Capítulo 5

Fiquei pelo menos uns cinco minutos parada, hora encarando a chave enferrujada na minha mão, hora encarando o bilhetinho bizarro em cima da cômoda, ainda pensando que tudo aquilo era somente uma alucinação e logo sumiria.

"Cuidado".

– Santa Deusa, retiro tudo o que eu disse – falei com a voz falhando e pulei para o meio do quarto, indo direto para o interruptor e acendendo a luz.

Estava paranoica, o medo corria pelas minhas veias. Para qualquer canto escuro do quarto que eu olhasse, imaginava a "Izzy" dos meus sonhos escondida ali, pronta para me tocar com aqueles dedos bizarros e retorcidos enquanto chorava daquele jeito perturbador digno de filme de terror.

Voltei para a cama e fechei as cortinas amareladas que cobriam a janela. Era como se a mesma garota fosse aparecer ali também.

É sua anta, só se ela puder voar e eu acho meio impossível que uma garotinha que mal possui dentes vá ter asas.

Espantei meus pensamentos idiotas, não estava no clima para discutir comigo mesma. Ai porcaria! No que diabos eu estava pensando quando desejei que essa casa estivesse envolvida em alguma história estranha e sobrenatural? Agora mal conseguiria ligar a televisão sem imaginar uma Samara Morgan saltando em cima de mim com aqueles cabelos exageradamente enormes.

Ah, pelo amor... Que pensamentos são esses, Lis? Vamos simplesmente esquecer essa história, foi só um pesadelo como todos os outros e... Tudo bem, não foi só um pesadelo como todos os outros mas ficar pensando nisto agora não vai adiantar nada, até mesmo porque está te dando cada vez mais medo, sua imbecil.

Ok... Respirei fundo e olhei para o quintal por uma fresta na cortina. Pareciam ser nove da noite, provavelmente eu tinha dormido umas três hora apeser de sentir como se tivessem passado apenas alguns minutos.

Abracei meu urso com mais força, querendo chorar, xingar e rir tudo junto.

Ainda confusa e tentando não fazer as três coisas ao mesmo tempo, travei quando, pelo canto do olho, pude ver a sombra de uma criança parando na minha porta.

Ai meu Deus, por favor...

– A mamãe tá chamando pra descer, ela pediu pizza – disse a voz irritante de Eliel, mais irritante do que nunca. Queria levantar e dar um soco bem no olho dele, só pelo susto.

– Já estou indo, idiota – eu disse tentando ao máximo parecer indiferente e meu irmão apenas deu de ombros e correu pelas escadas.

Levantei e encarei a chave do sótão uma última vez, até resolver que iria deixa-la debaixo do travesseiro. Enfiei o bilhetinho bizarro no bolso da calça e arrumei o cachecol para que as marcas não aparecessem, focando meus pensamentos apenas na pizza que comeria agora.

Assim que cheguei na metade da escada, pude sentir o cheiro que impregnava a casa e quase me dava a sensação de flutuar: queijo derretido. Sim, sei que poderia parecer meio estranho, mas pizza e doces para mim eram como drogas para outras pessoas.

– Estava dormindo ainda? – minha mãe perguntou e eu assenti, pulando os três últimos degraus de uma vez e correndo até a mesa. – Nossa senhora.

– Ah mãe, falando nisso – comecei meio sem pensar, mas precisava saber como aquela chave havia ido parar no meu quarto. – Você me prometeu a chave do sótão, lembra?

Eu abri um sorriso torto e ela me encarou de um modo estranho, franzindo as sobrancelhas.

– Claro que me lembro, mas quem anda esquecida é você – ela disse colocando uma azeitona na boca e me pedindo para esperar um minuto. – Eu te entreguei a chave um pouco depois do almoço, você subiu para o quarto e um tempinho depois desceu novamente me pedindo a chave.

– Ah é verdade... Esquece, acho que eu tô pirando – falei dando uma risada sem graça e completamente falsa.

Eu não queria rir, não havia pedido a chave para minha mãe. Tudo bem que às vezes eu tinha uns ataques de sonambulismo mas a última vez que isso havia acontecido tinha sido uns quatro ou cinco anos atrás, quando eu ainda era criança.

