5 e 6

5.

Quando entrou no convés do Karista I, Hank provocou um suspiro generalizado entre as mulheres da equipe de pesquisa.

Muito alto, exibia um corpo de atleta coberto exclusivamente por um calção de banho preto. Era-lhe natural arrancar olhares lânguidos das mulheres, praticamente de todas as mulheres, fascinadas com sua masculinidade intempestiva, com o brilho acobreado dos cabelos louros e a claridade dos olhos azuis.

Naquele momento, pouco se importou com os olhares. Aliás, nem os viu. Mas nem mesmo a “cara amarrada” e de poucos amigos foi capaz de dissuadir o público feminino aquartelado no convés principal.

Dick Vanderbuild, que observava a cena, não evitou o riso. Não conseguiu deixar de comparar a Doutora Blair com Marcy, a loira escultural que todos, inclusive ele, acreditavam ser a namorada de Hank.

Juliet Blair era o avesso: um corcel indomável, completamente selvagem. Seu palpite era que a Doutora talvez não se rendesse ao charme de Hank, como todas as mulheres faziam, inclusive Marcy...

Hank precipitou-se para a escada que conduzia ao terceiro deck, onde o Comandante o aguardava. Foi subindo a escada de dois em dois degraus. Em menos de um minuto chegou ao topo e já foi logo perguntando ao comandante do Karista I:

− Onde ela está?

− Na sala de reuniões. – Dick respondeu, com educação. Por um breve e irônico segundo, imaginou se também deveria oferecer a Hank um café com biscoitos. Mas a piada particular se evaporou tão rápido quanto veio. Se havia uma coisa que aprendera no mar, era não abusar da sorte! Afastou-se do caminho e deixou que Hank Caruzzo seguisse, pisando fundo, para o interior do navio.

6.

Abriu abruptamente a porta. Não se preocupou com o fato de seu oponente ser uma mulher. Só pensava que ela precisava engolir os desaforos que lhe cuspira pelo rádio e que tinha a obrigação de se desculpar!

A mulher estava de costas, rosto virado para as grandes paredes de vidro, braços cruzados no peito. Só se voltou quando a porta bateu. Virou-se rápido, assustada com o barulho. Mas foi como uma cena de filme... lentamente.

No segundo seguinte, a visão dela provocou em Hank o impacto de um soco no estômago!

Ele precisou encostar as costas na porta. Tentava se livrar da pressão nos ouvidos e não ceder ao tremor que tomou conta de suas pernas.

Você é a Doutora Blair?! – foi a única coisa que conseguiu dizer.

Ela o fitou com os olhos amendoados, soltando faíscas. Ergueu o queixo. Jogou para trás a cabeleira castanha, curvou a boca e mediu-o de alto a baixo, numa inspeção desdenhosa.

− E você deve ser o palhaço que atracou essa porcaria de navio em águas protegidas pela lei! Preste atenção, pois não vou repetir: você está infringindo uma legislação federal! Está perturbando a vida marinha com esse trambolho e essa sua equipe! A menos que seja um retardado ou um louco fugido do hospício, deve ser capaz de entender o que significa crime ambiental! Por isso, cretino, dê o fora daqui! Imediatamente! Eu não estava brincando quando disse que acionaria a Guarda Costeira! Estou me lixando se você tem dinheiro, fomento ou se é um dos manda–chuvas da San Diego! Pode me ameaçar com advogados, pode me ameaçar com o que você quiser! Mas não vai me impedir de defender a fauna marinha e essa ilha, doa a quem doer!

Cada palavra era uma bofetada. Ela falava alto e falava tanto, que ficou aturdido. Quando finalmente parou, ele demorou alguns segundos para digerir o que ouvira. Porém, quando se sentiu pronto para rebater as palavras, só conseguiu dizer:

Você é louca...!

Esperando uma revanche verbal, Juliet não se conteve. E disparou de novo:

− Louca?! Pois você não viu nada! Essas águas são um patrimônio ambiental e você está cometendo um crime! Eu quero que mande essa corja parar o que está fazendo e eu quero que faça isso agora!

