Capítulo Dois - Entre as nuvens

Oh, I am Going

Down, down, down.

I can’t fing another way around

And I don’t wanna hear that sound

Of losing what I never found

Jason Walker — Down

Miguel

Rafael andava de um lado para o outro. Estava impaciente, e isso não era um bom sinal.

— Se acalme.

— Não posso, Miguel. — Ele se sentou ao meu lado, levando as mãos à cabeça.

— Por que não, meu amigo? — Coloquei uma das minhas mãos em seu ombro, tentando lhe transmitir paz.

Suspirei profundamente, tentando achar o equilíbrio para lhe dar força.

— Não sei, algo me atormenta, estou sentindo uma coisa diferente aqui por dentro. ­— Ele falava, apontando para o peito.

— O quê?

— Não sei, nunca senti isso antes.

— Sabe que os sentimentos dos humanos não podem ser de forma alguma compartilhados por nós, não é mesmo?

— Eu sei, mas é que... se eu pudesse sentir o que ela sente, seria mais fácil para ajudá-la, seria mais fácil consertá-la.

— Mas você não pode, essa é a questão. A escolha é dela, e ela escolheu não acreditar. E ela não está quebrada para ser concertada, não diga uma bobagem dessas.

— Você entendeu o que eu quis dizer, é só que... EU... eu não posso deixar, não posso deixar ela se entregar, eu não posso ver ela sofrer assim, eu não posso deixá-la morrer!

— Por que, Rafael? Humanos nascem e morrem o tempo todo.

— Não sei, não sei, que droga!

Rafael se levantou em um pulo, socando a mesa, o que fez com que as peças do xadrez do nosso pai fossem ao chão. Balancei a cabeça em negativa. Rafael não podia se prender assim a Ellen, ela tinha a vida dela, ela tinha o livre arbítrio, ela escolheria o caminho que deveria seguir, ela, somente ela, sem interferência do céu, sem interferência dele, mesmo que não interferir significasse a morte dela e a de Rafael.

Tudo na vida dos humanos deveria seguir um curso, as coisas deveriam correr como planejado. Não podíamos interferir. Meter-se em suas escolhas era errado. O destino deveria se encarregar de curar as dores de Ellen, o destino se encarregaria de cicatrizar tudo e fazer florescer vida; mas a cada dia que passava, Ellen se deixava dominar pelo cansaço e pela dor, fazendo com que desacreditasse em tudo, incluindo Rafael.

Claro que todas essas escolhas dela interferiam nele. Ele era o seu anjo protetor, era ele quem velava por salvá-la e mantê-la em segurança; mas Rafael não tinha mais aquela força de antigamente, sem as orações de Ellen, sem a sua crença. Rafael estava cada vez mais fraco e desprotegido, e logo ficaria doente e morreria.

Quando uma nova alma nascia na terra, um anjo era encarregado de cuidar dela até o dia em que fosse determinado seu desencarne do corpo físico; enquanto isso não ocorria, suas orações e sua crença em nós nos fortalecia, nos dando vida; mas quando um humano deixava de acreditar na gente, adoecíamos, coisa que estava cada vez mais ficando comum por aqui. A humanidade estava tão desacreditada, que poucas pessoas ainda acreditavam em nós, e se o anjo não soubesse lidar com isso, ele morreria em alguns dias.

Com as asas abertas e o rosto fechado, percebi o quanto as asas de Rafael pareciam diferentes, sem aquele brilho que me fazia fechar os olhos sempre que eu as olhava. Suspirei pesadamente. Rafael era um anjo protetor novato, ele não tinha a experiência de lidar com a descrença, ele não era forte o suficiente para saber como fazer com que isso não o afetasse.

— Rafael, já fez suas orações hoje? — perguntei, me levantando e colocando a mão em seu ombro.

— Do que adianta orar, se o que eu sinto... — Ele hesitou.

— O que sente, Rafael? Fale. — Meu olhar estava fixo no seu.