– Acha que está? – Mamãe disse rindo. – Eu tenho certeza.

– É... quem sabe...

Dei de ombros e foquei nos pedacinhos de bacon que forravam minha pizza. Como eu amava calorias.

– Ah, bem... Acho que esqueci de avisar mas vou ter que voltar na casa antiga para buscar algumas coisas que acabaram ficando lá e na casa da vó Tina também, vou sair amanhã cedo – mamãe disse e parei meu garfo na metade do caminho para a minha boca.

– E o Eliel vai junto, né? – perguntei e ela suspirou.

– Não ele não vai e...

– O quê?! – Eliel exclamou indignado e revirei os olhos. – Não quero ficar! A Lis é louca, tenho certeza de que ela vai tentar me matar!

– É, eu também não duvido nada – retruquei com um sorrisinho cínico.

– Cala a boca, eu não estava falando com você, trouxa!

– Podem parar vocês dois! Marliss Stella, o seu irmão vai ficar sim e ninguém vai matar ninguém, tá ouvindo? – Minha mãe berrou irritada, esquecendo-se completamente de que comer pizza em família deveria ser um momento belo e precioso. – E você, seu Eliel, vai obedecer a sua irmã e nada de ficar aprontando e sendo respondão. Entenderam? – Eu e Eliel permanecemos em silêncio, fuzilando um ao outro como se estivéssemos tramando a maior guerra possível. – Entenderam?

– Sim, mãe – respondemos em uníssono e minha mãe sorriu, satisfeita.

– Ótimo. Tem um caderninho na gaveta da escrivaninha do meu quarto com todos os telefones que vocês podem precisar, inclusive da Tia Elizabeth e da avó de vocês. Eu também falei com nossos vizinhos, Peter e Mary, e se acontecer alguma coisa vocês podem ir até lá falar com eles, e... – ela parou estreitando os olhos, como se tentasse se lembrar de algo, mas acabou desistindo no meio do processo. – Acho que é só. Vou deixar dinheiro também, mas não é para gastar com besteira, e tentem não destruir a casa, por favor.

– Ok – respondi mesmo que mal-humorada e nem um pouco animada para ficar sozinha em casa com meu irmão.

Depois de comer pelo menos três fatias de pizza, peguei meu edredom e o desci para assistir um filme de terror na sala. Peguei a caixa onde estavam os filmes e comecei a procurar por um que parecesse bom e que eu ainda não havia visto, o que seria praticamente impossível de encontrar.

– Vai assistir filme de terror? – Eliel perguntou com os olhos brilhando.

– Sim – respondi sem emoção e já prevendo o que viria a seguir.

– Posso ver com você?

– Não.

– Chata – disse mostrando a língua e correndo para o quarto de mamãe.

Claro que o bebezinho mimado não dormiria sozinho, afinal, tinham morcegos roedores no quarto dele.

Acabei por deixar de lado todo aquele assunto e, enquanto fuçava a caixa de filmes, acabei por encontrar a sequência de um que tinha assistido há uns dois anos e que havia me feito dar belos gritos de susto. Eu ainda não havia assistido o segundo e parecia tão bom quanto o primeiro.

Liguei a televisão e o aparelho de DVD e coloquei o CD lá dentro, pegando os controles e me enrolando na coberta enquanto carregava.

– Lis, pelo amor de Deus – mamãe disse arrastando a voz enquanto secava as mãos em um pano de prato. – Você sabe que não gosto disso, atrai coisas ruins.

Dei uma risadinha debochada e apertei o botão para iniciar assim que o menu apareceu. Mas no fundo eu sabia que o que minha mãe dizia era verdade, e isso me causava arrepios, principalmente depois de tudo o que vinha acontecendo.

– Eu passei a minha vida inteira vendo filmes de terror, mãe, não vai acontecer nada justamente porque é só isso: um filme.

– Ok então menina corajosa, nada de se enfiar na minha cama de madrugada porque não consegue dormir – ela riu e me deu um beijo na bochecha. – Boa noite.

Ela começou a andar em direção ao quarto mas rapidamente a chamei de volta:

– Mãe! Mãe, vem aqui! – Gritei e ela colocou a cabeça para fora da porta.