Hank meneou a cabeça. A onde é que estava o sentido de tudo aquilo?! Caramba, aquela era a mulher com quem ele acabara de fazer amor! Era a mulher que ele procurara, pela qual gritara e jurara encontrar, nem que fosse no inferno! E agora ela estava ali, na sua frente, o acusando, berrando e sapateando como se nunca o tivesse visto na vida!

Você é louca! – insistiu, agora em tom alto, com o vozeirão reverberando pela sala. − Completamente doida! Como é que pode ter acabado de transar comigo, me deixar sozinho, sem saber de onde você veio ou pra onde você foi, e simplesmente me aparecer aqui pra me acusar desse monte de merda?!

Juliet ficou muda. Inclinou-se para trás, tomada pela surpresa.

Como é que é....?!

− Você ouviu o que eu disse! − ele rebateu. − Não aja como se não tivesse acontecido nada entre você e eu!

Foi a vez dela menear a cabeça.

− Escute aqui, cara, se você está drogado, é bom me avisar, porque nem eu sou capaz de discutir com um viciado!

Hank ficou momentaneamente de queixo caído. Mãos na cintura, fitou-a, pasmo.

− Mulher, você é maluca... ?!− ele repetiu, agora vagorosamente. – Ou... sei lá... está querendo jogar comigo...? Quer que eu prove alguma coisa, não sei... De repente, ouvir mais do que já ouviu, lá nas rochas? Porque se for, basta você me dizer, eu falo! Comigo é assim: faço o que for preciso! O que você quer ouvir? Anda, me fala! Eu digo pra você!

Juliet arregalou os olhos verdes. Encarou-o como se ele, sim, fosse um louco perigoso, prestes a atacá-la. E como ela não respondeu, Hank continuou:

− Olha, eu te procurei como um desesperado! Procurei enquanto pude, no mar, nas praias, nas rochas! Pelo amor de Deus! Ao menos uma satisfação, ao menos uma você poderia me dar! Mas não! Você prefere ficar aí se esgoelando, fingindo que não aconteceu nada, que não sabe de nada! Por quem você me toma? Por um imbecil?! O que é que você queria? Uma diversão à toa, uma transa fortuita, um pau por acaso?! Se pra você é assim, por mim tudo bem, tudo ótimo! Mas daí a armar essa confusão do caralho...?! Ora, tenha dó! Não consegue assumir que trepou com um desconhecido?! Se esse é o problema, então fique sabendo que ele é só seu mesmo! Porque posso até ser grosso e sem um pingo de educação! Mas hipócrita eu não sou!

Juliet Blair continuava muda, olhando para ele com a cabeça meio inclinada para o lado. Quando ele terminou, ela replicou, numa voz baixa:

− Do que, com os diabos, você está falando...?

Não se faça de sonsa comigo!!! – foi a vez de Hank gritar. Ele perdeu a paciência e a encarou com os olhos azuis completamente turvos. Juliet ficou com medo. Afastou-se dele, em busca de uma posição mais segura e levou a mão às costas, na tentativa de achar alguma coisa pesada, que pudesse usar para se defender.

−Eu não estou me fazendo de sonsa com você. − ela parlamentou com a voz firme, pronunciando com clareza cada uma das palavras. − Só não sei do que você está falando! O que me consta é que você invadiu as águas da Isla de los Sueños, está descarregando um equipamento que pode prejudicar a fauna marinha e, portanto, está chefiando uma expedição ilegal. Por isso, estou pedindo, gentilmente, que você saia daqui. Afora isso, não sei do que você está falando!

− Ah, você não sabe?!

O homem partiu pra cima dela. Juliet tateou o aparador atrás de si, mas não encontrou nada que pudesse investir contra ele. Em pânico, viu que Hank vencia o espaço entre eles com pouco mais de três passadas. Em uma fração de segundos, duas mãos poderosas seguraram seus braços. Em outra fração de segundos foi erguida do chão como se não passasse de uma marionete. Nos segundos restantes a boca de Hank desceu sobre a dela.

