Sexta sessão

O Rio antigo tem uma arquitetura instigante.  Há uma série de ruelas, sobrados, portinholas, janelas e varandas estreitas, escadinhas escusas.  Tudo exala um ar de confidências, de intrigas.  Acho que por isso aquelas fotos me chamaram a atenção.  O alargamento da rua Carioca, por exemplo, talvez tenha a ver com a ampliação desses meus espaços internos que se referem  a um passado convencional, estreito, para uma possibilidade maior...  Como se eu admitisse correr riscos, trilhar novas vertentes... De qualquer maneira, independente da evolução do que se seguiu, eu resolvi testar o Márcio.  Não testar no sentido rasteiro do propósito, mas... rastrear.  Isso, rastrear me parece mais certo.

Sim, vou explicar melhor.  Se ele, Márcio, estava se deixando levar por uma aventura, até que ponto eu não era conivente com isso, por meio de uma omissão, uma acomodação passiva frente às circunstâncias?  Até quando o envolvimento com outra pessoa representava, para ele, uma faceta diferente do mesmismo em que vivíamos?  Até que limite o desarranjo da ordem institucional de uma relação serve como ponto de equilíbrio para estabilizar essa mesma relação oferecendo fontes de fantasias não exercitadas?

           Sim, da minha parte, subir as escadas do sobrado e conhecer um homem fora dos meus padrões habituais de relacionamento e convívio social também obedecia a essa equação.  Concordo.  É como se o grande carteado tivesse começado.  Um carteado em grande estilo, sujeito a blefes, sorte, ousadia e estratégias. Um jogo individual, mas que não fazia sentido sem a conivência de parceiros.  Estava embutida a conivência e a transigência.  A transparência só dizia respeito à consciência das regras do jogo, mas a astúcia residia na arte de usar essas técnicas.

Exato. Foi aí que Lilith e Sherezade intervieram.

Tendo aberto a porta do paraíso, só me restava espiar.  Ou entrar.  Nessa época, eu comecei a experimentar um conflito entre explorar essa vida paralela ou investir numa nova abordagem com o Márcio.  Não me decidia.  Foi quando eu pensei que as opções não eram excludentes.  Eu me senti um tanto devassa, pois agia de forma esconsa.

           Sim, o tal olhar de viés.

           Deixei rolar meu envolvimento com o desconhecido.  Queria testar meus limites.  Ao mesmo tempo, oferecendo opções sem precedentes, queria observar até onde meu poder de sedução captaria o Márcio de volta...

De uma forma enigmática, coloquei o Márcio num equívoco. Dei a entender que conhecera outros homens, aprendera novas técnicas...  A princípio, Márcio ficou inseguro.  Queria saber quando isso ocorrera, como acontecera...

O homem fica inseguro quando é pego de surpresa.  Acha que retém as rédeas sempre e não imagina que coisas possam acontecer sem que ele suspeite ou autorize.  A única possibilidade é capturá-lo pela fantasia. E foi o que fiz.

           Na primeira das mil e uma noites, Márcio estava ansiosamente excitado e curioso.  Senti que havia um lado que queria francamente ouvir as histórias dos homens que eu supostamente conhecera, mas, por outro lado, havia, também, um movimento regressivo, como uma recaída numa angústia permeada de insegurança e orgulho ferido.  Mas o sexo falou mais forte.  Acho que ele se sentiu desafiado, como um animal selvagem que mede suas forças para conquistar a fêmea.  Ele esperava ansiosamente pelo rival.  E este surgiu sob a forma de um árabe.  Um vizir ou sultão que eu conhecera numa de minhas idas ao norte da África.

           Sim, de fato, eu estive naquela região.  Foi para um congresso, mas não houve nenhum contato com qualquer pessoa desse tipo. Quer dizer, eu até conheci um árabe e talvez ele tenha servido de modelo para a minha criação. O fato é que eu colhi todas as informações de leituras, fotos, quadros, gravuras sobre árabes, tendas, decorações exóticas, todo aquele clima de sedução, mistério, repleto de almofadas de estampa muito coloridas, os tons vermelhos e cobre sobressaindo nas tendas e nas vestes, o amarelo presente nos objetos e nos adornos em ouro, lamparinas, incensos, odaliscas licenciosas, óleos aromáticos... e a partir daí, penso que registrei um tipo.  Escritores são assim: observam tudo, armazenam dados que serão usados mais tarde em seus personagens ou nas suas fantasias... 

Para haver o equívoco, tem-se que usar toques de coerência lógica, congruência de espaço e tempo e harmonia com os fatos da minha história real.  Em resumo: há uma possibilidade de aquilo ter realmente acontecido: havia a ocasião, a distância, a oportunidade.

E na hora em que é inserida a fantasia no contexto da possibilidade real dos fatos, há uma desestruturação da forma primitiva, assimilada, da memória assentada e assumida como fato verdadeiro.  Isso gera instabilidade e insegurança.  É como se parássemos e perguntássemos: “afinal, aquilo tudo que eu vi, ouvi, acreditei e assimilei não era verdade?”.  Entende? Passa a haver uma distorção daquela verdade. É como uma operação booleana, em que um objeto estranho é inserido na forma original, gerando um novo formato.  E mesmo quando a fantasia é delatada e se retira o elemento fantástico, sobra o espaço daquela mesma fantasia que foi anteriormente inscrita, isto é, fica flagrante a falta dela. Fica como que, instalado uma espécie de “buraco”, que  nada mais é do que o espaço ocupado a partir da vivência daquela fantasia.

