Culpa e Controle

Adrian

Às vezes acho que passo mais tempo olhando para telas do que para gente.

Pelo menos as telas não mentem.

O escritório está quase no escuro, só a luz azul dos monitores cortando o ambiente. É ridículo, eu sei, mas aqui dentro eu me sinto… seguro. Ou o mais perto disso que consigo chegar. Nada muda sem eu ver. Nada some. Nada engana.

Eu reviso relatórios como quem tenta remendar um buraco que nunca fecha.

Movimentação da equipe.

Gravações da noite.

Alertas que não aconteceram.

Coisas que qualquer pessoa delegaria. Eu não.

Depois do acidente, confiar virou um luxo que eu não tenho mais.

Descobrir o que ela escondia… foi como cair de um prédio em câmera lenta. 

Pisco devagar, passando para a próxima gravação.

E então aparece uma notificação no canto da tela.

Candidata à vaga de babá. Registro de chegada na portaria.

14h52.

Meu maxilar trava.

Ótimo.

Eu odeio isso.

Odeio a ideia de alguém novo circulando pela minha casa,vendo de perto tudo que eu tento manter protegido.

Mas também sei que não tenho opção.

Aurora precisa de alguém.

Ela merece alguém.

E eu… não consigo estar presente o tempo todo, por mais que isso me engula por dentro.

Passei meses tentando dar conta sozinho, como se eu devesse pagar por tudo que não percebi antes. Mas a verdade é simples e humilhante: eu estou exausto.

E uma criança de quatro anos não pode depender de um homem que vive preso no próprio escritório.

Saio do escritório com a cabeça pesada. 

Paro na porta do quarto da minha filha.

Sempre paro. Sempre penso se deveria entrar ou se é melhor ficar do lado de fora, onde nada me desmonta.

Empurro devagar.

Ela está lá, encolhida no meio da cama, respirando daquele jeito suave que só crianças conseguem. E por um segundo… só um… eu quase me aproximo. Mas aí vejo o rosto dela direito, a curva do queixo, os cílios longos. E é como levar um golpe no estômago.

Ela é a cara da mãe.

E eu… eu não sei lidar com isso.

O acidente volta sem ser chamado. O barulho, o vidro, o que sobrou de mim depois. Eu passo anos tentando apagar isso e ainda assim a lembrança entra sem bater. Sempre entra.

E como se isso não bastasse, vem a outra parte. A que ninguém sabe. A que eu mesmo tentei empurrar pra longe.

Lucas.

O nome pesa como chumbo. O tipo de lembrança que arranca o ar do peito.

Não importa o quanto eu tente racionalizar, a verdade é simples: eu falhei com ela. Não fui o homem que ela precisava. Não fui calor. Não fui abrigo. Fui… menos.

E essa culpa não desgruda. Não afrouxa.

É por isso que Aurora precisa de alguém aqui. Alguém melhor do que eu. Alguém que dê o que eu não consigo dar sem sentir que estou sendo partido ao meio.

Fecho a porta com cuidado.

E sigo pelo corredor tentando, pela milésima vez, convencer a mim mesmo que estou fazendo o suficiente.

Mesmo sabendo que não estou.

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