– O que foi, menina?

– Apaga a luz, por favor – pedi dando um sorriso levemente forçado.

Mamãe revirou os olhos e deslizou a mão pela parede, até chegar no interruptor e mergulhar a casa na escuridão, apenas com a televisão como fonte de iluminação. Sorri e apertei o botão para voltar o filme para não perder as cenas que haviam se passado enquanto eu falava com minha mãe.

Era algo relacionado a espíritos e médiuns e, logo no começo, um jazz antigo e assustador tocava quase chiando.

Não sabia se era uma boa ideia ver filme sobre espíritos quando eu mesma estava tendo contato com eles mas mesmo assim não desisti.

Uma hora havia se passado e nada de interessante havia acontecido, o protagonista havia apenas se perdido no plano astral e nada mais. Comecei a me sentir sonolenta apesar de não querer dormir de jeito nenhum.

– Ah vamos lá, Lis, você já dormiu a tarde inteira – falei para mim mesma e cocei os olhos com força para mantê-los abertos.

Não iria adiantar muito, já estava até enxergando tudo dobrado.

– Ah merda... – xinguei e levantei para ir até a cozinha.

Pausei o filme e liguei as luzes, fazendo meus olhos doerem e se fecharem ainda mais.

Tateei pelo ar até encontrar a pia. Abri a torneira e molhei o rosto, deixando que minha visão se acostumasse lentamente àquela claridade exagerada. Enchi um copo com água e sentei em uma das cadeiras, abaixando o rosto e usando os braços como travesseiro para deitar a cabeça sobre a mesa.

Na manhã seguinte eu teria o maior torcicolo da minha vida mas não importava mais, minhas pálpebras pareciam chumbo e eu não conseguia mais abri-las, meu corpo também estava pesado e difícil de mover e meu cérebro parecia feito de algodão doce, leve e grudento...

Depois do que pareceram somente alguns minutos, passos altos de uma pessoa correndo ecoaram pelo lugar, fazendo-me abrir os olhos e bocejar. Estiquei os braços e estalei os dedos para obrigar meu corpo a despertar. Minha visão estava embaçada mas aos poucos consegui ver boa parte das coisas.

Eu havia adormecido na mesa da cozinha feito um bêbado. A televisão e as luzes ainda estavam ligadas e pela janela pude ver que o céu já estava clareando. Deviam ser por volta de cinco e meia da manhã.

Levantei meio cambaleando e voltei para a sala, deitando no sofá e me enrolando na coberta, ficando como deveria estar há muito tempo.

Uma risadinha ecoou do andar de cima e reparei que a porta do quarto de mamãe estava aberta.

– Lis, vamos brincar de caça ao tesouro? – disse uma vozinha mais desperta e animada do que deveria estar àquela hora da madrugada.

Ou pelo menos eu acho que disse, estava com tanto sono que mal conseguia distinguir as palavras que havia ouvido.

– Vá dormir, idiota – falei com a voz sonolenta e enterrei meu rosto na almofada, rapidamente caindo em um sono profundo, mas não sem antes ouvir mais alguma frase sem sentido e passos leves descendo as escadas.

                                                                 ◈◇◈

– Marliss! Anda, acorda! – Mamãe dizia de modo apressado enquanto parecia me chacoalhar pelos ombros.

Sua voz estava distante eu não sentia muita coisa, mal tinha energia para abrir os olhos.

– Ai... o que foi? – Murmurei ainda meio débil.

– Eu preciso sair agora e você tem que olhar seu irmão – ela disse bufando o que me fez realmente querer abrir os olhos. Eu não queria deixá-la irritada.

– Ok, ok – eu disse abrindo os olhos e me sentando, ainda sonolenta e levemente tonta. Eliel estava bem à minha frente, sentado no tapete assistindo "O Pequeno Urso" na televisão.

– Ai meu Deus – eu disse com um sorriso e minha mãe me olhou como se eu fosse maluca. – Eu amo esse desenho! Me lembra quando eu usava os casacos da vó Lis enquanto ela fazia sopa, o dia frio e a chuva forte... Era tão bom.