Juliet se debateu. Fechou os lábios, girou a cabeça, esperneou, chutou as pernas dele. Mas Hank não se deixou vencer. Deslocou uma das mãos para seu quadril e com outro impulso, breve e seco, colocou-a sentada sobre o aparador. Desta vez, abriu suas pernas com um só gesto e colocou-se entre elas. Foi tão rápido que ela não conseguiu gritar. Seu protesto se transformou num gemido, boca aberta, devassada pela língua que se intrometeu dentro dela.

Hank a beijou com maldade. Por um instante fugidio chupou delicadamente a sua língua, impelido pela ânsia de prová-la de novo. No entanto, bastou perceber um átimo de satisfação, que forçou a mão em seus cabelos, empurrando-a quase que para dentro dele. Chupou-a com força, sua língua e sua boca, até morder os lábios carnudos. Quando duas lágrimas escorreram dos olhos verdes de Juliet, ele a soltou com a mesma brutalidade com que a pegara.

− E agora? Revivi a sua memória?!

Imbecil! − Juliet gritou. Agora com as mãos livres, ela se precipitou contra ele. Queria “enfiar a mão na cara dele”, mas Hank foi bom de esquiva. O máximo que conseguiu foi esmurrar o peito e continuar gritando: − Idiota! Cretino! Imbecil!

Ele entendeu que o encontro com a Doutora Blair estava degenerando para a violência física. Passando as costas da mão esquerda na boca, ele saiu de perto dela.

− Desculpe! Mas talvez agora você saiba do que estou falando, não é Doutora? − ele insistiu, agora com ironia.

Juliet desceu sozinha do aparador. Também limpava os lábios inchados.

− Seu filho da puta! − ela sibilou. Esticou para ele dois olhos marejados, tão flamejantes quanto rancorosos. E o advertiu: − Nunca mais encoste a mão em mim! Nunca mais, entendeu?! Nunca mais! − ela chegou a gritar e a bater os pés no chão − Se erguer um dedo que seja para me tocar, eu te mato!

Hank não se abalou com a ameaça. Mediu-a de alto a baixo, com evidente desprezo.

− Não se preocupe! Eu seria incapaz de forçar você a transar comigo. Até porque, querida, com você não é necessário muito esforço, não é ...?

Juliet voltou a gritar completamente descontrolada:

− Eu nunca transei com você! Pelo amor de Deus, eu nem te conheço! Nunca te vi nem mais gordo, nem mais feio, nem mais magro, nem mais baixo! A única coisa que eu sei a seu respeito é que você está ancorado em águas protegidas pela Legislação Ambiental dos Estados Unidos! E isso faz de você e da porra da sua expedição uma pedra no meu sapato!

Hank deu três grandes passos para trás. Já estava longe dela, mas sentiu que era necessário ficar ainda mais. O sangue lhe fervia de tal maneira, que temia fazer uma bobagem maior do que a que já havia feito. Ele ergueu as mãos para cima, com o intuito explícito de protegê-la e começou a respirar profunda e compassadamente, em busca da calma que lhe fugia.

Quando já estava no caminho do equilíbrio, resolveu mudar a abordagem:

Okay, Doutora Blair! Vamos fazer a coisa do seu jeito, então. Tudo bem!

Juliet observou o homem se encaminhar para os fundos da sala, onde havia outra mesa, cadeira giratória, estantes de livros e armários de madeira, compondo um sóbrio escritório pessoal.

Ele abriu um dos armários. Foi arrancando de lá um sem número de pastas. Quando encontrou uma grande pasta arquivo cinza, voltou-se para Juliet e jogou a pasta sobre a na mesa.

− Quer se aproximar, por favor?

Ela engoliu em seco. Um frio incômodo começou a tomar forma em sua barriga. A intuição lhe dizia que o conteúdo daquela pasta não era nada bom! Mas empinou o nariz, negando-se a se deixar intimidar. Endireitou os ombros e caminhou o mais dignamente possível até a mesa. Lá, em evidente sinal de auto defesa, cruzou os braços no peito.

−Então vamos começar do começo. − Hank encarou-a. Abriu a pasta. −Muito prazer, Doutora Blair. É uma satisfação conhecê-la! Sou Hank Caruzzo, da Fundação Forbes. Não sei se é de seu conhecimento, mas chefio o Departamento de Arqueologia, da Universidade de San Diego, na Califórnia.

