Capítulo 4

Melissa

Chegar ao território do Alfa Kieran era como entrar em outro mundo.

A estrada que levava até lá era cheia de curvas, árvores enormes e um vento frio que cortava até a alma. Eu estava na parte de trás da caminhonete velha da nossa alcateia, espremida entre malas e outros lobos que, como eu, estavam indo pela primeira vez para a famosa Semana da Lua.

— Tô congelando. — resmungo, enfiando as mãos nas mangas do casaco.

— “Pelo menos você está viva.” — Nyx retruca na minha mente, bem-humorada. — “E indo em direção ao nosso destino. Olha que poético.”

Reviro os olhos, por dentro.

— Destino, né. Parece até dramática de novela.

Quando a caminhonete faz a última curva, eu finalmente vejo. O território do Alfa viúvo toma conta da paisagem.

As muralhas de pedra escura sobem altas, fortes, cercadas por torres com lobos de guarda vigiando lá do alto. A neblina desliza pelo chão como se tivesse vida própria, se enroscando nas pedras, nos pinheiros, nas casas mais afastadas.

Eu seguro o fôlego.

— Uau…

— “Eu sei.” — Nyx suspira. — “Eu também fiquei de boca aberta.”

Pessoas se movimentam perto do portão principal. De onde estou, consigo ver lobos em forma humana, usando roupas de combate, fazendo ronda com seriedade. Nada ali parece frágil. Nada parece pequeno.

Ao contrário de mim.

Quando a caminhonete para, o Alfa da nossa alcateia, Damon, desce primeiro. Ele é um homem grande, mas perto das muralhas, parece menor. Eu saio logo depois, abraçando o casaco ao corpo, sentindo o vento frio bater no rosto.

O cheiro do lugar é diferente. Cheiro de floresta, terra molhada, metal… e poder.

— “Esse território foi moldado pra guerra.” — Nyx comenta. — “Mas tem algo… não sei, Mel… parece casa. Estranha, mas casa.”

Um grupo de soldados se aproxima para conferir quem somos. Todos usam a mesma braçadeira com o símbolo da alcateia de Aislen: um lobo de olhos prateados.

Um deles olha na minha direção, analisa de cima a baixo e sorri de lado.

— Essa aí veio parar aqui por engano. — ele comenta com outro soldado, sem abaixar a voz. — Parece que vai sair voando se o vento soprar forte.

O amigo dele ri.

— Deve ser da cozinha, Ômega, alguma coisa assim. Cara de filhote perdido.

Sinto o rosto esquentar. Quero fingir que não ouvi. Mas ouvi. Baixo o olhar, tentando não deixar que isso me acerte tão fundo. Já estou acostumada a ser vista como pouca coisa. Mesmo assim, dói.

Nyx rosna na minha mente.

— “Eu arranco a cabeça deles, se você quiser.”

— Calma. Não vamos matar ninguém no primeiro dia.

Antes que eu consiga decidir se respondo ou não, uma voz masculina, suave e confiante, se intromete:

— Não liga. Lobos sem cérebro latem demais.

Levanto os olhos. Um rapaz se aproxima, um pouco mais velho do que eu, talvez uns vinte e cinco, com um sorriso fácil no rosto. Cabelo escuro, olhos castanhos claros, roupas simples, mas bem cuidadas. Ele passa pelos dois soldados, dá um tapa leve no ombro de um deles e completa:

— Vocês vão espantar as visitas com essa cara de cachorro com raiva.

Os soldados se calam na hora.

— Quem é você mesmo pra falar assim? — um deles resmunga.

O rapaz abre os braços, fazendo uma pequena reverência exagerada.

— Rafael. Alcateia Northbridge. Convidado. Educado. E com um ouvido ótimo, inclusive.

Ele sorri pra mim.

— Seja bem-vinda ao castelo de gelo do Alfa Kieran.

Apesar da vergonha, dou um sorriso curto.

— Obrigada.

— Sou só a verdade em pessoa. — ele responde, piscando. — Se eles te chamarem de pequena, você diz que é portátil e eficiente. Melhor que eles, que só ocupam espaço.

Os soldados bufam e se afastam, resmungando. Nyx não parece nem um pouco convencida.