Mamãe riu e balançou as chaves do carro na frente do meu rosto.

– Estou saindo, não esqueça que tem dinheiro na primeira gaveta junto com a agenda de telefone. Qualquer coisa ainda tem um monte de comida e  besteira nos armários, e chame os vizinhos se for necessário. Não volte a dormir agora e tome cuidado pelo amor do Santo Deus, ainda não conhecemos a cidade e nem as pessoas que moram nela.

Revirei os olhos e suspirei.

– Tudo bem, mãe. Não sou nenhuma criancinha, cuidei de mim e do Eliel por um bom tempo quando você precisava trabalhar, lembra?

– Hum... Ok! – Ela deu um sorriso nervoso, retorcendo os dedos das mãos. – Estou indo, cuidem-se vocês dois e não se matem, volto depois de amanhã.

Ela me deu um beijo na bochecha e um abraço apertado, depois fez o mesmo com Eliel.

– Mande um beijo para a vovó – gritei quando ela já estava na porta.

– Mando sim, tchau, fiquem com Deus – ela gritou de volta e eu e Eliel respondemos com um "Tchau, amém, você também" em uníssono.

Bocejei mais uma vez e deitei novamente, meus pés haviam passado a noite descobertos e agora estavam entorpecidos de frio.

Estava parecendo uma estátua de gelo, imaginei que talvez até poderia derreter se me colocassem debaixo do sol forte.

Ah, besteira.

– Que horas são, idiota? – perguntei com sono e Eliel balançou a cabeça.

– Oito e meia, acho – respondeu sem desgrudar os olhos da televisão.

– Tá de brincadeira... Vou voltar a dormir, qualquer coisa pode me chamar e se fizer arte ou sair de casa eu te mato – ameacei com minha melhor voz psicótica.

– Tá, tá...

Suspirei, cansada, e virei para o lado. Não sabia o que estava acontecendo, eu estava parecendo feita de sono.

Desta vez eu estava em um campo aberto. A grama era amarela e brilhante, as folhas das árvores eram em tons de marrom, laranja e vermelho, à minha frente havia um lago com a água transparente e brilhante que corria rapidamente sobre rochas e pequenas pedras lisas no fundo. Era como um paraíso de outono.

– Ei, Lis – uma vozinha que eu conhecia bem me chamou e me virei para trás.

Izzy estava lá parada com roupas de frio e um sorriso nos lábios, a franja negra extremamente lisa caindo sobre os olhos puxados. Era realmente a Izzy, e não aquela coisa estranha meio morta.

– Izzy! – Exclamei e corri em sua direção mas algo acertou meu rosto. – Ei, isso é...

– Sorvete sua boba – ela disse rindo e asas brancas de borboleta surgiram em suas costas.

Dei um gritinho pelo susto e caí de costas na grama, o sorvete de creme que ela havia jogado escorria pela minha bochecha.

– Calma, são só as asas, ainda sou eu – ela disse estendendo as mãos enluvadas em minha direção.

Eu as segurei e levantei, encarando-a com os olhos arregalados.

– Ele também tem – Isabel olhou para alguém atrás de mim e dei meia volta. Era o menino que eu havia conhecido no mercado.

Ele sorria para mim como se me encorajasse a ir até ele. Esmeraldas redondas brilhavam no lugar de seus olhos e suas asas eram pretas com manchas azuis.

– Vamos.

– Sim, estou indo – falei com calma e certa ansiedade.

– Então venha logo – pediu com a voz impaciente e quando eu comecei a andar mais rápido em sua direção, tropecei na raiz de alguma árvore e caí.

Uma risada esganiçada e escandalosa, alta o suficiente para me assustar, quebrou todo o encanto.

Eu estava caída no chão da sala, com Eliel se contorcendo de rir ao meu lado. Mais um sonho sem noção do qual eu não queria ter acordado – ou pelo menos não daquele jeito.

– Vá se ferrar, idiota – falei me desvencilhando do nó de cobertas e indo em direção à escada.

– Cala a boca, trouxa – ele respondeu e eu bufei, finalizando com um resmungo e a amostra do meu belo dedo médio.

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