— Desespero, um desespero tão grande, que tenho vontade de chorar —rebateu sem nem pensar.

Seus olhos estavam tristes, cheios de lágrimas. Ele abriu ainda mais suas asas e saiu voando.

— Rafael, o que eu vou fazer com você, meu amigo? Como posso te ajudar? — Sentei-me novamente.

Eu tinha que fazer algo por ele, por Ellen... talvez fosse a hora de nosso Pai interceder.

Voei para longe, o máximo que consegui, então sentei em uma nuvem e abracei os joelhos.    

— O que eu vou fazer?

Parei por alguns instantes e suspirei. Deitei sobre a nuvem, com os braços e as pernas esticados, e olhei para o céu acima de mim.

Eu sabia que não era certo sentir o que sentia, eu sabia que algo de errado estava acontecendo comigo, mas era tão difícil decifrar as coisas, porque eu nem sabia o que estava sentindo. Nunca senti nada parecido assim: todo esse pesar no coração, essa vontade de gritar, essa vontade de dizer que ela estava errada, essa vontade de ir até ela e mostrar que nós existimos, que nunca desamparamos quem a gente protege, que a vida acontece, não importando quão bom ou o quão mau é... Nós tínhamos que tomar decisões, assim como eles, decisões que nem sempre eram certas, que nem sempre eram erradas, mas decisões que precisavam ser tomadas.

— Droga, Ellen! Por que tens que agir assim?! Por que tem que ser tão cabeça dura!? Por que gosta de sofrer tanto!?

As nuvens que estavam acima de mim andaram com o vento, e o sol bateu em meu rosto. Suspirei pesadamente e me levantei. Com asas ao vento e as mãos para trás, comecei a andar de um lado para o outro, pensando, tentando achar uma solução, algo que pudesse fazer para mudar o rumo da vida de Ellen.

Sim, eu sei que não podemos, que não devemos interferir, mas algo aqui dentro de mim me alertava que não era esse o destino dela, algo dentro de mim gritava para tomar uma atitude e não deixar que nada de mal acontecesse com ela.

Como se uma grande luz se acendesse, eu tive uma ideia. Parti voando, o mais depressa possível para a biblioteca, juntei alguns livros e levei para o meu quarto.

A cada linha que lia, a cada capítulo que eu conseguia terminar, eu tinha mais certeza do que eu deveria fazer.

Fechei um dos livros grandes e grossos que tinha na escrivaninha. Sua capa era toda preta, de couro, capa dura com letras douradas. O livro se intitulava Entre O céu e a Terra. Era sobre um anjo, o anjo Ariel, que ajudava as pessoas a fazerem agradecimentos a Deus, além de auxiliar na busca de objetos perdidos do nosso pai.

Era isso... Essa era a minha resposta... era assim que eu ajudaria Ellen.

Sorri, satisfeito. Meu plano daria certo.

Saí na janela. Pela posição da lua, já era mais de três da madrugada. Olhei para baixo e concentrei meus pensamentos em Ellen, que estava tendo um sonho agitado. Ela sentia dores, muitas dores. No sonho, uma voz lhe dizia que ela havia matado seus pais e que como punição, ela viveria com a tormenta na alma. Ela gritava, se debatia, tentando se livrar de mãos grandes com unhas compridas e apodrecidas. Fechei os olhos e orei, pedindo ajuda ao papai. Pedi para que ele a confortasse, que trouxesse bons sonhos à minha menina; mas quanto mais eu orava, mais ela se agitava; então eu interferi: entrei em seus sonhos e a peguei em meus braços. Eu a embalava, minhas asas a protegiam de todo o mal que estava em volta dela. Aos poucos ela foi se acalmando e seu sono agitado passou a ser tranquilo e calmo. Enviei-lhe mensagens positivas, mensagens de ânimo e força e dei-lhe a lembrança que mais a agradava: uma tarde de bagunça com os pais depois de um passeio magnífico que eles haviam tido no parque. Sorri satisfeito ao olhar em seu rosto e notar um sorriso.

