Capítulo um - Um pequeno Anjo

           

Capítulo um - Um Pequeno Anjo

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“Está começando a parecer Natal

Logo os sinos começarão a tocar

E o que os faz tocar é o seu canto de Natal

Bem de dentro do seu coração”

(Música: It's Beginning To Look a Lot Like Christmas – Intérprete: Michael Bublé)

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            Algumas pessoas chamariam isso de covardia ou egoísmo, mas a verdade é que viver se tornara um fardo para mim desde o dia daquele maldito acidente.

            Saí de casa pela manhã, a pé, apenas com a roupa do corpo... sem bolsa, dinheiro ou documentos. Em cerca de quinze minutos de caminhada cheguei à extensa praça central da cidade, que era cortada por um importante rio da região. Fui até a ponte e sentei-me no parapeito, me dando ao luxo de respirar mais um pouco, pela última vez, antes de me jogar para a morte. Já preparava as mãos para o impulso, mas me contive ao escutar a voz baixa e infantil ao meu lado.

            — Moça, é perigoso ficar aí!

            Olhei para o lado, surpresa com a pequena figura que encontrei. Era uma menina de, sei lá... cinco ou seis anos, não mais do que isso. Usava uniforme escolar e puxava uma mochila de rodinhas. Os cabelos cacheados emolduravam o rostinho redondo de bochechas rosadas. Era tão bonitinha, que teria me feito sorrir em qualquer outro momento.

            Mas eu me sentia completamente incapaz disso.

            — O que disse? — indaguei, atordoada.

            Ela pareceu aflita ao repetir:

            — É perigoso ficar aí! Pode acabar caindo. O rio é muito fundo, sabia? Pode até se afogar!

            A intenção era exatamente essa. Mas, é claro, eu não diria aquilo para uma menina pequena. Por mais que estivesse a ponto de acabar com a minha vida, não seria cruel ao ponto de traumatizar uma criancinha.

            — Cadê a sua mãe? Você é muito pequena para estar aqui sozinha.

            — Eu não sozinha. com os meus amigos.

            Ela apontou para o parquinho da praça e, lá, avistei um grande grupo de crianças usando o mesmo uniforme. Tinha alguns da idade dela, outros, mais velhos. Provavelmente todos voltavam juntos do colégio, os maiores cuidando dos menores, algo que ainda não tinha se tornado raro no interior. Aquilo me lembrou as conversas que costumava ter com Marcelo, meu marido, sobre nossa vontade de criar nossos filhos em uma cidade pequena. Um sonho que nunca se realizou.

            — Por que não vai brincar com eles? — perguntei, querendo que aquela menina se afastasse. A presença dela ali me arrancava toda a coragem que tinha reunido para me matar. Não faria algo assim diante dos olhos de uma criança.

            — Porque se eu for, você vai ficar sozinha.

            — E daí?

            — Você parece triste. Pessoas tristes não devem ficar sozinhas.

            A resposta fez o meu peito arder e lágrimas rapidamente inundarem os meus olhos. Era uma frase tão simples, mas de uma sabedoria incrível para uma criança tão pequena.

            Eu realmente não suportava mais a solidão.

            Vencida, acabei descendo do parapeito, voltando para a segurança da ponte. A menina pareceu aliviada com isso.

            — Qual é o seu nome, moça? — Pela primeira vez, ela abriu um sorriso, e aquilo me trouxe um inesperado reconforto. Ela parecia um pequeno anjo.

            — Vanessa. E o seu?

            Ela abriu a boca para responder, mas a sua voz foi abafada pelo som de uma freada brusca, seguido do grito de espanto das crianças na praça. Voltei os olhos para lá e avistei, em meio a uma pequena aglomeração que começava a se formar, alguém caído na rua. O motorista que, ao que tudo indicava, havia cometido o atropelamento, disparou em seu carro, fugindo como um rato.

            Agindo por impulso, me juntei a aglomeração, avistando a vítima. Era uma moça que parecia ter em torno da minha idade – vinte e cinco anos, com uma barriga que me fez cogitar que estivesse grávida. Tive a confirmação dessa suspeita quando ela, em um lapso de consciência, levou as duas mãos à barriga, em uma atitude de proteção típica de uma gestante. Alguém já ligava para a ambulância, e eu continuei ali, olhando aquela mulher estirada no chão, pensando mil coisas ao mesmo tempo.

            Lembrei de quando, há quase um ano, eu vivi uma situação bem parecida com aquela. E desejei, com todas as minhas forças, que aquela mulher não passasse pelo que passei. Que não perdesse o seu bebê, como eu tinha perdido o meu.

            Ela começou a chorar, assustada, e eu me abaixei no chão ao seu lado. Agindo por instinto, segurei a sua mão, em uma tentativa de acalmá-la.

            — Fique tranquila, a ambulância já está a caminho.

            Ela segurou a minha mão com força, e eu entendi que não poderia sair dali tão rapidamente. Quando a ambulância chegou, os paramédicos perguntaram se havia algum acompanhante. Como ninguém se manifestou, eu me ofereci para acompanhá-la. Eu, de fato, não tinha mais nenhum plano para aquele dia. E ela pareceu aliviada quando me viu entrar na ambulância e me sentar ao seu lado, voltando a segurar a sua mão.

            Mais uma vez, me vieram à mente as lembranças do ocorrido há um ano. E me lembrei da sensação sufocante da solidão que tinha me atormentado durante todo o tempo no hospital – e mesmo depois dele. Por mais que eu fosse uma total desconhecida, esperava que a minha presença ali a confortasse um pouco naquele momento.

            Ao chegar ao hospital, eu a acompanhei até a entrada na sala de atendimento, quando, então, fui obrigada a me afastar. Minha missão já estava cumprida, e eu poderia tranquilamente ir embora, mas não consegui fazer isso. Queria sair de lá com alguma notícia. Pensei que, se ela e o bebê escapassem bem, talvez o meu dia se tornasse um pouco melhor, e aquele vazio dentro de mim diminuiria mais um pouco.

            A pequena menina com cara de anjo que salvou a minha vida já tinha feito diminuir bastante, aliás.

            Sentei-me em um banco no corredor e fiquei ali, aguardando alguma informação. Até que ouvi passos vindos em minha direção. Achei que fosse algum atendente ou enfermeiro vindo me dar alguma notícia. Era um homem em torno de trinta anos, alto, moreno, usando jaleco, o que me fez perceber que era um médico. Para a minha surpresa, ele se sentou ao meu lado, perguntando:

            — Foi você que trouxe a Tamires?

            Eu não sabia o nome da moça, mas logo intuí que seria ela mesma.

            — Se for a grávida, sim, fui eu.

            — Fique tranquila, foi apenas um susto. Ela apenas torceu o pé, teve algumas escoriações leves... Mas vai ficar bem.

            — E o bebê?

            — Está melhor do que ela.

            Soltei um suspiro de alívio. Ele sorriu, e eu, então, fui tomada pela sensação de conhecê-lo de algum lugar. O que não fazia muito sentido, já que eu não conhecia muitas pessoas naquela cidade.

Foi então que eu reparei nos olhos cor-de-mel e reconheci o olhar acolhedor que tinha sido o único e breve reconforto no pior dia da minha vida.

Ali estava o médico que tinha me atendido depois do acidente.

O homem que salvara a minha vida.

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