Kyra
Às 18h45, terminei de me trocar. Simples. Discreta. Um vestido preto, liso, que não chamava atenção demais, mas ainda marcava minha cintura com certa elegância. Prendi o cabelo em um coque baixo, como se isso pudesse me fazer parecer mais profissional e menos… vulnerável. O relógio na parede marcava 18h58 quando saí do quarto e caminhei até a sala de jantar. A mesa já estava posta. Guardanapos perfeitamente dobrados. Talheres alinhados como num catálogo. O tipo de organização que não aceitava deslizes. Nem barulho. E o tipo de coisa que eu também não estava totalmente acostumada a lidar. Julie já estava sentada em uma das pontas. Vestia um vestido claro, os cabelos escovados com perfeição. Mas o olhar era o mesmo da manhã: distante. Observador. Silencioso. Liam apareceu dois minutos depois. Calmo, sem pressa. Como se o tempo estivesse ao seu favor e nós, à sua mercê. — Pontual de novo — disse, puxando a cadeira da cabeceira. — Já está se saindo melhor que as outras. — As outras? — perguntei antes de me censurar. O tom soou curioso demais. — Desculpe! — As outras candidatas — ele respondeu, enquanto servia água para Julie. — Nenhuma durou mais que uma semana aqui dentro. Não me pergunte o motivo, pois eu também queria saber. Sentei em silêncio, tentando esconder o nó que se formava na boca do estômago. Julie começou a mexer na comida sem muito apetite. Liam, por outro lado, cortava a carne com precisão cirúrgica, como se cada pedaço tivesse que ter o tamanho exato. — Como está a comida, Julie? — perguntei, tentando criar algum laço. Mas cai na real que parecia mais uma idiota. Ela olhou para mim, sem expressão, e respondeu num tom quase inaudível: — Igual a ontem. Não há diferença. Liam sorriu. Mas não era um sorriso doce. Era o tipo de sorriso de quem entende os jogos que as palavras silenciosas jogam. Afinal, ela era filha dele. Deve ter um pouco da sua personalidade nela. — Ela tem memória gustativa — explicou ele. — E pouca paciência para pequenas gentilezas. Respirei fundo e voltei ao meu prato. Sentia os olhos dele sobre mim. Me testando. Medindo cada gesto meu. Como se ali eu fosse uma peça no xadrez dele. — Você leu todas as instruções? — ele perguntou, sem desviar o olhar. — Duas vezes — respondi. — Como mandou. — E entendeu todas? Assenti. — Algumas pareciam mais… pessoais que profissionais. Mas sim, entendi todas perfeitamente, senhor. Ele apoiou os cotovelos na mesa. As mangas da camisa dobradas até os antebraços, mostrando a pele pálida e forte. A presença dele era… imensa. Como se tomasse todo o ar ao redor. — Tudo nessa casa é pessoal, Kyra. E se não entendeu isso ainda, vai entender com o tempo. A tensão correu pela minha espinha como um arrepio involuntário. Julie, curiosamente, não reagia. Apenas observava, com a colher parada no ar, como se estivesse assistindo a um filme daqueles que adultos falam coisas estranhas. — Você disse que minha função era cuidar da Julie — retruquei, com cautela. — E é. Mas eu cuido de quem cuida dela. — Ele se inclinou sutilmente. — Se você não estiver em equilíbrio… ela sente. E eu também. O ar parecia preso entre nós três. Como se ninguém pudesse soltar um suspiro sem desrespeitar a ordem invisível que Liam criava com as palavras. Ele terminou o jantar antes de todos. Limpou os lábios com o guardanapo e levantou-se com a elegância exata de quem nunca foi contrariado. — Kyra, venha comigo antes de recolher-se. Julie nem piscou. Levantei, confusa, mas o segui pelo corredor. Ele parou diante da porta branca do fundo — a mesma que não tinha sido aberta até então. — Aqui ficam as regras. Eu pensei que as tivesse lido. Ele destrancou a porta. Dentro, não havia papéis. Havia... itens. Pessoais demais. Coleiras. Algemas. Máscaras. Um pequeno sofá de couro escuro. Um armário com roupas de tecido fino e recortes ousados demais para serem usados como uniformes. — Isso... não faz parte do trabalho com a Julie — sussurrei, em choque. — Desculpe-me, senhor