Mundo ficciónIniciar sesiónPOV Yara
Eu estava correndo.
Não sabia de quem, nem para onde. Só sentia o frio cortante do vento batendo no meu rosto e o peso de uma angústia que não tinha nome. Árvores antigas se erguiam ao meu redor, altas como colunas de catedrais esquecidas. O chão era macio, coberto por folhas amareladas, e uma neblina dourada se espalhava pela floresta. Eu não estava com medo. Eu estava… procurando alguém. Então o vi — alto, imponente, parado à distância como se estivesse me esperando há séculos. Seu corpo era a sombra mais sólida da floresta. Eu reconheceria aquele porte entre milhões, embora nunca tivesse visto algo parecido. Havia algo nele que me chamava com uma força tão profunda que meu peito doeu. Mas eu não conseguia ver seu rosto. Era como tentar olhar através de um vidro coberto por névoa. Quanto mais eu forçava os olhos, mais o mundo ao redor ficava borrado, como se alguém não quisesse que eu enxergasse aquela parte. — Cassiopeia… — ele sussurrou. A voz dele me atingiu como um trovão. Meu coração errou uma batida. Cassio… o quê? Tentando me aproximar, estendi a mão. Ele deu um passo, e a névoa o envolveu como se estivesse sendo engolido. A luz mudou. O cheiro mudou. A floresta mudou. E, de repente, havia sangue. Muito sangue. — Não… — ele rugiu, uma dor tão crua que senti como se fosse minha. — Não me deixe. Não outra vez. Outra vez? Antes que eu pudesse compreender, a cena se contorceu, como vidro rachando. A voz dele ecoou numa última explosão de desesperança antes de tudo se apagar.Acordei ofegante. O quarto de hotel estava completamente escuro, exceto pelo contorno suave da cortina movida pelo ar-condicionado. Minha respiração vinha curta, o peito subindo e descendo rápido demais. Levei alguns segundos para entender onde estava. Roma? Não. Ainda não. Brasil. Porto Alegre. Hotel perto do aeroporto. Um sonho. Só um sonho sem sentido. Passei a mão no rosto, tentando tirar o resto da sensação estranha que ele deixara. Não sei por que aquela dor parecia tão real, tão minha, tão… conhecida. Como se eu tivesse perdido alguém que nunca existiu. — Cassiopeia — murmurei em voz baixa. — Que nome estranho. Nunca ouvi antes. Nunca conheci ninguém com esse nome. E definitivamente não era o meu. Olhei para o relógio digital na cabeceira.03:47 da manhã. Bom. Meu voo era às nove. De qualquer forma, eu precisava acordar cedo para o trâmite todo: check-out, mala, embarque, segurança, café, nervosismo… todo o pacote. Suspirei fundo e me sentei na cama, abraçando os joelhos por um instante. Minhas viagens sempre começavam assim: um misto de ansiedade, euforia e um pouco de melancolia. Desta vez, porém, havia algo mais. O sonho grudava na minha mente como tinta fresca. Aquela voz. Aquela sensação de… perda. Sacudi a cabeça. Bobeira. Era só ansiedade de viagem. Me levantei e fui direto para o banheiro. Acendi a luz amarela e suave, que me iluminou de cima com aquele tom quente. Olhei meu reflexo: cabelos loiros ligeiramente bagunçados, olhos esverdeados ainda pesados de sono e a expressão de alguém que dormiu menos do que precisava. — Força, Yara — murmurei para mim mesma. — Você está indo para a Itália. É para ser um recomeço. Não um drama. Tirei a camiseta larga que usava para dormir e liguei o chuveiro. A água morna escorrendo pelas costas foi exatamente o que eu precisava. Deixei que escorresse também pelo rosto, como se pudesse lavar embora aquela sensação estranha de que o sonho tinha deixado presa no meu peito. Depois de um banho rápido, me enrolei na toalha e voltei para o quarto, onde minha mala me esperava já aberta e praticamente pronta. Escolhi a roupa que sempre usava em viagens longas — confortável, mas alinhada: calça de alfaiataria bege, blusa branca de gola alta e um suéter fino no mesmo tom. Neutro, clássico, elegante. Sempre funcionava. E claro… Meu sobretudo branco. Estendi a mão para ele e acariciei o tecido grosso com carinho. Sempre o levava em viagens importantes. Nunca entendi por quê. Só… fazia sentido.“Superstição idiota”, pensei. Depois de me vestir, coloquei brincos simples, fiz uma maquiagem leve o suficiente para parecer acordada e prendi o cabelo num coque baixo. Ajustei tudo até que minha aparência dissesse o que eu queria transmitir:Estou bem. Estou no controle. Estou pronta. Mesmo que por dentro não estivesse tão certa disso. Fui até a mesa e verifiquei o essencial: ✔️ Passaporte ✔️ Documento brasileiro ✔️ Comprovante de matrícula do mestrado ✔️ Seguros ✔️ Cartões ✔️ Euro em espécie ✔️ Celular carregando ✔️ Carregador portátil ✔️ Tiquetes da companhia aérea ✔️ Carteira pequena ✔️ Minha bolsa de mão — Ok, tudo certo — falei em voz alta, para me convencer. Fechei o zíper da minha mala de 30 quilos — que eu jurava ter reduzido e claramente não tinha — e a deixei perto da porta. Sentei-me na beirada da cama por alguns segundos e respirei fundo. A Itália. Um mestrado em Artes. Dois anos. Um recomeço de verdade. Sem ex-namorado tóxico. Sem família palpitando. Sem expectativas de ninguém sobre minha vida. E sem amor. Deus sabia que eu já tinha desistido dessa parte. Peguei meu celular para checar a hora novamente. 04:21. Ainda tinha algum tempo antes de descer para o café do hotel, que abria às cinco. Vi meu reflexo na janela escura. Senti aquele peso estranho de novo, baixo no estômago, como se estivesse esquecendo algo importante. Ou como se o sonho quisesse me dizer algo que eu simplesmente não conseguia ouvir. — Para de viajar — murmurei para mim mesma. — Literalmente e figurativamente. O telefone vibrou com uma notificação da companhia aérea:Lembrete: Check-in confirmado. Portão C23. Respirei fundo, peguei a mala e coloquei o sobretudo sobre o braço. Minha voz carregava meu sotaque sulista familiar quando falei de novo, só para preencher o silêncio: — Vamos, Yara. A Itália te espera. Apaguei as luzes, fechei a porta do quarto e caminhei pelo corredor silencioso do hotel. Sem saber — nem desconfiar — que, naquela mesma manhã, eu estava prestes a sentar frente a frente com o homem do meu sonho. O homem cujo rosto eu nunca conseguia ver. E que, de alguma forma inexplicável, parecia já ter me perdido uma vez.






