Mundo de ficçãoIniciar sessãoMelissa
Acordo com o despertador tocando pela terceira vez. Não porque eu esteja com preguiça, mas porque minha cama é o único lugar do mundo onde sinto que ninguém vai me expulsar. Levo uns segundos para lembrar quem sou, onde moro e que hoje é mais um dia igual a todos os outros.
Meu nome é Melissa Hale. Tenho vinte e um anos. Sou loba… de sangue fraco, como muitos fazem questão de repetir.
Levanto devagar e sinto o frio atravessando as janelas mal vedadas da casa dos meus tios. A casa é velha, pequena e sempre cheirando a umidade, como se tivesse absorvido a tristeza de todo mundo que mora aqui.
— “Bom dia, Mel!” — Nyx, minha loba, desperta com animação. — “Hoje você acordou bonita, olha esse cabelo!”
Dou uma risada curta enquanto amarro o cabelo num coque rápido.
— Nyx, meu cabelo parece uma vassoura velha.
— “Mas é NOSSA vassoura velha. Eu gosto.”
Desço as escadas com cuidado para não acordar meus tios. Eles não gostam de barulho de manhã. Nem de tarde. Nem de noite. Na verdade, não gostam de barulho nenhum vindo de mim.
Pego um pedaço de pão duro na cozinha e deixo algumas moedas no pote da mesa, como sempre faço.
— Mel? — minha tia aparece na porta, amarrando o roupão velho. — Você não vai pagar parte da conta de luz esse mês?
Respiro fundo.
— Eu pago, tia. Só não recebi ainda.
— Você sempre diz isso. — Ela balança a cabeça, com aquele ar de quem está cansada de mim. — Não sei porque insistimos em manter você aqui. Não ajuda em nada.
— Eu trabalho. — digo, com a voz baixa. — Só não ganho muito.
Ela suspira, virando as costas.
— Só não esquece, você come aqui. Então contribui.
Nyx rosna na minha mente.
— “Eu posso morder ela? Só um pouquinho?”
— Não, Nyx. Você não morde ninguém. Só siga comigo. — sussurro para minha loba.
Saio de casa e sinto o ar gelado me envolver. Vivo na alcateia Willow Creek, uma das menores e mais pobres das montanhas. Somos subordinados ao território do Alfa Kieran, um homem que nunca vi de perto e que dizem ser frio como gelo e cruel como a névoa que cobre as florestas.
— “Você devia vê-lo, Mel. Imagino ele todo misterioso…”
— Nyx, eu nunca vou ver esse homem. Ele nem sabe que eu existo.
Minha loba suspira com drama:
— “Por enquanto.”
Trabalho numa lanchonete humana na cidade ao lado. Leva vinte minutos caminhando pelas trilhas e mais dez tomando cuidado para não ser atropelada pelos carros que passam rápido demais.
Quando chego, já estou cansada, mas não posso demonstrar. Sorrir para clientes humanos é a parte mais difícil do meu dia.
— Bom dia, Mel. — Sarah, minha colega, acena enquanto limpa uma mesa. — Dormiu bem?
— Nem sei o que é isso. — respondo, colocando o avental.
Passamos a manhã servindo cafés, sanduíches e ouvindo histórias aleatórias. Humanos adoram falar. Adoram reclamar também. Mas pelo menos eles não enxergam lobos.
Às vezes acho isso uma benção.
Quando o movimento diminui, encosto no balcão e olho pela janela. A praça da cidade fica iluminada pelo sol fraco da tarde. É o lugar onde casais costumam se sentar para conversar ou dividir um chocolate quente.
Vejo um deles agora, um rapaz segurando a mão da namorada, rindo de algo que ela diz. São humanos, mas estão juntos. Estão… completos.
Sinto o peito apertar.
— Eu só quero alguém que fique. — falo sem pensar.
Nyx suspira, com carinho.
— “E você vai ter. A Deusa não erra, Mel. Nosso par existe.”
— Mas onde? — sussurro de volta. — Aqui? Em outra alcateia? Em outro mundo? Porque eu realmente não sei onde procurar.
Nyx gargalha.
— “Você não precisa procurar. Ele encontra você.”
— Isso é fácil de dizer pra quem vive dentro de mim e não precisa lidar com rejeição.