As pernas de Juliet começaram a tremer. O tremor das pernas alastrou-se para os braços e as mãos. O frio que tomava conta da sua barriga espalhou-se pelas costas e destas para o resto do corpo. Ela pensou que iria desmaiar. Segurou com força o encosto da cadeira à sua frente. Mas o gesto não foi suficiente para lhe devolver a firmeza das pernas. Devagar, como um doente terminal, puxou a cadeira e foi descendo lentamente o corpo, até se sentar.

Seus olhos estavam arregalados. A cor havia lhe fugido das faces. Não ouvia direito nenhuma das palavras que Hank dizia, jogando documentos e mais documentos sobre a mesa. A única coisa que ela conseguia ouvir era o eco da expressão: Sou Hank Caruzzo, da Fundação Forbes.

− Há dois anos conseguimos arrematar em um leilão, em Hannover, o diário de bordo de um navegador espanhol, chamado Ferdinand de Monterrey. Até o aparecimento do diário, ele e a preciosa carga do seu galeão, o Reina Cristina, eram apenas mito. Como a senhora com certeza deve saber, pelo menos oito ilhas nesta região, incluindo a de los Sueños reivindicam a glória de ser o último porto do navio. E mais: o de ter em seu perímetro náutico os destroços do galeão que teria naufragado em uma tempestade. Meu Departamento conseguiu comprovar a autenticidade do diário, como pode ver. Esta é uma cópia do laudo. Está autenticada, portanto tem valor legal. − o documento descansou sobre a mesa− De fato, Monterrey tinha uma carga preciosa: milhares de galeões de prata. − continuou− Mas ele não naufragou. Deliberadamente explodiu o próprio navio e sua tripulação, observando o espetáculo de chamas e gritos, nas areias da ilha que ele mesmo chamou de “Ilha do Adeus”. Demoramos um ano para refazer seu caminho e descobrir a localização do último porto. A “Ilha do Adeus”, Doutora Blair, é Isla de los Sueños. Foi aqui que Ferdinand de Monterrey explodiu milhares de galeões espanhóis e uma tripulação de cem homens. Esta é a conclusão, avalizada por uma banca de oito pesquisadores contratados pela Forbes, dentre arqueólogos, historiadores, linguistas e geógrafos. − jogou sobre a mesa um grosso volume encadernado. − Minha expedição, Doutora Blair, tem por objetivo encontrar os destroços do navio e aqui está o projeto. − outro volume foi juntar-se aos anteriores − A expedição está sendo financiada integralmente pela Fundação Charlles Forbes que também financia as suas pesquisas, Doutora! Além disso, a Fundação Forbes mantém o Centro de Preservação da Vida Marinha, com todos os seus equipamentos e funcionários. Mas, com relação a isso creio que não preciso insistir. No entanto, convenhamos! Que raios de Fundação de Pesquisa seria essa se aprovasse uma expedição em águas protegidas pela legislação ambiental dos Estados Unidos, tendo por justificativa sua própria folha de pagamento?! Teria que ser uma Fundação de segunda, não é Doutora ?! Não é o nosso caso! Uma instituição com meio século de pesquisa e centenas de pesquisadores laureados no mundo tem um Conselho Curador que segue os mais rígidos protocolos de avaliação! − mais um documento caiu sobre o tampo da mesa. − Aqui está o Relatório de Impacto Ambiental de todos, Doutora, repito, todos os equipamentos utilizados nesta expedição! Nenhum deles contém ou emite nada que possa desequilibrar, angustiar ou estressar ainda que remotamente, a fauna marinha! Mas, como a senhora sabe, trata-se de águas protegidas pela lei! Por isso, ainda que o Relatório de Impacto Ambiental tenha sido favorável, os protocolos da Forbes exigiram um Estudo de Impacto Complementar! − ele jogou outro volume. − Aqui está. Este Relatório “cego”, encomendado a uma empresa que até o laudo final nenhum dos pesquisadores envolvidos no projeto soube qual era, atesta que não existe a menor, a mais longínqua, a mais remota chance, de que a expedição perturbe seus peixinhos, lesmas e corais! − ele carregou na ironia − Com esta documentação, Doutora Blair, encaminhamos às instâncias competentes um pedido formal para a autorização dos nossos trabalhos e aqui, como pode ver, − mais um papel − a autorização do Departamento Nacional de Meio Ambiente dos Estados Unidos para a realização do Projeto Reina Cristina nas águas da Isla de los Sueños! E, é claro, um acordo de cessão com o governo espanhol, a quem pertence legalmente os destroços e a carga do Reina Cristina!