— “Tem algo errado com ele.” — ela sussurra. — “Esse sorriso é bonito demais pra ser honesto.”

— Você não gosta de ninguém, Nyx.

— “Eu gosto. Mas esse aí… cheira a problema.”

Ignoro o comentário dela por um momento. Rafael volta a olhar para mim.

— Primeira vez aqui?

— Primeira vez fora da minha alcateia. — confesso.

— Vai ser divertido. Ou pelo menos… interessante. — Ele dá de ombros. — A Semana da Lua sempre revela alguma coisa que a gente não espera.

— Tipo o quê?

— Tipo quem você é de verdade. — ele diz, com um meio sorriso. — E quem você não pode evitar ser.

Não sei se gosto dessa frase. Não sei se entendo. Antes que eu pergunte mais, Damon me chama, impaciente:

— Melissa, venha.

— Estou indo. — digo.

— Nos vemos por aí. — Rafael acena com dois dedos na testa, ainda sorrindo.

Nyx suspira, desconfiada.

— “Ele é bonito. Mas eu continuo dizendo que tem algo errado.”

— Tudo bem. Eu prometo ficar de olho.

Seguimos com nossa alcateia para os alojamentos improvisados. Barracões grandes foram montados para receber as matilhas menores. Camas alinhadas, cobertores simples, o mínimo de conforto.

Deixo minha mochila em um canto e olho ao redor. Todo mundo parece ocupado demais falando sobre o Alfa Kieran.

— Dizem que ele é frio como pedra. E extremamente alto…algo entre 2,05 ou 2,10 de altura.

— Ouvi dizer que nunca mais sorriu depois que a Luna morreu.

— Ele recusou todas as candidatas.

Sinto um arrepio.

— “Alfa viúvo.” — Nyx comenta. — “Tem cheiro de dor.”

— Tem cheiro de problema.

Ao entardecer, somos chamados para uma reunião no pátio central. Subimos até uma espécie de grande praça de pedra. Lá de cima, dá pra ver quase todo o território… as torres, a floresta, as casas, os lobos patrulhando.

Então eu o vejo. Ele está de pé em uma varanda alta, num nível acima de todos nós. O Alfa. E daqui ele realmente parece ser alto, alto demais.

Mesmo sem enxergar o rosto direito por causa da distância e da sombra da construção, eu sinto.

Ele impõe presença sem dizer uma palavra. Ombros largos, postura reta, mãos apoiadas no parapeito. A aura dele chega até aqui embaixo, pesada, densa, impossível de ignorar.

Meu coração perde um compasso. Nyx fica muda por alguns segundos.

— “Mel…”

— Eu sei.

Alguns lobos ao meu redor abaixam a cabeça em respeito. Outros tentam espiar, curiosos. Eu não consigo tirar os olhos dele. É como olhar para um trovão preso em forma humana.

Uma voz sobe até nós. Não sei se é de um mensageiro ou do próprio Conselho, mas anuncia:

— Em nome do Alfa Kieran de Aislen, damos as boas-vindas às alcateias convidadas para a Semana da Lua. Este é um tempo de união antes da Bruma. Espera-se ordem, respeito e disciplina. Quem desobedecer, conhece o peso da lei deste território.

A frase é simples. O recado é claro. O peso da lei dele.

Sinto o olhar do Alfa varrer a multidão. Não tenho certeza se realmente ele chega até mim, mas meu corpo reage como se sim. Um arrepio sobe pela nuca. Meu peito aperta.

— “Você sentiu isso?” — Nyx pergunta, quase sem voz.

— Senti.

Não sei explicar. Não é paixão à primeira vista, nem conto de fadas. É… um choque. Como se alguma coisa muito antiga dentro de mim tivesse acordado.

A reunião é rápida. O Alfa não fala diretamente. Não desce. Apenas observa e depois se afasta da varanda, desaparecendo para dentro da fortaleza.

Fico olhando até o último segundo, até não ver mais nenhum sinal dele.

— “Ele é perigoso.” — Nyx murmura. — “Muito perigoso.”

— Você fala isso com medo ou… curiosidade?

— “Os dois.”

