Capítulo 1

Durante minha longa jornada fui chamado por diferentes nomes. Nenhum deles teve tanta representação quanto o último: Menestrel. Mas como todas as histórias que conto esta não é sobre mim, embora me sinta mais presente do que em todas as outras. De todo modo, é uma história esquecida sobre uma menina esquecida em um mundo esquecido. E sobre como, aquém dos reles fatos, algo tão pequeno pode mudar o mundo. Afinal de contas: que mundo é maior do que aquele que cada um carrega dentro de si?

Naquela noite em específico Anarina Bella Torres discutia acaloradamente com sua irmã. E antes que me pergunte, permita-me elucidar de uma vez a questão que lhe veio à mente neste momento: “Que tipo de nome é Anarina?” Pois bem, há exatos quatorze anos vinha ao mundo uma pequena menina de ralos cabelos vermelhos e sardas no rosto inteiro. O casal passara os últimos meses da gestação discutindo qual seria o nome da criança por nascer. Se menino a escolha era unânime: se chamaria José Carlos. Mas quando receberam a notícia de que era uma menina, foi revivida a discussão antiga. Seu pai insistia em chamar a menina de Ana, em homenagem à mãe falecida. A mãe, porém, também tinha sua própria mãe falecida, Catarina, a quem considerava digna da mesma honra. Ante o impasse prolongado até o local de registro, coube ao escrivão a brilhante (ou não) ideia de uma dupla homenagem. E assim surgiu o exclusivo nome Anarina, carregado pela garota sem tanta honra, há quatorze anos. Agora então podemos voltar à atual questão: a acalorada discussão entre Anarina e sua meia irmã mais velha, Beatriz, mais comumente conhecida como Bia.

– Não quero desculpas! Eu quero você aqui até as oito! É perigoso lá fora. Não vou escrever uma tragédia sobre minha própria irmã na capa do jornal - gritou Bia diante do fogão, enquanto gesticulava girando a concha do purê acima da cabeça.

– Eu já sou bem grandinha! Sei me virar! Não preciso de você! – rebateu Anarina de pé, cerrando os punhos enquanto seus olhos azuis faiscavam uma raiva destilada.

– Mamãe te deixou sob meus cuidados. Eu trabalho dia e noite para te dar tudo o que ela sempre sonhou para você… para nós! E até que se torne uma adulta responsável você vai me obedecer! – Apontou a concha em riste devolvendo o olhar, enquanto, com a outra mão, tentava afastar do rosto as negras madeixas que insistiam em lhe cobrir os olhos.

– Isso é o que você diz! Você nunca vai ocupar o lugar dela! Você não é minha mãe, ouviu? E eu te odeio! – Vociferou ainda mais alto enquanto corria para seu quarto, com seus esvoaçantes cabelos avermelhados. No trajeto chocou-se contra a mesa que separava as duas e derrubando o copo de suco sobre o prato de comida que sua irmã havia acabado de pôr para ela. Bia ainda estava paralisada, com a mão erguida apontando a concha para o vazio enquanto seus olhos marejavam, tornando a visão turva. Em silêncio, a jovem terminou de despejar uma última concha de purê sobre o prato em sua mão, repousou-o sobre a velha mesa de madeira centralizada ao meio da pequena cozinha, arrastou a cadeira e sentou-se, com a lentidão de quem remoía pensamentos perturbadores. Encarou a pequena montanha amarelada que preenchia o prato sob sua cabeça baixa e não tentou conter a primeira lágrima a gotejar sobre a janta que não seria tocada. Tentar digerir as últimas frases de sua irmã não deixava espaço em seu embrulhado estômago para mais nada. Recompondo-se a jovem enxugou o rosto, recolheu os pratos e ateve-se à rotina de limpar a cozinha enquanto sua memória a levava para uma sofrida viagem ao passado.

Bia tinha apenas três anos quando seu pai, Bernardo Torres, chegou a Ouro Fundo somente com ela em seus braços e um sonho em sua mente. Atraído pela promessa de ouro, o minerador largara sua antiga cidade logo após a morte de sua esposa. Perdido com uma chorosa criança faminta chamou a atenção da então jovem Clara Bella, que prontamente recebeu os forasteiros e acomodou-os na humilde pousada de sua avó. A ausência do conforto bem como o impregnado odor de naftalina era recompensado pelo abrigo da noite fria e o delicioso prato de lentilhas. Naquela noite, Bernardo e a pequena Bia encontraram a proteção de um lar. E conforme o tempo passava forjava-se um forte laço afetivo entre Bernardo e Clara. Poucos meses depois os dois se casaram, em uma cerimônia simples e com poucos convidados. Após um ano nascia a pequena Anarina, com toda a divergência já mencionada em torno do seu nome. Bia tinha dez anos de idade e Anarina seis quando Bernardo decidiu viajar para outra cidade em busca de ouro. Prometeu retornar em um ano, trazendo uma vida melhor para sua família. Mas os anos passaram e a completa ausência de notícias fez com que as três perdessem a esperança. Bia tinha dezesseis anos quando sua mãe adoeceu severamente. Coube a ela, como a mais velha, cuidar das ocupações de Clara nos meses em que passou acamada, definhando a cada dia; um importante treinamento para os anos à frente. A jovem ainda sentia o toque gelado da mão materna quando esta, em suas últimas palavras, pediu pra que cuidasse da irmã caçula. Em um sussurro disse que as amava e, no instante seguinte, Bia sentiu todo o peso de estar só no mundo. E toda a responsabilidade de cumprir com a promessa de cuidar da amada (e rebelde) meia-irmã.

           

Já era madrugada quando Bia passou à frente do quarto de Anarina. Ergueu a mão e tocou a madeira fria da porta fechada. A cabeça seguiu o gesto, tocando-a com a testa enquanto, de olhos fechados, sussurrou um “Eu te amo” seguido de um murmurado “boa noite”. Não houve resposta alguma, restando-lhe se recolher para o antigo quarto dos pais, agora o seu, onde se revirou na cama até que o sono venceu a tristeza e a preocupação.

Deitada em sua cama, no silêncio da madrugada, Anarina tentava, sem sucesso, adormecer. O que mais a incomodava, porém era outra falha tentativa: a de lembrar-se do rosto do pai, a quem ela ainda aguardava, mesmo que a mera ideia fosse risível. Aguardava que a qualquer momento ele entrasse novamente pela porta, com seu doce favorito e o inconfundível sorriso estampado no rosto. Um sorriso que ela sabia ser tão marcante.  Não lembrá-lo era um tormento. As lágrimas molhavam o travesseiro enquanto tentava conter o soluço. Embora baixo, o silêncio a permitiu ouvir o “eu te amo”, bem como o “boa noite” de sua irmã. Mas o rancor e o orgulho não a deixaram responder a nenhuma das duas saudações. Que se lembrava, tinha sido a primeira vez que não retribuiu tais carinhosos votos. Permaneceu reclusa no silêncio de sua cama, enquanto aguardou até que o sono lhe roubasse a consciência. Até que adormecesse enfim.

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