Hank parou de falar, para tomar fôlego. Seus olhos passearam pelo rosto de Juliet com evidente crueldade. Sorvia com prazer cada uma das suas expressões de desolação. Ele soube, pela simples leitura do seu rosto, que ela antevia o ápice daquela narrativa e que, antes dele concluir, ela desejava que o casco do navio se abrisse e o mar pudesse engoli-la.

Mas, ele não se dava por satisfeito. Iria levar a tortura até o final! Mudou o tom de voz e com uma maciez excruciante, foi pontuando as partes finais do relatório que estava reportando:

− Conclusos os trâmites legais, dois meses a Fundação Forbes encaminhou à senhora, toda esta documentação com um pedido formal de colaboração com a equipe da Universidade de San Diego! − Hank retirou da pasta um papel cor de rosa e colocou-o bem diante dos olhos de Juliet. − Vou dispensar a referência a todos os e-mails que você não respondeu! Vamos nos deter ao bom e velho correio norte americano! Reconhece, querida? Sedex nominal, endereçado à Doutora Juliet Blair, do Centro de Preservação da Vida Marinha da Isla de los Sueños! E a assinatura de recebimento, você reconhece? Está escrito aqui, numa letra muito bonita, aliás! “Acuso recebimento. Juliet Blair!” Como você não responde a e-mails e parece ter um problema muito sério com as comunicações por telefone, há um mês encaminhamos novamente, através de um fax pré histórico o nosso roteiro e cronograma! Reconhece esse número? É seu? − Hank colocou o papel diante dela. − O fax pedia retorno, Doutora Blair, ao que, para surpresa geral, foi atendido! Faço questão de ler, quem sabe revivo em definitivo a sua memória? “O Centro de Preservação da Vida Marinha da Isla de los Sueños terá prazer em receber os visitantes da Fundação Forbes. Colocando-me à sua inteira disposição, subscrevo-me, atenciosamente, Doutora Juliet Blair!”

Hank bateu o papel do fax no tampo da mesa. Ela segurou-o e permaneceu com os olhos baixos, mordendo o lábio inferior já machucado pela brutalidade com que fora beijada.

− E então, Doutora Blair? Minha expedição é ilegal? Estou desrespeitando uma legislação federal? Estou poluindo as águas da Isla de los Sueños? E se é essa a sua opinião, pode me dizer por que concordou em receber a equipe, colocando-se à nossa inteira disposição?

Juliet ergueu vagarosamente os olhos do papel de fax para encarar o homem enorme à sua frente. Ele parecia ainda maior com as mãos cravadas sobre a mesa, encarando-a como um diretor de escola diante as provas incontestes de uma transgressão.

Para se dizer o mínimo, estava numa “saia justa”. Lembrava-se vagamente dos envelopes que Tereza havia lhe entregado e de como assinara às pressas o papel do Sedex, muito mais preocupada em ir para o sul da ilha. Lembrava-se, também, que deixara o envelope em meio a outros tantos que a Forbes regularmente lhe encaminhava. Também se lembrou do fax, de ter ditado a resposta para Tereza e ter feito piada, concentrada numa lâmina de microscópio: Putz! Chegaram ao ponto de mandar um fax?! Devem estar desesperados pra saber como gasto o seu dinheiro!

Juliet fitou os olhos do gigante enfurecido. Agora, não pareciam mais azuis e sim, estranhamente acinzentados.

− Então...− ela pigarreou− você é Hank Caruzzo Forbes. O presidente da Forbes em pessoa! O cara que assina os cheques!

Foi uma péssima ideia referir-se a ele daquela forma. A expressão de Hank ficou ainda mais turva.

− Satisfeita ou decepcionada? − perguntou entre os dentes.