Em suma: o sujeito nunca mais vai ser o mesmo: vai ser sempre um elemento faltante, manco, à procura da fantasia perdida. Uma espécie do “das ding” estereotipado.

Eu sabia que eu enveredava por um caminho perigoso, mas o processo já havia começado: não havia volta. E quem disse que eu queria uma volta?

           O árabe, que se chamava Fadil Kadin Zuhayr, era uma síntese dos tipos descritos nos contos orientais acrescido com o perfil inscrito no meu imaginário. Até seu nome tinha um significado específico: era o “honrado confidente luminoso”.  Escolhido a dedo. Ele seria um dândi, um sujeito de extrema elegância e cultura, muito rico e que favorecia ou investia em talentos literários que perpetuassem as lendas e as narrações árabes.  Estava presente no congresso. Ponto. A coerência existia. Faltava o approach.

           Esperei a ocasião ideal e, quando percebi que era a hora, aticei o Márcio com um telefonema no meio da tarde.  Disse que talvez precisasse fazer uma viagem para Shihr a fim de preparar uma matéria sobre a produção literária na Arábia.  Márcio literalmente “saltou” no telefone.  Perguntou que história era aquela, quando eu iria e coisa e tal, até conseguir dar voz à pergunta que mais o instigava: “vai se encontrar com ele?”.

Quando nos vimos à noite, eu já havia preparado o clima que favorecia a introdução da fantasia.  Mas tudo muito sutil.  Não gosto das coisas óbvias, explícitas.  Eu já disse isso.

Preparei um jantar com especiarias, carne de cordeiro com molho de tâmaras e damascos.  Escolhi um vinho que Márcio aprecia e botei uma música barroca, com solo de alaúde... O clima estava criado.

Há uma diferença muito grande entre o homem e a mulher nesse sentido.  Falo do envolvimento e do clímax sexual.  Deixa-me explicar a minha teoria. Aliás, nem sei direito se devo chamar isso de teoria: é mais uma vivência e uma intuição, mas, vá lá!  Vamos analisar por partes: numa situação de equívoco, uma mulher quer logo tirar tudo a limpo.  Quer certezas.  Quer fatos.  Compara.  Despreza, deprecia a rival.  Quer saber o que ela mesma estava fazendo naquele dia, por que isso e por que aquilo. Como a outra se vestia, como era seu cabelo, sua idade, sua formação. Nem de longe, ela vai ficar excitada com a possibilidade de o homem dela ter tido uma aventura.  Não é por aí. Já o homem... mas aí, preste atenção: falo do homem burguês, com certa cultura, emprego fixo, situação financeira de regular a boa ou muito boa. Não estou me referindo aos estereótipos, às classes da periferia, aos fanáticos machistas ou religiosos.  Falo do colega de trabalho, do vizinho, do amigo, das pessoas do nosso convívio.Não é preconceito, mas, para os homens, isso faz muita diferença. Para a mulher, não. Todas nós obedecemos ao mesmo esquema que te falei.

           Bem, como eu ia dizendo, com o homem é diferente.  Numa situação de ameaça ou de equívoco, ele se motiva.  É gerada uma adrenalina substancial, a qual ativa o princípio do guerreiro.  Ele quer entrar em luta. Quer vencer.  Quer saber que pau é aquele que te dá mais prazer.  Quer saber de quantos orgasmos o sujeito é capaz.  Entende? O homem é mais quantitativo e a mulher mais qualitativa!  O homem preocupa-se com a performance, quer saber que técnica o outro tem que ele desconhece.  Quer saber as armas que o outro usa.  O estranho é que, nessas horas, ele aceita os fatos e entra num clima de torpor e passa a escutar e a participar de uma forma passiva, objetal... É como a história do guerreiro que quer comer – literalmente – o inimigo para assimilar seus dotes.  Ou a horda primeva, como você quiser.  Mas, de qualquer modo, é um fato.

E como eu ia dizendo, na medida em que há um acordo, a mulher passa a dominar a relação e a executar os primeiros passos de um tango.

Por que tango?  Bem, para mim, é a dança mais sensual e significativa que existe.  Tango sugere uma tragicidade... é como se desse forma a um sentimento que está além das palavras.  Se você reparar bem, o par que dança o tango nunca está simétrico como nas demais danças.  Ele atua como aquilo que eu já te falei há algumas sessões, lembra? A projeção de uma figura geométrica.  Uma é exatamente a outra projetada num espaço proporcional, mas diferente do outro.  Tanto é, que o par dança – ele também – de viés, parecendo que cada qual vai para um lado, quando, na realidade, caminham juntos ou, pelo menos, com a mesma intenção melódica!  Acho fantástico.  É a verdadeira metáfora do ato sexual, cada qual pensa que guia o outro, mas, na realidade, um faz exatamente o que o outro quer, só que de maneira diferente. Estão juntos e separados. Quando a mulher percebe que pode usar desse artifício no ato sexual, quando ela se apodera do segredo de “ser o outro” sem deixar de ser ela mesma; quando faz crer ao companheiro que é ele quem guia, embora saiba, dentro de suas entranhas, que é ela quem comanda, ela está iniciando os primeiros passos de um tango!  E é aí que a mulher se realiza.  E é aí que ela se encontra.  É isso o que quer uma mulher!

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