Sage
Minha ansiedade aumentava a cada passo enquanto eu corria de volta pra casa. Eu tinha um hóspede importante... bom, importante pra mim. Ele estava ferido. Quando saí de manhã, ele ainda estava inconsciente, e passei o dia inteiro preocupada com ele. Só queria que ele estivesse bem.
Eu não sabia o nome dele, nem de onde vinha. Tudo o que eu realmente sabia era que ele precisava de mim. Ontem, enquanto eu trabalhava nos campos, ele apareceu cambaleando dentro do território da alcateia, coberto de sangue dos pés à cabeça, com vários ferimentos feios. Foi uma cena horrível e eu fiquei apavorada, mas antes que o grito escapasse da minha garganta, ele desabou aos meus pés.
Me envergonho de dizer que hesitei em ajudar ele. Achei que podia ser um lobo renegado. Abrigar um renegado é crime punido com morte na minha alcateia, e eu não sabia se devia arriscar. Mas, olhando mais de perto, percebi que ele usava roupas caras, e nem o sangue no rosto conseguia esconder como ele era bonito. O cheiro também era maravilhoso, como ar frio e limpo de inverno, nada parecido com o fedor de um renegado.
Tudo dentro de mim gritava pra ajudar ele. Se eu não fizesse nada, ele ia morrer por causa dos ferimentos, e eu não conseguiria viver com esse peso na consciência. Então, reunindo toda a força que eu tinha, arrastei ele até minha cabana e deitei ele na minha caminha. Limpei os machucados, enfaixei tudo com cuidado e passei a noite vigiando ele, trocando os panos frios quando a febre subia.
Detestei sair de casa hoje de manhã, mas se eu não aparecesse pra trabalhar, Daphne mandaria alguém atrás. Aí a gente ia ser descoberto com certeza e morto. Só esperava que ele tivesse resistido ao dia.
Quando finalmente cheguei em casa com meu pacotinho de comida, entrei correndo, ansiosa pra ver como ele estava. Ele ainda estava na caminha, mas agora estava sentado, com um pouco mais de cor no rosto. Considerei aquilo um bom sinal.
— Como você tá se sentindo? — Perguntei, torcendo pra que ele estivesse um pouco mais falante agora que parecia um pouco melhor.
Ele não respondeu. Apenas me encarou, dos pés à cabeça, como se estivesse me vendo pela primeira vez. Juro que vi os olhos cinzentos dele brilharem em âmbar por um instante, antes de ele soltar um rosnado feroz.
— Quem machucou você? — Rugiu ele.
— Tô bem. — Desconversei, sem coragem de contar sobre os abusos que sofria.
— Você não tá bem! Agora responde! — Disse ele entre dentes, com o maxilar travado de raiva.
— Por que importa? — Rebati. — Você ainda tá ferido demais pra fazer qualquer coisa, e também não tem nada que possa ser feito. Mas, se quer tanto saber, eu conto tudo depois que terminar de trocar seus curativos. Co-como você tá?
Ele me encarou por mais um momento, visivelmente contrariado com a troca. Mas por fim assentiu e respondeu:
— Ainda fraco, mas vivo. Por causa de você.
Os lábios dele se curvaram num meio sorriso, e senti meu rosto esquentar com a gratidão dele.
— Agradeço pelo risco que você correu ao me trazer pra sua casa. Tem certeza de que é seguro eu ficar aqui? Posso ir embora se quiser.
— Confia em mim. Se tem um lugar onde ninguém vai procurar por você, é aqui. Ninguém nunca vem atrás de mim. — Falei, num tom mais amargo do que queria.
Se ele percebeu, não comentou. Só assentiu outra vez e fez uma careta de dor com o movimento. Vi dali que alguns dos curativos precisavam ser trocados... o sangue já manchava o tecido da roupa.
Tentei a tirar a camisa dele, mas a mão dele se moveu rápido, agarrando a minha com uma força surpreendente pra alguém tão fraco.
— O que você tá fazendo?
— Tô tirando sua roupa. — Respondi, prática. — Não dá pra tratar você vestido. E não é como se eu já não tivesse visto você pelado antes. Como acha que cuidei de você ontem à noite? Aqueles curativos não apareceram sozinhos.
Ele resmungou algo ininteligível, mas soltou minha mão. Tomei aquilo como um "pode continuar" e ajudei ele a tirar o resto das roupas, menos a cueca. Precisei de toda a força de vontade que tinha pra não encarar.
Era óbvio que ele cuidava do próprio corpo. Cada centímetro dele exalava força e poder, os músculos se movendo sob a pele lindamente bronzeada. Tirando os ferimentos atuais, só algumas cicatrizes espalhadas quebravam a perfeição.
— Uh, eu só vou pegar o kit de primeiros socorros. Já volto. — Falei, me levantando e forçando os olhos a se desviarem dele.
Corri até o banheiro, com o peito subindo e descendo e o coração disparado.
— O que tá errado com você, Sage? E daí que ele é absurdamente lindo?! O homem tá ferido! — Repreendi eu mesma. — Além disso, você é uma ninguém sem loba. Quando ele melhorar, nem vai olhar duas vezes pra você. Não esquece disso!
Terminado o sermão mental, peguei o kit e voltei às pressas pro lado dele. Limpei os ferimentos e troquei os curativos o mais rápido que consegui. Ele me observou o tempo todo, os olhos cinza-aço fixos em mim, o maxilar firme, sem qualquer mudança de expressão.
— Você é boa nisso. — Falou sem emoção, mais como uma constatação do que um elogio.
— Tive bastante prática. — Dei de ombros. — Costumo me machucar bastante. E nunca tem ninguém por perto pra cuidar de mim.
Deixei de fora a parte em que, mesmo se tivesse, ninguém se daria ao trabalho de ajudar.
— Hm. — Resmungou, e eu cerrei os dentes. Ele podia pelo menos dizer "obrigado".
— Então... você se importa de me contar como acabou entrando no território da nossa alcateia?
— Fui atacado por renegados. Consegui fugir e tava procurando um lugar pra me esconder. — Respondeu do mesmo jeito, sem emoção nenhuma. — Vou embora assim que estiver curado. Sei que você tá arriscando muito deixando eu ficar aqui.
— Alguns desses ferimentos são sérios. Você vai precisar ser monitorado por causa de infecção. Acho que não vai a lugar nenhum tão cedo.
Ele me encarou por um momento, mas não discutiu como eu esperava. E por algum motivo que eu não sabia explicar, a ideia de ele ir embora me deixava triste. Talvez fosse porque eu sentia algo em comum com ele. Nem conseguia sentir a aura dele como nos outros lobos. Ou o lobo dele tava fraco demais ou talvez ele nem tivesse um. Igual a mim.
Me perdi nesses pensamentos enquanto cuidava dos curativos. Quando apliquei o último, levantei o olhar e encontrei ele me observando intensamente.
— Terminou? — Perguntou.
— Por agora, sim. — Respondi.
— Ótimo. Agora me conta quem machucou você! — Exigiu.