− Escute...− ela colocou o papel sobre a mesa e descruzou as pernas. Ergueu-se da cadeira, acreditando que era melhor enfrentá-lo de pé do que ficar sentada como uma menina arrependida. − Eu não sabia.

− Quem eu era? Se por acaso soubesse não teria feito amor comigo?

Mas, meu Deus do céu do que é que você está falando?! − Juliet se exasperou. − Eu estou repetindo desde que cheguei que nunca te vi na minha vida! Eu reconheço que não dei a menor importância pra sua papelada! Eu reconheço que deixei o envelope junto com os milhares de outros, que vocês me mandam todos os meses! Por acaso quebro meu contrato se não leio os prospectos, informativos e os malditos balancetes?! É claro que também reconheço que simplesmente ditei o fax pra minha secretária, acreditando que vocês viriam aqui numa inspeção de rotina, para se certificar de que não estou queimando seu dinheiro! − ela o encarou. Deu por encerrada a sessão de autoflagelação e empinou o nariz: − Mas se está pensando que vou te pedir desculpas, Forbes, eu não vou! Pode me demitir, pode cortar a minha subvenção, pode fazer o que quiser! Eu não vou te pedir desculpas! Não vou!

Deliberadamente ela evitava falar no encontro dos dois. Apenas insistia na tese ridícula de não conhecê-lo. E não ia além.

Hank se afastou da mesa. Mais uma vez meneou negativamente a cabeça, ponderando sobre as palavras e, especialmente, sobre o tom com que Juliet as proferira. Já estava mais calmo e ia longe o risco de outra explosão de raiva. Entretanto, a amargura se instalara dentro dele com um peso tão horroroso, que parecia impossível se livrar do rancor.

Decidiu ficar longe dela. Foi até as paredes de vidro e deixou que os olhos se fixassem, por bons minutos, no movimento sereno do mar. Permanecia olhando as águas, quando disse:

−Olha, eu sou capaz de entender que você é uma profissional que detesta burocracia. Sério! Sou capaz de entender que negligenciou os documentos que nós enviamos e que, justamente por isso, acabou trocando os pés pelas mãos. E também não vou questionar a sua integridade profissional, por conta disso. Muito pelo contrário, eu acho até louvável. Por menos burocrata que você seja, a verdade é que se lançou em defesa da vida marinha. Sem necessidade, é claro; por puro desconhecimento, também é claro. Mas, tudo bem...! Até isso eu sou capaz de entender! − quando chegou nesta parte das ponderações, ele se voltou e a encarou:

− Mas daí a entender por que diabos você está jogando comigo, realmente, é um dado que me escapa! Certo, você acabou de me provar que não sabia quem eu era, o que é compreensível, porque você sequer sabia o que estava acontecendo nas águas que você mesma protege! Mas não vou insistir nisso. O problema é: o fato de você não saber quem eu era não explica a sua atitude de agora! Pode não ser importante pra você, pode não ter tido a menor importância pra você! Mas droga, mulher! Pra mim teve e tem!

Juliet Blair cruzou novamente os braços no peito. Ergueu o rosto e, com os olhos amendoados frios e objetivos, disse:

− Honestamente, Caruzzo, ou Forbes, seja lá como você prefere, eu insisto: não faço a menor ideia do que você está falando. Eu nunca, em toda a minha vida, vi você antes! E muito menos tive com você uma transa incrível nem coisa que o valha. Não tenho lapsos de memória, não estou babando e não tenho dupla personalidade. O máximo que posso concluir é que você ainda está sendo vítima de uma alucinação. Esta é a única explicação razoável que posso te dar.

− Alucinação?! − Hank emitiu uma risada contrafeita. − Olha pra mim, moça! Veja se eu tenho cara de quem está tendo uma alucinação?!

− Eu já disse: não tenho outra explicação pra te dar!

Ele suspirou, vencido.