— “Ei! Eu também sinto! Quando você chora, eu choro! Quando você quer bolo, eu quero bolo também!”
Rio, apesar de tudo.
— Você não presta.
— “Mas sou sua.”
A tarde passa devagar. À noite volto para casa pela trilha escura. A lua crescente ilumina o caminho. Sinto um arrepio subir pelas costas, uma mistura de frio, medo e… expectativa?
— “Tem algo no ar.” — Nyx sussurra, séria pela primeira vez. — “Algo se movendo nas montanhas.”
— O quê?
— “Não sei. Mas parece… importante.”
Quando chego em casa, meus tios já estão dormindo. Subo para o quarto e me jogo na cama sem trocar de roupa.
Estou exausta. Fecho os olhos. E sonho.
A floresta está coberta de neblina espessa. Pinheiros gigantes cercam tudo. A lua brilha alta, mas a luz dela parece… viva.
Ando em direção a uma clareira que não reconheço. O ar é pesado, mas não assusta. A névoa se movimenta como se respirasse.
De repente, vejo dois olhos brilhando.
Azuis. Intensos. Profundos de um jeito que quase me prende no lugar. Eu deveria correr. Mas não consigo.
Os olhos avançam na minha direção, até que uma voz grave, profunda e cheia de algo que não sei nomear sussurra:
— “Você é minha.”
Acordo arfando.
O quarto está escuro, mas o coração b**e tão rápido que parece que corri quilômetros dentro do sonho.
— Meu Deus… — sussurro, levando a mão ao peito.
Nyx desperta imediatamente.
— “Vi esses olhos antes…”
— Onde?
— “Nos sonhos antigos… Quando a Deusa falava com as Lunas escolhidas. Mel… acho que era um Alfa.”
— Um Alfa? — sussurro, incrédula. — Nyx, você está delirando.
— “Eu nunca deliro. Tá, às vezes deliro por chocolate. Mas isso era real.”
Suspiro.
— Deve ter sido só um sonho. Nada além disso.
— “Você ainda não entendeu. As Lunas sempre sonham com seus pares antes de encontrá-los. A Deusa mostra o caminho.”
Reviro os olhos.
— Eu não sou ninguém. Mal consigo pagar metade da luz da casa dos meus tios. Por que a Deusa escolheria alguém como eu pra ser Luna de qualquer Alfa?
Nyx fica calada por um segundo. Depois, fala com uma doçura que me desmonta:
— “Porque você merece ser amada.”
Fico quieta. Muito quieta. Não respondo.
No dia seguinte, quando chego à lanchonete, Sarah, que também é loba, me entrega um papel dobrado.
— Você viu isso? — ela pergunta, empolgada.
Abro o papel. É um anúncio oficial da região:
SEMANA DA LUA
Convocação para todas as alcateias menores
Território do Alfa Kieran
Celebração rara antes da Bruma
Engulo em seco.
— Isso é sério? — pergunto.
— Todo mundo está indo. Dizem que o Alfa está convocando todas as matilhas do sul.
Meu estômago vira.
Kieran.
O nome dele é pesado. Como o som da montanha quebrando. Nyx quase dá um pulo dentro da minha cabeça:
— “A GENTE VAI.”
— Não vamos. Não fomos convidadas. — digo.
— “É uma convocação geral! Ele nem precisa saber seu nome! Vamos, Mel! Sinto que… que é lá que tudo começa!”
Rio, nervosa.
— Nyx, você quer me enfiar no território do Alfa mais frio do continente.
— “Quero enfiar a gente no destino. E é lá.”
Sinto um arrepio percorrer minha coluna. As palavras dela… do sonho… do anúncio… tudo parece se encaixar como peças que eu nem sabia que estavam faltando.
Suspiro e guardo o papel.
— Tá bom. Vamos.
Nyx vibra.
— “É OFICIAL! A GENTE VAI!”
Olho para a praça pela janela. Para os casais. Para as pessoas que têm alguém. Talvez… seja minha hora. Ou talvez eu volte
pra casa mais quebrada do que fui.
Mas preciso tentar.
Naquela noite, antes de dormir, sinto o mesmo chamado do sonho, suave, quente, inevitável. E Nyx sussurra:
— “É lá que tudo começa.”