Quando eu havia nascido no céu, Ellen nascera na terra. Ela tinha sido dada a mim como uma missão pelo nosso pai. Ele pedira para que eu a protegesse e cuidasse dela com muito carinho, pois dias turbulentos viriam e ela precisaria de mim. Eu havia crescido junto com Ellen, protegendo-a e cuidando dela. Tivera muita sorte, pois seus pais e avós haviam me ajudado muito ao darem a crença.

Eu olhava para ela com carinho e amor. Ellen era muito bonita. Tinha grandes olhos castanhos e cabelos negros, como à noite. Sua pele era branca como à neve, o nariz era fino e arrebitado, seus lábios eram carnudos, em um corpo pequeno com o busto farto. Ela tinha duas manchas: uma na perna direita e outra no braço esquerdo.

Perdi-me em pensamentos, e quando dei por mim, o dia já tinha clareado, e eu precisava encontrar Miguel para lhe comunicar minha decisão. O melhor de tudo era que eles não poderiam negar, eles teriam que me deixar fazer, pois era obrigação deles, assim como à minha tentar salvá-la.

Voei por quase todo o céu para achá-lo, meditando numa nuvem bem ao sul. Lá ventava forte e o sol se escondia atrás das nuvens. Pousei ao seu lado sem elegância alguma, bati o livro na nuvem e ele deu um pulo.

— Rafael, me assustou, amigo!

— Quero falar com você.

— Sobre o quê?

— Sobre Ariel.

Ele me olhou com o ar de curiosidade e arqueou uma sobrancelha.

— O que tem Ariel?

— Ele foi, ele desceu na terra para ajudar os humanos.

— Sim, e lhe foi dado uma grande missão, a qual não cumpriu.

Ele estava tentando meditar de novo.

— Miguel, não é hora de meditar. — Sacudi seu ombro.

— Rafael, não, você não vai.

— Por que não?

— Porque a terra não é pra você — disse ele, olhando para a frente novamente.

— Para, não fale isso, você sabe que eu sou igual a Ariel, sabe que tenho um propósito maior, que tenho que a salvar, que tenho que a proteger.

— Acha que é igual a Ariel por ter lido sua história? — Assenti com a cabeça. — Pobre anjo tolo! Você não é como Ariel.

— Como sabe que não? Como sabe que meu destino não é ser como ele?

— Porque eu o conheci, conheci Ariel e seu ideal de salvar a raça humana. Aí nesse livro diz que ele elevou as orações dos humanos a Deus, nosso Pai, que ele buscou relíquias que nosso Pai perdeu na terra; só que não é bem isso que aconteceu, Rafael. Eu o vi sendo destruído pelas mentiras do mundo, eu o vi sangrar, eu o vi morrer, e eu vi nosso Pai o transformar em estrela, viver sozinho para sempre, como punição pelo que ele prometeu e não cumpriu.

— Então o livro é mentira?

— Não, Rafael, ele não é uma mentira, ele é verdade, só não contaram o final.

Sentei-me ao seu lado. O vento soprava cada vez mais. Minhas asas estavam esticadas e meus cabelos pareciam um rodamoinho.

O silêncio invadiu o espaço entre nós dois. Suspirei e olhei Miguel, que me olhava com curiosidade.

— A missão de Ariel era salvar as relíquias?

— Sim.

— Ele que escolheu sua missão?

— Sim.

— Então eu quero escolher a minha, eu quero salvar Ellen.

— Rafael, não me escutou, irmão? Se você falhar, você vai viver sozinho para a eternidade, o nosso pai vai te transformar em uma estrela.

— Eu acredito, irmão, que todos nós temos um destino, seja humano, animal, ou nós, os anjos. Eu preciso tentar.

— Tem certeza que é isso o que quer?

— Mais que tudo.

— Então vou falar com o nosso Pai, se ele permitir sua jornada, em breve você partirá.

Ele olhou para a frente e começou a meditar novamente. Dessa vez, convencido, me juntei a ele na meditação e nas orações.

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