− Bom, sendo assim, realmente não há como conversar com você. Isso virou um diálogo de surdos! E eu não vou insistir. Ninguém nos viu nos rochedos, não havia ninguém lá a não ser nós dois. Por isso, só posso acreditar que, deliberadamente, você quer me confundir. Se quiser sair por essa porta, convencida de que teve um desempenho brilhante vai enganar só a você. Não a mim. Você estava lá comigo e sabe disso! Me apareceu pelada, mergulhando como uma sereia, nas profundezas das águas. Depois transou comigo nas rochas e me deixou, sumindo do mapa! Por que fez uma coisa e outra eu não sei. E.... honestamente? Não quero mais saber!

Juliet semicerrou os olhos. Depois, baixando-os para o assoalho, perguntou:

− Você estava mergulhando...?

− Não, benzinho. Eu estava voando! − respondeu de pronto, azedo e sem paciência.

Já havia dado a conversa por encerrada. Encaminhara-se para a mesa, procurando se concentrar na arrumação dos papéis que jogara intempestivamente para todos os lados. Queria que ela fosse embora, que o deixasse sozinho. Queria tomar um banho, aplacar a fome e só depois, tentar pensar sobre aquela mulher complicada. Mas Juliet Blair não se via dispensada. Permanecia na sala, braços cruzados, entabulando um diálogo que não lhe interessava mais.

− Mergulhando onde, Doutor?

− No mar, Doutora!

− Fale sério, estou tentando te ajudar. Em que parte do mar?

− A ilha é sua. E se parar de fingir, vai saber melhor do que eu onde nós dois estávamos!

− Olhe aqui, estou tentando te provar que eu não estava lá e que tudo isso é fruto da sua imaginação!

− Isso vai ser meio difícil... − baixou as pastas que segurava, colocando-as sobre a mesa. Evitou olhar para Juliet, quando fez um gesto largo com a mão, indicando a porta. − Olhe, não tenho mais nada pra falar com você. Não desse jeito.

Juliet encarou-o com ar brejeiro. Mediu-o de alto a baixo, com lentidão, reconhecendo que Hank Caruzzo Forbes era um espécime masculino digno de nota! Mas era também... arrogante, presunçoso e, como se dizia em seus tempos de faculdade, muito metido a besta!

− Tudo bem, eu vou embora. Mas me responda uma última coisa.

− Pois não? − ele a olhou enfadado.

− Você tem o hábito de ler os relatórios que eu envio para a Forbes?

Hank franziu o cenho, procurando entender a razão da pergunta.

− Que importância isso tem, Doutora Blair?

−... Leia. Você vai descobrir. E vai descobrir mais: não sou apenas eu que meto os pés pelas mãos, por não ler as coisas que me mandam!

Juliet se encaminhou para a porta, sentindo-se dona da situação. Havia sido humilhada e obrigada a sair do campo de batalha como uma tola. Mas o mesmo podia ser aplicado a Hank. Ainda que aquele não fosse o desfecho que imaginara, tinha um saboroso gosto de vitória!

− Ah! Doutor Caruzzo... − ela voltou o rosto sorridente, descansando com indolência a mão na maçaneta na porta. – Já eu, faço questão de desculpas!

Quando saiu ondulando a bunda perfeita e fechou delicadamente a porta atrás de si, Hank atirou os papéis novamente na mesa. Diabo de mulher! Parecia Doris Day, ardida como pimenta, espalhando calamidades onde quer que fosse!

Pegou o telefone, ao lado do laptop. Teclou o número de seu escritório, na Fundação Forbes. Demorou um tempo para que a ligação se completasse e ele pudesse ouvir a voz da sua secretária:

Fundação Forbes, presidência, bom dia!

− Anne? É Hank.

– Olá! Como estão as coisas? Já encontrou o navio?

− Anne, quero que me envie os relatórios de pesquisa da Doutora Juliet Blair, do Centro de Preservação da Vida Marinha da Isla de los Sueños. Quero com urgência.

Do outro lado da linha, Anne reconheceu o estado de espírito do seu chefe e não fez comentários.

– Certo... Mando os arquivos para você daqui a pouco.

− Obrigado. E.... bom... − ele riu, num pedido envergonhado de desculpas. − Não tenho novidades, querida. Acabamos de chegar.

Desligou o telefone e atirou-se na cadeira giratória, cravando as mãos na cabeça.

− Puta que pariu! Com tanta mulher no mundo eu tinha que cair de quatro, justo por uma doida?!

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