Sage
— Sage! Sage! Onde se meteu aquela órfãzinha sem loba? — Ouvi Daphne, a filha do Beta e autoproclamada futura Luna — pelo menos era assim que ela se via — gritar enquanto eu corria para dentro da casa da alcateia.
— Tô aqui! — Respondi, um pouco ofegante demais.
— Você tá atrasada! — Repreendeu, com aquela expressão que sempre prometia castigo rápido e cruel.
Daphne agarrou meus pulsos e os torceu com força, me puxando para mais perto.
— Sua imprestável de beco! Como ousa abusar da generosidade do seu Alfa?!
Senti a ardência na bochecha antes mesmo de perceber o tapa.
Meus olhos arderam, mas me recusei a chorar. Esfreguei o rosto dolorido, fingindo não ouvir as risadinhas das outras ômegas que se juntaram só pra assistir. Se fosse com elas, duvido que achariam graça. Mas, é claro, isso nunca vai acontecer. Não enquanto tiverem alguém como eu, uma ômega sem loba, rejeitada e invisível, pra servir de saco de pancada.
— Você vai subir naquela escada e polir o lustre de cristal até ele brilhar tanto que doa nos olhos! Vamos receber convidados importantes pro jantar, e eu não vou deixar nosso Alfa os receber numa casa que não esteja impecável! — Ordenou.
— M-mas eu... eu n-não... — Minha voz falhou, embargada de medo. — Eu t-tenho medo de altura...
— Vai sim, e agora! — Exigiu ela, sem um pingo de compaixão. — Sobe nessa escada antes que eu te dê um motivo de verdade pra ter medo!
Enfiei a cera e alguns panos nos bolsos do avental, que já ameaçavam arrebentar com o peso. "Vamos lá, Sage. Você consegue. Um monte de gente sobe em escadas e vive pra contar depois." pensei.
Subi às pressas, sem olhar pra baixo, antes que o medo me fizesse desistir.
Já estava quase no topo quando meu pé escorregou. Num instante, me vi despencando pra trás, braços batendo no ar, olhos bem fechados. Esperei sentir o impacto da cabeça contra o chão de madeira a qualquer segundo, morrer por pura falta de jeito.
Mas a dor que eu esperava nunca veio. Em vez disso, dois braços fortes me pegaram no ar, me puxando contra um peito quente e me segurando com cuidado. Era tão bom ali que, por um momento, quis ficar aninhada pra sempre.
— Calma aí, passarinha — Disse ele, com a voz grave, suave... e um toque de diversão. — Acho que você ainda não tá pronta pra voar.
— Cassius. — Sussurrei, olhando praquele rosto lindo e os olhos verdes e intensos do filho do Alfa. — M-me desculpa! Eu não sei por que sou tão desastrada. Obrigada por me segurar!
Tentei me soltar dos braços dele, e Cassius me colocou no chão com cuidado, mas não me deixou ir. Minhas mãos pareciam minúsculas nas dele, as palmas grandes envolvendo as minhas, os polegares acariciando de leve meus pulsos. Ele sorria pra mim, mas não era um sorriso simpático... lembrava mais o do lobo mau mostrando os dentes brilhando.
— Não precisa me agradecer, passarinha. — Disse ele, a voz profunda e suave, quase divertida. — Só fico feliz de estar aqui. Tenho certeza de que vamos achar alguma tarefa que mantenha seus dois pezinhos bem seguros no chão.
Ele levantou meu queixo com um toque e afastou uma mecha de cabelo do meu rosto.
— Sim, Alfa. — Concordei, ofegante, quando o sorriso dele se tornou selvagem, como se quisesse me devorar. Soltei minha mão da dele, sentindo um arrepio percorrer minhas costas.
— Boa menina. — As palavras vieram graves, vibrando no peito dele. Cassius me lançou um meio sorriso provocante e, num piscar de olhos, se afastou.
— Como ousa incomodar Cassius! — A voz de Daphne surgiu do nada, me arrancando do transe. — Ele tem coisas muito mais importantes pra fazer do que salvar ômegas inúteis e sem loba!
Ela me agarrou pelo braço, cravando as unhas na pele, e me arrastou até a cozinha. Assim que ficamos fora de vista, me jogou no chão e ficou me encarando de cima, com ódio nos olhos.
— Já que você não conseguiu cumprir nem a tarefa mais simples, agora vai se ajoelhar e esfregar o chão inteiro. Quero tudo brilhando, tão limpo que os convidados consigam ver o próprio reflexo! — Disse, com um sorriso cruel, jogando o cabelo preto por sobre o ombro antes de sair da cozinha.
Algumas horas depois, me afastei um pouco e olhei o resultado do trabalho, orgulhosa do que consegui fazer. O chão brilhava como um espelho, e o cheiro de pinho tomava o ar. Eu só esperava que Cassius ficasse orgulhoso quando visse.
Exausta, segui pelo corredor em busca de um merecido intervalo pra ir ao banheiro. Daphne e algumas amigas estavam amontoadas num canto, cochichando como sempre e ficaram em silêncio assim que passei. Fiquei imaginando o que aquela demônia tava aprontando agora.
Quando saí do banheiro, todas estavam me esperando. Uma delas agarrou meu cabelo e me jogou no chão, bem no meio do círculo que formavam. Elas começaram a me chutar e socar, uma por uma, até que eu mal conseguia respirar.
Me encolhi no chão, tentando me proteger o máximo possível dos golpes. Antes eu reagia, mas isso só piorava, então aprendi a ficar imóvel e aguentar calada, fazendo o possível pra não chorar. Quando todas terminaram, Daphne cuspiu em mim, o olhar cheio de ódio.
— Fique longe do Cassius, sua vadia! — Rosnou. — Acha que não percebi o teatrinho de hoje? Tente o seduzir de novo e eu mesma corto sua garganta, sua imunda!
Elas me deixaram ali, jogada no chão, sangrando e coberta de hematomas. Levei alguns minutos pra recuperar o fôlego e, com esforço, consegui me levantar. Quando voltei pra sala de jantar, o chão que eu tinha passado horas limpando estava completamente destruído. Pegadas sujas e gordurosas marcavam o caminho até o meio do salão, onde pareciam ter virado o lixo da cozinha
Suspirei, engolindo o impulso de caçar Daphne e acabar com ela. Mas isso só me renderia uma cela e ela continuaria livre. Trabalhei até tarde, consertando o estrago, e consegui fazer o chão brilhar de novo pouco antes de os convidados chegarem. Não ficou tão bonito quanto antes, mas teria que servir.
Morrendo de fome, fui até a cozinha embrulhar umas sobras de comida... o pagamento pelo meu dia de trabalho. Depois comecei a longa caminhada até o meu barraco, lá na beira da fronteira da alcateia.
Estava exausta, o corpo inteiro doía por causa da surra. Em qualquer outro dia, eu teria andado devagar, tentando esquecer a dor. Mas naquela noite, ignorei tudo e apressei o passo. Porque havia alguém me esperando, alguém que contava comigo pra cuidar dele. E eu não podia decepcionar ele.