À noite, o território fica ainda mais bonito e assustador. A neblina dobra de espessura. As tochas nas muralhas criam sombras estranhas. O ar cheira a chuva que ainda não caiu.

Não consigo dormir.

As outras garotas do meu alojamento cochicham sobre guerreiros bonitos, bailes possíveis, alianças. Uma delas comenta:

— Dizem que o Alfa talvez escolha uma Luna essa semana.

Meu coração dispara por um motivo que não consigo entender. Viro para a parede. Nyx suspira.

— “Você quer ser escolhida.”

— Muito drama pra uma noite só, Nyx.

— “É verdade. Você quer alguém que fique. Lembra?”

Fecho os olhos com força. Não adianta. O peito ainda está apertado.

Levanto, calço as botas e saio, sem fazer barulho para não acordar ninguém. O ar lá fora é ainda mais frio, mas bem-vindo. Caminho sem rumo, seguindo o cheiro das árvores.

Logo estou perto da floresta.

A neblina aqui é mais densa, quase como um véu. As sombras das árvores são longas e retorcidas. Eu sei que não deveria me afastar sozinha, mas precisava respirar sem olhar para paredes.

— “Mel…” — Nyx diz, em alerta. — “Tem alguém aqui.”

Paro. Meu coração dispara.

Escuto o farfalhar de algo pesado se movendo entre as árvores. Um cheiro forte de lobo invade o ar. Não é de qualquer lobo.

É um cheiro de poder, terra, chuva, algo antigo. Uma figura surge na neblina.

Um lobo enorme. Muito maior do que qualquer lobo que já vi. Pelagem escura, quase negra, olhos brilhando como duas lâminas claras no meio da noite. Ele para a alguns metros de mim, observando em silêncio.

Eu prendo o fôlego. Nyx praticamente desmaia de emoção.

— “Ele é lindo.” — ela sussurra, quase chorando. — “Mel, você viu? OLHA O TAMANHO DESSE LOBO.”

Não me mexo. Ele também não.

Por um segundo, sinto como se o tempo tivesse travado. Eu e aquele lobo, cercados de neblina, olhando um para o outro como se algo nos conectasse por fios invisíveis.

Quero dizer alguma coisa, mas a voz não sai. Ele inclina a cabeça, como se quisesse memorizar meu cheiro.

O peito dói.

Então, tão silencioso quanto apareceu, ele se vira e desaparece entre as árvores, engolido pela neblina. Fico ali, parada, sem entender. Nyx respira fundo.

— “Mel…”

— Eu sei. — respondo, com a voz embargada.

— “Eu conheço esse cheiro. Eu…” — Ela hesita. — “Eu acho que ele é parte do que a gente viu nos sonhos.”

Volto ao alojamento com as pernas bambas, o coração acelerado e a sensação de que algo muito grande está em movimento, bem acima de mim.

Quando entro, algumas das garotas ainda estão acordadas, rindo baixo. Um mensageiro da fortaleza está no corredor, batendo de porta em porta.

— Aviso da casa principal. — ele diz, alto o suficiente para todas ouvirem. — Amanhã à noite, haverá um baile obrigatório no salão do Alfa. Todas as fêmeas devem comparecer.

Fico parada na porta, sem acreditar.

— Baile? — repito, baixo.

— Isso mesmo. — ele confirma. — Vista o melhor que tiver. A ordem é para todos virem.

— O melhor que eu tiver?

Olho para minha mochila num canto do quarto. Eu mal tenho roupas decentes pra trabalhar, muito menos um vestido de baile. Nyx, porém, não se abala.

— “A gente dá um jeito.” — ela diz, confiante. — “Nem que você vá com o coração pelado e o corpo de casaco. Se é obrigatório, a gente vai.”

Sento na cama, ainda ouvindo o mensageiro repetir o anúncio nos outros alojamentos. Baile no salão do Alfa. Com ele lá. Com aquele lobo na neblina em algum lugar deste território.

Eu não tenho vestido. Não tenho dinheir

o. Não tenho nada que me faça parecer parte deste mundo. Mas mesmo assim… mesmo assim… decido que vou.

Nem que seja com o mesmo casaco velho de sempre e a coragem tremendo por dentro. Porque algo em mim, e em Nyx, sabe. É lá que tudo começa.

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