Blackthorne se quebrei alguma regra tão cedo. — Não ainda — ele respondeu, com a voz mais baixa, mais rouca. — Mas é parte do contrato se aceitar, é claro! Engoli em seco. — Eu nunca… aceitei isso. Desculpe-me a pergunta, mas agora entendo o porquê de todas elas irem embora. — Eu nunca propus isto a ninguém, senhorita. Mas, conheço pessoas pelo olhar e o seu me pareceu tentador demais para não perguntar. Ele fechou a porta devagar. Não me tocou. Não se aproximou demais. Mas estava ali, no limite entre o controle e a provocação. — Enfim... não leve isso para o lado pessoal. Agora entenda porque está é uma sala que ninguém entra. E então se foi. Deixando a porta trancada. E meu coração acelerado demais para o silêncio da casa que era assustadoramente silencioso. Depois que Liam desapareceu no corredor, meu corpo demorou a relaxar. Levei a mão ao peito. O coração ainda corria como se quisesse fugir antes de mim. O que era aquela sala? O que ele queria realmente de mim? E porque ele me mostrou tal coisa? Não me interessa. Nada disso me interessa. Respirei fundo e voltei à sala, esperando encontrar Julie no mesmo lugar — mas ela não estava. A mesa já tinha sido limpa por alguém que eu nem vi passar. Silêncio. De novo, aquele silêncio estranho dessa casa onde até os passos têm vergonha de ecoar. Caminhei pelo corredor e encontrei a porta do quarto de Julie entreaberta. Bati de leve e abrir um pouco. — Julie? — A chamei antes de entrar. — Entra — ela disse com a voz baixa, abafada pelo travesseiro. — Está aberta. Entrei devagar. Ela estava deitada de lado, abraçando um bichinho de pelúcia. Os olhos brilhavam na penumbra. Com apenas a luz fraca do abajur distante da cama. — Você está bem? Gosta de histórias? Ela assentiu com a cabeça. — Você pode me contar uma história? De verdade? A pergunta me pegou de surpresa. Não pela simplicidade, mas pela doçura inesperada em sua voz. — Posso, sim. Qual tipo de história você quer ouvir? Tem alguma preferida? Julie puxou o cobertor até o queixo. — Uma história boa. Não de monstros. Uma história onde alguém se sente segura. Não tenho nenhuma preferida, ninguém me conta histórias. Só meu pai. Segura. A palavra me cortou por dentro. A filha de um bilionário com todo o dinheiro do mundo pedindo segurança para uma babá como se fosse um tesouro impossível. — Tudo bem... — sentei na beira da cama — Vou te contar sobre uma menina chamada Lía, que vivia numa floresta onde tudo era silêncio. Ela ouvia os passarinhos, o vento, os galhos, mas ninguém falava com ela... Enquanto contava, vi os olhos de Julie ficarem mais pesados. Sua respiração se acalmava. Em algum ponto da história, ela esticou a mãozinha e segurou a minha. Ficamos assim. Eu sentada, ela dormindo. Até que senti meus próprios olhos pesarem. E, sem perceber, me deitei ao lado dela, ainda com a mão entrelaçada à sua. Liam O relógio já passava da meia-noite quando decidi checar se tudo estava em ordem. Era um hábito antigo. Um tipo de toque obsessivo disfarçado de responsabilidade. Silenciosamente, atravessei o corredor. A luz do quarto de Julie ainda estava acesa, fraca. Bati duas vezes, como sempre fazia. Nenhuma resposta. Abri a porta e parei diante à cena. Kyra dormia ao lado da minha filha, o corpo curvado em direção ao dela. As mãos entrelaçadas. A expressão... tranquila. Algo que Julie raramente exibia. Por um instante, algo apertou no meu peito. Aquilo... não fazia parte das regras. Nenhuma funcionária havia chegado tão perto. Nenhuma havia tocado Julie. Nenhuma havia sido autorizada. Mas ela... Ela fez sem pedir. E Julie deixou, sem ao menos questionar sobre ela. Fiquei ali, parado, por tempo demais. Observando. Tentando entender por que aquela imagem me perturbava mais do que deveria. Kyra está ultrapassando limites. Mas por que parece tão certo... tão inevitável? Fechei a porta devagar. Sem som. Sem reação. Sem quebrar o laço que, mesmo adormecido, começava a se formar entre minha filha e a doce babá dela.