dei um último olhar para o cartão de embarque brilhando no meu colo.

Executiva.

“Obrigada, caos”, pensei, ajeitando a manta que eu nem sabia que vinha junto.

Talvez o universo nem sempre esteja contra mim. Às vezes, ele só precisa causar uma confusão enorme antes de me dar um mimo inesperado.

E quer saber? Eu aceito.

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